quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O NOSSO MORALISMO, COMO DE PRAXE, APONTA PARA A PESSOA ERRADA

O jogador brasileiro Diego Costa, 25 anos, natural de Lagarto (SE), que atua no Atlético de Madri, fez na última terça-feira uma escolha que irá despertar a ira dos brasileirinhos patriotas: abriu mão da convocação à Seleção Brasileira para atuar pela atual campeã mundial, a Espanha. Não se discute a legalidade nem o quão saudável ao esporte é a possibilidade de um atleta de um determinado país ser “contratado” para atuar por outro, visando especialmente os torneios importantes. A brecha no regulamento permite tal movimentação.

Isso à parte, que me perdoem os pachecos de plantão, mas o jogador tem o direito de defender a esquadra que preferir, ainda mais se a regra permite. E lembremos do momento que vivemos: não é mais tempo de esbravejar que “ele virou as costas para o país, traiu toda uma nação!”, e mais aquelas frases feitas que soam ensaiadas e não menos hipócritas. Qualquer moralismo é incabível e, convenhamos, as lições dessa ordem nunca combinaram com o futebol. Que Diego Costa tenha sucesso como jogador da Fúria.


O outro lado dessa discussão cabe ao técnico do Brasil, Luiz Felipe Scolari. Se há alguém que não pode se queixar do veredicto do atacante é o gaucho. Felipão convocou, em 2012, o atual artilheiro do campeonato espanhol para dois amistosos importantes (Itália e Rússia). Na soma dos dois jogos, foram 31 minutos dados a Diego pelo técnico canarinho. É fato que o rendimento não foi bom, mas é fato também que Scolari perdeu muito tempo, em 2013, com Alexandre Pato – em má fase e reserva no Corinthians –, enquanto Diego Costa, sem ser convocado, anotava mais tentos que Messi e Cristiano Ronaldo na Liga Espanhola.

E esse é o ponto-chave do debate. Ainda que Diego Costa não seja um jogador de alto nível, merecia mais chances, especialmente vendo atacantes, cujo rendimento em seus clubes era bem inferior, sendo chamados e não convencendo. Em vista disso, a sensação é que o sinal positivo dado por Vicente del Bosque, treinador da Espanha, no sentido de querer contar com o jogador, despertou no técnico brasileiro aquele sentimento de quem “dormiu no ponto”, e decidiu reparar o erro. Um pouco tarde, Felipão. Ao invés de sensacionalizar o assunto, dizendo publicamente que o sergipano “deu as costas ao sonho de milhões de brasileiros”, a sua responsabilidade era convocá-lo justamente por ser o melhor atacante brasileiro em atividade. Se houve alguém a dar as costas a outrem foi o bigodudo que comanda a Seleção.


É fundamental que o jornalismo não acirre ainda mais os ânimos e passe a tratar a decisão de Diego Costa com desapego e sem o velho discurso piegas. É papel importante da imprensa não botar mais paixão em meio a um esporte que quase não resguarda o mínimo de racionalidade. A despeito da nossa safra ruim na posição de centro-avante, já foi mostrado que a Seleção possui uma base competitiva para a disputa do mundial. É obrigação do treinador garimpar outro atacante, depois da negligência que não passou impune.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

ORAÇÃO DO DESEJOSO AGRADECIDO

Meu bom Deus,

Obrigado pela vida.
Pela natureza organizada,
Embora nossa percepção limitada
Faça tudo parecer caótico.

Peço que continue a nos velar.
Que o entendimento e a lucidez permeiem nossas ações,
Porque sem discernimento
Nada é digno de valer a pena.

Obrigado pela liberdade,
Pela possibilidade de sermos alguém.
Por nos responsabilizar
Ou consagrar o que aqui se faz.

Oro para que a capacidade de conhecimento avance.
Que a razão possa desmistificar o mundo
E novos desafios venham,
Pois a comodidade e o obscurantismo corrompem.

Agradeço pela brevidade.
Tanto das gentes, como das coisas.
O eterno banaliza as coisas
E não dá às gentes um mote.

Rezo para que sejamos também afeto.
Porque o método pragmatiza.
E sem sentimento,
Encontrar-te é impossível.

Amém



terça-feira, 15 de outubro de 2013

FAÇA JUS AO NOME: a autoajuda só pode vir de você, não dum livro

Como são fantásticos os livros de autoajuda! Com eles, é possível emagrecer 50 quilos em uma semana, ainda que a gente tenha se alimentado mal e errado a vida inteira. Com esse gênero de literatura, a gente consegue chegar à felicidade ou resolver os maiores desafios da vida ao ler as sete ou dez dicas desse ou daquele livro. É bem verdade que a Filosofia debate essas dúvidas desde o século VI a.C., e ainda não encontrou uma resposta definitiva – e possivelmente não achará nunca.

Mas o que é o maior campo do saber, se comparado a um livro de autoajuda? Se a Filosofia patina há 28 séculos, o livreto com as dez soluções existenciais para viver melhor é capaz de descobrir isso em pouco tempo, e mais: resume tudo em algumas páginas. Esse fenômeno diz muito sobre quem somos, o nosso comodismo de buscar o caminho mais fácil, sem discernir (e por que nos daríamos a tamanho trabalho?) que essas bulas não passam de ilusão.


Como se cada pessoa não tivesse uma maneira peculiar de ser feliz ou de buscar qualquer outro anseio. Não há fórmulas e, por isso, criar um padrão que abranja um número extenso de pessoas é negar o óbvio: cada microcosmo (indivíduo) é um emaranhado de defeitos e virtudes, uma aquarela genética, perfis conflitantes que habitam meios completamente distintos. Como botar toda essa diversidade sob o jugo de um referencial apenas?

O mais grave é o leitor não entender isso. Porque o receituário promete mil milagres, mas possui um defeito crucial: ele é incapaz de se adequar plenamente a nós. O ser, mutante que é, daqui a um segundo não será mais quem foi há pouco. A existência humana é tão complexa, e dialética, e paradoxal, que não há livro que possa consumar todas as crises. O homem desenvolveu a inteligência justamente por isso: para buscar, dentro de si, nos confins da sua própria existência, a resposta para o que o angustia.

Como são tristes os livros de autoajuda...

sábado, 5 de outubro de 2013

AMARILDO, O “BOI”, FOI UMA VÍTIMA DO NOSSO TRAÇO CULTURAL MAIS PERVERSO

Digamos que Amarildo de Souza, o “Boi” (como poucos, ele conseguia carregar, nos ombros, dois sacos de cimento numa única corrida, fazendo jus ao codinome), fosse traficante ou tivesse qualquer tipo de relação com o crime organizado na Comunidade da Rocinha. Digamos que Amarildo não fosse o ajudante de pedreiro que era, cujos contra-cheques comprovam a sua atuação como tal. Digamos que, mesmo envolvido no poder paralelo da maior favela brasileira, Amarildo preferia – só pra não chamar a atenção – morar numa casa de 18m² (provavelmente um espaço menor que a sala da sua casa), único cômodo, sem rede de esgoto, com a esposa e seis filhos.

A despeito de todas essas hipóteses, que cada vez mais são derrubadas, Amarildo não merecia o fim que teve. Ninguém merece. Não só porque o “Boi” era inocente. É que não é digno, nem do pior bandido, morrer da forma que foi, pelas mãos do Estado a desfechar o caso com tamanha frieza, como se ele, o Estado, fosse um... criminoso, o mais desprezível entre todos. Porque, em sã consciência, pouca gente é capaz de contradizer o óbvio: a PM do Rio, alocada na UPP, um dia depois da operação “Paz Armada”, chefiada pelo Major Edson Santos, torturou e executou “Boi”. É para isso que as investigações da polícia civil apontam.


Embora lamentável, não é uma prática pouco recorrente, especialmente em regiões carentes. É o velho ranço da escravidão, que ainda responde pela afinidade entre negritude e pobreza. Tal como naquela época, o zelo pela vida do miserável quase inexiste. No fim, quem se importa com um favelado morto? Razão pela qual, em situações como esta, cai em voga o comentário: “e quem garante que ele não era bandido?”. Eis a pergunta mesquinha, pois nem perto de justificar qualquer agressão, quanto mais a morte. Para quem ainda não percebeu, o Brasil é um Estado Democrático de Direito, e, diante de qualquer suspeita, o procedimento correto requer indícios, evidências, provas, além de julgamento com ampla defesa do acusado e, se for o caso, prisão sem pena de morte.

A ação, como já analisou este blogueiro (http://semcensor.blogspot.com.br/2013/08/o-povo-nas-ruas-pm-e-o-jn-conheceram.html), está mais relacionada à PM e menos aos profissionais em si. Claro que há o policial corrupto, como há em qualquer profissão. É bem verdade também que a diferença entre um PM corrupto e, por exemplo, um advogado corrupto é enorme: o primeiro trabalha armado, e uma ação sua indevida pode ceifar uma vida. Até por isso, é justo que o fardado receba um salário melhor que o atual, condições mais apropriadas de trabalho (armamentos e equipamento sofisticados), mais treinamentos. Enfim, é fundamental que a corporação esteja escorada num sistema de inteligência que faça o PM se expor o menos possível, seja para o bem ou para o mal.


Além disso, é necessário arrancar da polícia militar o DNA que a acompanha desde a sua origem. Quando assume a posição de defender o poder de quem o ameaça, ou seja, o povo, acaba por agir como no “caso Amarildo”. Para a polícia, se o povo é uma ameaça que deve ser extirpada, imagine, então, a porção pobre da massa. Amarildo é vítima dessa sistemática, que tem governos e polícias no centro da discussão, porém sem cometer as atrocidades sozinhos: a sociedade, que abre mão de ter esses acontecimentos como prioridade, é parte culpada também.

O “Boi” foi vítima da PM aristocrata que temos, tão ultrapassada quanto violenta, e da sociedade que negligencia questões desse tipo. O que aconteceu a Amarildo – e a tantos outros pobres e pretos como ele – retrata pouco ou muito um Brasil ainda enraizado no que de pior esse país já teve. A morte desse ajudante de pedreiro, pai de seis filhos, não pode ser em vão. Porque ela joga luz sobre uma PM que age feito aqueles que nos despertam os maiores medos. Se a sociedade acha tudo isso normal, ela também tortura e mata um pobre da Rocinha.