segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

A transgressão de Adão e Eva mudou a história da humanidade

Estava cá a pensar em Adão e Eva, os dois personagens abençoados por Deus para inaugurar a travessia judaico-cristã e descritos por Moisés como sendo a moça e o rapaz que deram o pontapé inicial na história humana. Na contramão do que se prega, o pecado original representou a catraca livre para a liberdade. Deus, tendo a bondade que tem, não seria mesquinho a ponto de fazer da sua criatura mero divertimento, algo a funcionar tal qual um equipamento movido a controle remoto. Não parece ser do feitio de uma divindade agir assim.

Pontuemos: extraindo metáforas e parábolas de que a Bíblia é pródiga, não havia fruto algum. O que ocorreu no Jardim do Éden foi a cópula entre homem e mulher, dois belos e apetecíveis pedaços de mau caminho que deliberaram entornar o caldo do sexo, a sensação mais incrível que o bicho – pensante ou não – pôde conceber. Como os nudes comiam solto naquela época, encostaram uma pele na outra, fizeram os corpos se aquecerem e, ao contrário do que acontece conosco hoje, sentiram vergonha.

Isso posto, Adão e Eva estavam numa encruzilhada: escolher o determinismo imposto por Deus ou o livre-arbítrio, artifício igualmente postulado pela figura maior entre judeus e cristãos. Pra sorte de todos que vieram depois deles – você e eu, inclusive –, preferiram transgredir e assumir a autoria dos seus próprios atos. Se tivessem seguido a vontade divina, que mérito haveria na ação do casal? Rigorosamente, nenhum. Teriam agido bem, mas não por vontade. Não há virtude na servidão.

"E viu a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento; tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela" [Gênesis 3:6].[Foto: www.novas.blogspot.com]
É por isso que o existencialista francês Sartre afirmou que o homem, livre que é, tem consciência da responsabilidade sobre o que fará e, por isso, é um ser angustiado. Em suma, o casal primogênito abriu as cortinas do espetáculo chamado ética. Se ética é a reflexão que antecede a melhor conduta, moral diz respeito à ética consumada, ao ato em si, fruto do pensamento ponderado, submetido a rigorosos critérios de escolha e renúncia. Ambas – moral e ética – dependem de uma prerrogativa elementar: a liberdade do sujeito que age.

Por que um pit bull não é julgado por atacar um pedestre? Por que uma cobra não é incriminada por picar alguém? Por que um leão não é condenado por avançar numa pessoa? Porque o animal, silvestre ou doméstico, não age livremente. O animal que não pensa é vítima do seu instinto, uma vez que o impulso se põe acima de qualquer outra faculdade que o bicho irracional possa ter. Ele vive a única vida que poderia viver, regido que é pelo princípio da necessidade.

Machado de Assis, talvez o maior de todos os escritores nossos, em algumas linhas de Dom Casmurro, tratou, assim como Chaplin, de dizer verdades em tom de brincadeira. Com a ironia fina que lhe era praxe, no capítulo XVII, intitulado “Os Vermes”, o autor mostra como a vida de um bicho, ao contrário da nossa, está completamente entregue a uma única possibilidade. Quando Bentinho, personagem principal e narrador da história, depara-se com livros comidos por vermes e indaga-os a respeito das informações que não mais podem ser lidas, eis que um deles responde: “Meu senhor, nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos e detestamos o que roemos: nós roemos”.

O brasileiro Machado de Assis [foto] e o português Eça de Queirós, expoentes da literatura realista, davam às personagens femininas muita densidade ética. Capitu, em Dom Casmurro, e Maria Monforte, n'Os Maias, demonstram isso.[Foto: www.obviousmag.org]
Aristóteles defendia que se os fenômenos da natureza e os bichos tinham uma função específica no cosmos, o mesmo ocorria com o homem. Cabia a este identificar o seu papel no mundo, para o próprio bem e do local onde vivia. Esse papel seria posto em prática com base num talento nato, parte constituinte do indivíduo desde o nascimento e aprimorada com o tempo. Os gregos, em contraponto à filosofia moderna, eram adeptos do determinismo. Não era de se surpreender: numa sociedade aristocrata, quanto menor o ambiente para a mudança, melhor.

Já para o pensamento moderno, na esteira das descobertas científicas de Newton, Galileu e Copérnico, o universo não era finito e ordenado como defendiam Aristóteles e Ptolomeu. E, sendo assim, os indivíduos não tinham papeis específicos e definidos. Está claro, sim, que o homem atua permeado também pelo instinto. É o instinto que leva o bebê recém-nascido a sugar o seio da mãe em busca de leite. Ninguém disse a ele que era preciso fazer daquele modo, nem que ali havia leite – ele não seria capaz de compreender. Ainda assim, a criaturinha o faz, como se houvesse um chip programado pra levá-lo a agir de tal forma. Mas o que prevalece no bicho homem é a razão, a capacidade inteligente de ponderar os efeitos da sua ação, agindo de modo a buscar o melhor pra si, sem prejuízo a outro. No limiar de tudo, é o que nos difere do restante da natureza. Negar a liberdade é, pois, recusar a humanidade que nos foi legada ou conquistada.

Perceba que estamos aqui no coração do Direito: sem liberdade, não há culpa; sem culpa, não há julgamento. Porque o determinismo defende, com feições equivocadas, aquela máxima em que muitos se escoram para justificar seu comodismo e ineficiência: “as coisas são assim mesmo, não há o que fazer”. Sem terem consciência disso, assim vive um gato, uma tartaruga, uma formiga.

Ética, então, é quando ajo sem o medo da consequência, mesmo que não haja um tipo sequer de patrulhamento sobre a minha ação. O alemão Kant, ao contrário do utilitarista Stuart Mill e do pragmático Maquiavel, pregou que o fundamento moral não está no efeito do ato, porque agir conforme um fim coloca as condutas na corda bamba dos relativismos. Para ele, a base da ação está no intento, naquilo que, a priori, move o ator social. A isso ele chamou de imperativo categórico, expressão mais que consagrada do pensamento kantiano. Se atuo bem, mas tendo como impulso uma aceitação social, a ação é lícita, mas não moral. Em miúdos, eu não devo ceder meu lugar no busão a uma idosa porque as demais pessoas verão nobreza em mim. O banco deve ser cedido porque, conscientemente, cheguei à conclusão de que é sensato fazê-lo.

Em Crítica da razão prática e Fundamentos da metafísica dos costumes, Immanuel Kant trata da ética, afirmando que as condutas mais indicadas são aquelas pautadas pela vontade, e não pelo desejo
[Foto: www.pt.wikipedia.org]
De igual modo, o medo da punição não torna a minha ação ética, ainda que eu possa avaliá-la como correta. Se o aluno não cola na prova porque o professor está em sala, mas, caso não estivesse, consultaria o conteúdo no caderno, o ato de não colar, neste caso, não é moral, apesar de não ter ferido qualquer exigência postulada antes do início da avaliação. A moral passa a valer quando o professor não está em sala e, mesmo assim, o estudante delibera não colar, porque sabe que, com isso, infringiria uma norma que permanece válida com ou sem o professor perto dele.

Em oposição, a criança que nasce com leucemia não decidiu ser doente, coisa que ninguém, com exceção do hipocondríaco, deseja. O adoecido estará condicionado a uma vida que não escolheu ter. Porém, é exagerado afirmar que “essa foi a vontade de Deus”, como se o determinismo divino explicasse aquilo que custamos compreender. O corpo humano, na imensidão da complexidade em que está imerso, tem um funcionamento alheio às nossas ordens, tal como o sangue que circula ou os neurônios que realizam sinapses. Embora, é bom que se registre: uma anomalia hoje pode ter explicação prática em alguma ação, seja da própria pessoa ou de outra, que aconteceu no passado. A despeito de não explicar tudo, a ciência alcança respostas que o misticismo faz questão de ignorar.

Se Adão e Eva não fossem pioneiros no acasalamento humano, o livre-arbítrio seria uma grande falácia. Se Adão e Eva fizessem o que deles se esperava, a predestinação triunfaria, nós não nos empenharíamos em evoluir e não seríamos nem metade do que somos hoje. Se Adão e Eva mantivessem a compostura, o sexo não seria proibido e tão bom como é. Eles teriam se comportado, tirado dez na avaliação divina. Mas se o medo da punição pauta o ato, cadê a honra da boa conduta? Mandela, Gandhi, Luther King e Betinho cravaram seus nomes na história porque decidiram fazer o que fizeram. Hitler, na intenção inversa, idem. Todos optaram, e foram julgados para o bem ou para o mal.

Mesmo hemofílico, tuberculoso e HIV positivo,
o sociólogo Betinho não deixou de militar contra a fome, a miséria e a ditadura
[Foto: www.vivario.org.br]
Milan Kundera, em A insustentável leveza do ser, já nos encaminhamentos finais da sua obra mais proeminente, registra um diálogo entre o casal protagonista da história, Tomas e Tereza. Sentindo-se culpada pelo fato do amado ter negligenciado o ofício da Medicina para segui-la, Tereza lamenta: “Sua missão era operar!”. Tomas, ciente de que a predestinação é um engodo, responde: “Missão, Tereza, é uma palavra idiota. Eu não tenho missão. Ninguém tem missão. E é um alívio enorme perceber que somos livres, que não temos missão”.

Tereza havia se perdido na explicação cósmica para as frustrações da vida, como se os insucessos germinassem à revelia de uma causa humana. Tomas compreendera com boa dose de sucesso que a gente pode fazer, refazer e desfazer muita coisa. A não ser que você seja um dos vermes descritos por Machado.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Em catorze pontos, o impeachment

De início, registro já a minha posição: com as cartas que estão na mesa até o momento, sou contra a destituição da presidente Dilma.

Dito isso, o impeachment está previsto em Constituição (Capítulo II; Seções I, II e III) e na Lei nº 1079/50, e o mecanismo em si é democrático. Basicamente, serve para que um presidente não faça o que bem entender no uso de suas atribuições. O dispositivo do impedimento evita que o mandatário se coloque acima do cargo que a população lhe conferiu. A presidência fica, pois é um componente do Estado. O presidente passa. Quando Collor renunciou, pouco antes do Senado determinar a sua 'deposição', o impeachment foi bastante saudável a ela, a tão bela e imprescindível democracia. Isso é um ponto.

A presidente que agora está na berlinda faz um 2º mandato abaixo da crítica. Propôs uma campanha em outubro, e, no pontapé inicial da sua segunda gestão, desdisse o que havia prometido, executou tudo aquilo que acusava ser o expediente do seu adversário. Ou seja, traiu o seu eleitor. Ciente de que o país não poderia passar ileso pela crise norte-americana de 2008 e nem pelos incentivos ao consumo – acertados à época – do final da era Lula, forjava um país de artificialismos. Hoje há desemprego, inflação na casa dos 10%, recessão. Esse é outro ponto.

Só que o deputado que deflagrou o processo é Eduardo Cunha, alguém que não é comparável a Dilma do ponto de vista criminal. Cunha ocultou bens e há um extrato - sim, uma prova cabal - de uma conta na Suiça - obviamente não declarada ao fisco brasileiro. Cunha, definitivamente, é digno de punição. Dilma, não. Ao menos por ora, não há nada que recaia sobre ela quanto a crimes de responsabilidade, os únicos capazes de botá-la na cova dos leões. Se um mandatário é ruim – e Dilma tem sido –, temos aí um argumento que não legitima a sua saída. Se no futebol, quando um time perde três seguidas, a solução em mãos é mandar o técnico embora, aqui, meus amigos, a batida da banda é outra. É por isso que a democracia tem no Direito a sua base de sustentação. Se um mandatário deve ou não sair, façamos o mais prudente: consultemos a lei, o parâmetro criado justamente para evitar relativismos, subjetividades e meros desejos. Temos aí um terceiro ponto.

Se fosse num jogo de Truco, Cunha teria zap. Como se trata de política obscura, ele tem grana na Suíça.
[Foto: www.brasilpost.com]
É importante lembrar: a Câmara não decide nada, só dá andamento ou arquiva o processo. Quem vota pela permanência ou destituição da presidente é o Senado. Outro lembrete: o processo pode nem chegar aos 81, já que se pelo menos dois terços da Câmara não disserem “sim” ao processo, ele é arquivado. Algo exatamente igual ao que se passou com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – sim, ele mesmo, o ídolo tucano –, que em 99 – também sem crime de responsabilidade comprovado – quase foi enxotado do Planalto. O processo morreu na Câmara, então presidida – pasmem! – por Michel Temer, agora vice de Dilma, herdeiro imediato da cadeira mais estofada do país e que, por oportunismo, agora tenta se descolar do governo. Quão encantadores são os meandros da política brasileira, não? Já são quatro pontos.

Já era hora de Cunha parar de embromar, de fazer joguinho num país de mais de 200 milhões de pessoas, um lugar que apresentou boas mudanças nos últimos anos, mas que agora se encontra estagnado. Do ponto de vista político – e por tabela econômico, social e cultural – não aconteceu rigorosamente nada em 2015. O Congresso só se prestou a votar pauta-bomba (terceirizações, redução da maioridade penal, financiamento privado de campanha), negligenciando aquilo que de mais importante há para o país. Justiça seja feita: Eduardo Cunha é um monstro [que Darwin me permita o termo] criado pelo próprio PT. O PSDB, que não é bobo, nem nada, trata o nobre deputado com excessiva obediência, dando-lhe de beber e comer. Vejam só, mais um ponto.

Tecnicamente falando, a partir da instauração do rito [que se deu no dia 03/12] e de uma comissão especial que conterá representantes de todos os partidos, respeitando a proporcionalidade da casa, Dilma terá dez sessões da Câmara para apresentar defesa. A partir disso, a comissão terá outras cinco sessões para formular um parecer, que pode deliberar pela continuidade ou arquivamento do processo sem que ele siga ao plenário da Câmara. Se a comissão optar pelo seguimento, abre-se votação no plenário para saber se a questão caminha ou é arquivada [a Câmara, como já dito, não tem o poder da decisão final sobre o mandato de um presidente]. Se 2/3 [352 deputados] da casa votarem “sim”, Dilma é afastada por 180 dias, e, durante esse período, o Senado terá de decidir pela permanência ou destituição da presidente do cargo, também numa votação em 2/3 [54 senadores]. Se menos de 2/3 da Câmara disserem “sim”, o impeachment é arquivo, e nem vai à casa presidida por Renan Calheiros. Em caso de passagem pela Câmara, se o “sim” não atingir 2/3 do Senado, Dilma retorna em imediato ao Planalto. Eis o sexto ponto.


A parte que cabia a Eduardo Cunha no processo de impeachment já foi feita. Agora, resta a nós a discussão, colocar na balança o que pode levar Dilma ao impedimento ou a obviedade da sua manutenção no cargo maior da República. Não é indicado fomentar uma dança das cadeiras no principal assento da política, se não for algo passível de se fazer. E o que determina a viabilidade do impedimento? Como já exposto aqui, a lei. O que vale nessa história são os parâmetros legais, e não o que Aécio, FHC e Cunha dizem em público, aquele “papo pra boi dormir”. Agora, é condizente com o nosso papel cobrar o afastamento de Cunha não só da presidência da Câmara, mas do Congresso. Há algum tempo já existe um extrato bancário que serve como prova da sua corrupção, do mesmo modo que o áudio com a voz do petista Delcídio do Amaral serviu para botá-lo na cadeia. Parece-me tudo muito simples. Quantos pontos? Sete.

Na contramão de uma avaliação mais calma e criteriosa, temos dois lados: o maior, de oposição a Dilma e ao PT, que quer o impeachment por... não gostar de Dilma e o PT. Razão pela qual o impedimento da presidente é pauta na agenda da oposição desde que a mesma perdeu as eleições em outubro do ano passado. Sim, um ano e dois meses depois os oposicionistas “politizados” querem Dilma fora, o que dá a essa vontade um caráter menos objetivo, prático e técnico, e mais artificial, sem embasamento, desculpa do mau perdedor. Nesse sentido, seria mais oportuno que a legião de adeptos do impeachment tivesse a coragem de se mostrar: “Queremos a queda de Dilma, o aniquilamento do PT e a volta do PSDB ao poder”. Seria bem mais saudável à democracia se as intenções transcorressem às claras. O que é ponto pacífico é que Aécio foi derrotado em outubro de 2014, e os tucanos e simpatizantes, para o bem do país, precisam entender isso. Mais um, oito.

De outro lado, há o petismo, que era maioria no último pleito, mas que desde janeiro de 2015, depois de Dilma dizer que tudo o que ela disse nas eleições era trololó, virou minoria. Essa face da moeda, que defende a presidente e o partido, vigora por... gostar da presidente e do partido. Assim como o lado de lá, não há uma preocupação com o país, um diagnóstico de que as coisas não estão agora como já foram nas duas gestões de Lula e na primeira metade do governo Dilma. É evidente que o governo perdeu o prumo em algum momento, e não reconhecer isso, além de burrice, é fomentar a manutenção de uma conjuntura que engolirá Dilma, Lula e o próprio PT. Teria o partido perdido o projeto, a capacidade de governar o país? O fim do PT parece ser o mesmo dos tucanos em 2002: ineficiência, corrupção sofisticada e esquemas generalizados. Não perca a conta: nove.

O ano mudou e, junto, o discurso de Dilma. A vaca tossiu.
[Foto: www.joseliamaria.com]
No pedido de impeachment feito por Reale e Bicudo, aceito por Cunha na última semana, toda a argumentação e documentação comprobatória versam sobre as pedaladas fiscais. Em resumo, a Caixa, o FGTS e o BNDES arcaram com gastos do governo, sendo que a União não os ressarciu, justamente para que não houvesse um déficit que configuraria crime de responsabilidade, descumprindo a Lei Orçamentária. A União manteve um dinheiro em caixa que, por direito, não era dela. Claramente, houve uma maquiagem. No frigir dos ovos, eis o crime de responsabilidade. Mas há um problema nesse enredo todo: o ‘ajeitamento’ nas contas aconteceu em 2014, último ano de um mandato de Dilma que já não é mais o atual. O parágrafo 4º do Artigo 86 da Constituição parece esclarecer: "O presidente da República, na vigência de seu mandato [grifo nosso], não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções". Quem diria! Temos o décimo ponto.

Nos vemos, então, diante de um crime cometido contra as finanças públicas – assim como o fizeram FHC e Lula – e, de acordo com a lei, nada pode ser feito no sentido de incriminar os três. No que cabe a 2015, pouco depois do presidente da Câmara acatar o pedido de impeachment, a casa, que foi indigesta a Dilma quase o ano todo, aprovou o déficit de quase R$ 120 bi pra este ano. Dessa forma, dificilmente será necessário ‘pedalar’ novamente para cumprir a margem fiscal, já que a meta está negativada ao extremo. Ou seja, a base do impeachment de 2015 não existe mais. E o pior: tudo dentro da lei. Em todos os casos, é como se a falcatrua fosse legitimada. Hora de se rever a lei, porque quando ela passa uma rasteira no povo, a democracia regride. 11º ponto.

A oposição, que já se organizou em três manifestações de rua em 2015 e tem mais uma agendada para o próximo dia 13, pede o impeachment, intervenção militar, mas não admite que sonha em ver Aécio – ou outro tucano – no poder. Seria melhor se assumisse o lado que tem, em vez de propagar uma neutralidade que já é inviabilizada pelo ato de questionar Dilma e o PT. Parece-me uma gente nacionalista, patriota, perfil do cidadão que já materializou momentos sombrios por aqui ou o nazismo e fascismo, regimes totalitários germinados na Alemanha e Itália, respectivamente. Esbravejar pelo impeachment e fechar os olhos para o massacre da PM paulista – a mando do peessedebista Alckmin – sobre estudantes secundaristas – sim, um governador ordenou que a polícia militar batesse em estudantes menores de idade – só põe em descrédito a primeira reivindicação. 12 pontos, e ainda vem mais.

Desde 1995, o PSDB trata a educação a cassetete em SP
[Foto: www.noticias.r7.com]
O governo que está no poder há quase 13 anos foi capaz de impor mudanças estruturais ao país, aquelas que nem o mais otimista dos brasileiros poderia supor. Tirou muita gente da pobreza, ampliou a classe média, botou mais grana no bolso da elite. O cidadão que andava a pé tem um carro. Permitiu ao morador de aluguel ter a sua casa própria. Tirou o passageiro do ônibus e botou no avião. Levou o sujeito que não saía de casa ao shopping, à praia, ao supermercado pra encher não a cesta, mas o carrinho. Colocou o negro, o índio e o pobre na universidade, lugar onde jamais se ousou botá-los. Agora, o PT se vê diante da incapacidade de manter aquilo que soube construir e que permitiu a Lula deixar a presidência com mais de 80% de aprovação, a melhor gestão em quase 130 anos de história republicana. Mais um ponto.

No ato que corre, restam-nos quatro possibilidades: ou Dilma cai por motivos políticos, e não jurídicos – o que seria golpe. Ou Dilma cai por motivos comprovados e criminalizados pela lei – o que seria um passo à frente na democracia. Ou Dilma fica na presidência com base na sua inocência comprovada, sem o cometimento de qualquer infração constitucional – o que seria um degrau acima no estado democrático de direito. Ou Dilma fica por motivos políticos, à base de acordos escusos, de conchavos canalhas – o que seria golpe. 14 pontos. Já basta.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Alta tensão: a representação política sob escombros

A democracia republicana brasileira tem uma virtude: além de multipartidária, é adepta do presidencialismo de coalizão. Isso significa que o poder está partido em muitos pedaços e a agremiação principal precisa compor com vários deles para obter a governabilidade. Revisitando a história, Collor saiu pela porta dos fundos do palácio porque, além de ter um irmão que mais parecia inimigo, não possuía maioria no Congresso. Renunciou à presidência para entrar na história. FHC, o próximo a ser eleito pelo voto popular, aprendeu a jogar o jogo da política, e tratou de dar as mãos a Deus e o mundo. Lula, que não era bobo nem nada, dançou a música como mandava a cartilha.

A democracia republicana brasileira tem um vício: além de multipartidária, é adepta do presidencialismo de coalizão. Isso significa que o “poder do povo” é jogado na guilhotina para salvaguardar os interesses de muitos partidos. Com a carta na manga da governabilidade, oferecem apoio ao partido que está na ponta de lança, sem, evidentemente, se esquecerem do que querem em troca. As alianças, pois, dão sustentação ao governo à base de barganhas. A coalizão é o antro das negociatas com dinheiro público, um achaque às instituições, furtadora das esperanças cidadãs. Temos instaurado um dilema: seguir ou não o modelo que está posto?

Em resumo, as alianças partidárias em período de eleição forçam o mandatário empossado a lotear o governo. Aos partidos que deram sustentação cabe uma fatia ou outra do poder: ministério, presidência na Câmara, Senado e Comissões, cargos importantes em empresas ligadas diretamente à União, como é o caso da Petrobrás, do Banco do Brasil, Caixa, BNDES e Correios. Porque, óbvio, o apoio na corrida eleitoral não vem por semelhança ideológica ou identificação programática.

O presidencialismo de coalizão de FHC contava com as costas largas de ACM. Anos antes, enquanto Fernando Henrique Cardoso atuava contra a ditadura, Antonio Carlos Magalhães recrudescia o regime militar na Bahia.
[Foto: www.mauriciogrille.wordpress.com]
Assim, o presidencialismo de coalizão, que passa o rolo compressor por cima de quem quer que seja desde 1995, na eleição de FHC, mostra-se autodestrutivo, porque permeado por interesses escusos, egoístas e criminosos. Veja só: o PMDB, principal partido da base aliada, é quem garante a paz no Plano Piloto. Também, é quem mais se beneficia com um impeachment de Dilma, uma vez que o vice e os presidentes da Câmara e do Senado são peemedebistas. Temos um ninho de conspirações e traições no coração da nossa política, em um enredo que Shakespeare invejaria.

No cerne do jogo, tanto de quem apoia como de quem é apoiado, está o intuito de transformar tudo em um grande esquema, numa forma muito eficiente de roubar um dinheiro que não é de alguém específico, mas que deveria voltar à nação em forma de escolas, hospitais, moradias, saneamento, segurança e tudo aquilo que ainda falta a muita gente. Tal como parasitas, se instalam onde a grana rola solta, desfalcam os cofres públicos, deixam o moleque pobre da periferia sem escola digna. São bandidos que roubam na cara dura, comem muito bem, obrigado, e têm a desfaçatez de tirar um cochilo depois do rango. Sem culpa.

De outubro do ano passado até agora, muita coisa rolou
No panorama colocado, qual o cenário que temos hoje? Dilma venceu Aécio por uma margem pequena de votos, o que denotava que qualquer escorregão da petista resultaria em rejeição. Não deu outra. Depois de um primeiro mandato bem mediano, a presidente tomou medidas impopulares logo no tiro de largada da sua segunda gestão, apertou as torneiras da economia porque os gastos públicos dos últimos anos haviam sido altos e o brasileiro sentiu aquilo que mais valoriza: o bolso.

Paralelo a isso, a Operação Lava Jato, que já tinha sido deflagrada antes das eleições, ganhou fôlego. Desnudando um caso de corrupção na maior empresa brasileira – a Petrobrás –, a ação da Polícia Federal e do Ministério Público do Paraná sangrou ainda mais Dilma e o PT. Embora, é bom que se diga, o Partido dos Trabalhadores está longe de ser vilão único da Lava Jato, esquema capitaneado pelo PP e PMDB, e que também conta com gente da oposição. O ‘batom na cueca’ do PT é que ele figura no poder há mais de 12 anos. Quase favas contadas atribuir a maior responsabilidade ao partido de Lula, Dirceu e companhia. Erro grave achar que os ‘petralhas’ detêm o monopólio da corrupção.

Em 16 de dezembro de 2014, o juiz Sérgio Moro aceitou a denúncia do MPF. Até agora, 44 pessoas já foram condenadas.
[Foto: www.brasil.elpais.com] 
Em tal conjuntura, o que faz, então, o presidente da Câmara, o deputado Eduardo Cunha [PMDB/RJ]? Ele põe em votação e aprova, ancorado na oposição liderada pelo PSDB, o financiamento de empresas a campanhas eleitorais como dispositivo previsto em Constituição. Na era em que a Polícia Federal, o Ministério Público do Paraná e, agora, a Procuradoria Geral da República escancaram o maior escândalo de corrupção envolvendo empresas privadas e partidos políticos, a Câmara, em sua maioria, leva adiante uma Proposta de Emenda Constitucional [PEC] que não só não impede o modus operandi das transações financeiras no nosso processo eleitoral, como legaliza um crime de lesa-pátria ao prevê-lo no principal documento da República. Como Dilma está longe de ser a principal dor de cabeça da nossa política, a medida aprovada por Cunha e seus asseclas foi vetada no Planalto, contando com o amparo do STF, que, por 8 a 3, julgou inconstitucional a doação de dinheiro empresarial a campanhas eleitorais.

E a imprensa nessa história toda?
Num mundo em que a realidade é cada vez mais mediada, a imprensa adquire função basilar no regime democrático. Os acontecimentos de maior relevância precisam do jornalismo para chegar ao conhecimento do grande público. Conscientes do que se passa na esfera pública, os cidadãos podem deliberar melhor de acordo com as demandas mais urgentes. Isso significa que se a imprensa trabalha na contramão do que lhe é de dever, atenta-se contra o Estado de Direito.

Os erros do jornalismo podem ser de duas naturezas: resultantes da ignorância ou da má fé. Quando a TV Globo, em 1989, editou o debate entre Collor e Lula, dando ênfase aos melhores momentos do alagoano e, em igual proporção, enfatizando as piores investidas do pernambucano, realizava ali um deslize intencional. Recentemente, Veja publicou matéria atribuindo a Romário, senador pelo PSB do Rio de Janeiro, uma conta de R$ 7,5 milhões na Suíça. Malfeito grave. A publicação errou, até onde se sabe, por incompetência. As duas investidas, independente do que as motivou, foram prejudiciais à democracia e, a reboque, nocivas a nós também.

Em razão do despreparo ou da sabotagem, pouco se falou e contestou o item da reforma política que define como elemento constitucional o financiamento de empresas a campanhas, assim como o holofote não se voltou para a aprovação do Projeto de Lei que regulamenta a terceirização de atividades-fim e a PEC que prevê a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Quase tudo passou sem desdobramentos. Atenção breve e pouco convincente que não se vê em relação a Dilma nos âmbitos da política e da economia que lhe competem. 

Desde que assumiu a presidência da Câmara, no início do ano, Cunha tem imposto derrotas ao governo.
No entanto, o cerco da Lava Jato tem se fechado contra ele.
[Foto: www.sensacionalista.uol.com.br]
Nessa situação, uma oposição nada madura, composta inclusive pelo outrora aliado PMDB, conta com uma mídia que quer o circo pegando fogo. Diante disso, o país vive, claro, crise econômica: economia em recessão, inflação em alta, dólar ascendente, desemprego subindo. Mas a grande imprensa passa ao público uma realidade que não é verdadeira. Ou seja, cria-se a sensação de caos, de uma crise que tem um tamanho maior do que o real.

A parcela da população derrotada nas urnas em outubro, que já falava em impeachment desde o dia seguinte à vitória de Dilma, ganhou vigor e foi pra rua três vezes: 15 de março, 12 de abril e 16 de agosto. Em tese, a reivindicação é pelo fim da corrupção. Na prática, o alvo é o PT e as suas figuras mais proeminentes, mesmo porque boa parte do público que tem protestado votou em Aécio no último ano. Resultado: a revolta tem mais fundo partidário do que político, o que, em termos de democracia, acaba agregando muito pouco. Se pau que bate em Chico deve fazer o mesmo em Francisco, no julgamento da massa, a justiça inexiste.

Como se não bastasse, então, as crises econômica e política, a de âmbito institucional se avizinha. A mídia mais influente – entenda-se Globo, Folha, Estadão e Veja – agenda o impeachment diariamente. A oposição, idem. Ambos, canalhamente, criam um cenário que, de modo artificial, vai ganhando vida. Temos o achincalhamento da democracia, ao bel prazer da imprensa e de partidos indispostos com o governo. Dilma, ao mentir na campanha, também golpeou o “poder do povo”.

O castelo de areia da podridão, a ser alicerçado por PT, PMDB, PSDB e pelas demais siglas que tomam o país de assalto, começa a ruir. Mas tudo que é nocivo se reinventa, e ledo engano achar que não irão mais subtrair a pátria amada em tenebrosas transações. A imprensa mantém seus tentáculos na política, submetendo a democracia de forma acintosa, mantendo relações sombrias com esse ou aquele partido. Já o poder, retalhado que é, continua a ser a melhor opção ante qualquer alternativa totalitária. A prerrogativa que parece faltar é: “governar com eficiência e sem corrupção”. Qualquer outra combinação já se provou insustentável. 

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL: ignorância, fascismo e derrota

O que é mais decadente: o jogo sujo de Eduardo Cunha [PMDB/RJ], botar um moleque de 16 anos na cadeia ou a maioria esmagadora da sociedade compactuar com tudo isso?

Quando me posiciono contra a redução da maioridade penal não significa afirmar que pessoas de 16 e 17 anos não cometam crimes, inclusive hediondos. Quem é favorável usa o argumento de que alguém nessa idade “está matando outra pessoa agora”. É provável que sim.

Só que o meu questionamento é claro: enjaular o adolescente vai gerar algum benefício – em especial a longo prazo – pra ele, pra você ou pra mim? Não vai. Aliás, se tem uma coisa que as nossas penitenciárias estão aptas a fazer é piorar o que já está ruim. No total, a população carcerária brasileira supera a marca dos 600 mil detentos. Há um déficit de mais de 300 mil vagas. Resultado? Superlotação de celas. Como pode haver eficiência num sistema assim? É óbvio que não há. Aliás, no germe das penitenciárias do país não há qualquer preocupação em ressocializar ninguém.

[Foto: www.diariodocentrodomundo.com.br]

Mas boa parte da sociedade – e a oposição no Congresso liderada por Eduardo Cunha – não está muito preocupada com o perfil de quem sai da cadeia. E esse é o grande erro, pois como no Brasil não há pena de morte [por enquanto] e nem prisão perpétua, quem vai preso, cedo ou tarde, sairá. No mundo ideal, o apenado deveria sair melhor do que entrou. Na prática, você e eu sabemos que isso não acontece.

Mas para os que são favoráveis à redução da maioridade pouco importa como alguém sai da prisão. Na realidade, os presídios são vistos como calabouços: ‘joga os caras lá, e foda-se’. É esse tipo de mentalidade que pauta o debate, tanto nos espaços pomposos do parlamento, como à boca miúda aqui fora. E a gente continua a confundir justiça com justiçamento, a ponto de ‘cidadãos’ espancarem e amarrarem um assaltante a um poste. O nosso pé na história escravocrata ainda está sujo. A nossa mão, que sempre foi afeita a segurar o chicote e acariciar a tirania, também.

E nessa violência de que somos vítimas e protagonistas, a derrota parece ser um caminho sem volta. A gente não é capaz de lamber as próprias feridas, de entranhar nas incongruências das nossas condutas, e fazer brotar um mínimo de esperança. A flor se nega a crescer no asfalto. Nós nos apegamos, ansiosos, àquilo que está posto a um palmo do nariz, somos incapazes de analisar, pacientes, a conjuntura à distância e, dessa forma, cavamos o abismo sob os pés.

[Foto: www.umparadoxo.com]

Temos em curso a votação de uma Proposta de Emenda Constitucional [PEC] que regula a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. De acordo com o Artigo 60 da Constituição – que o nobre presidente da Câmara já fez questão de relativizar duas vezes em 2015 –, para uma PEC se tornar válida são necessárias quatro votações: duas na Câmara e duas no Senado. Em cada uma delas, é preciso haver a aprovação de pelo menos 3/5 dos votantes, algo que aconteceu em 2 de julho, mas que, curiosamente, um dia antes não houve. Se a proposta passar pelo segundo turno da Câmara e pelas duas votações no Senado, segue para sanção ou veto da presidente Dilma.

Caso aprovada em todos os trâmites, daqui a 20 anos, a considerar o nosso mergulho em uma realidade mais conservadora do que a atual, estará em discussão a redução da maioridade penal para 14 ou 12 anos, e assim até a maioridade fetal. Porque nós nos apegamos a números, e eles, mal encadeados, só repassam o problema para outros âmbitos, dando a sensação de algo resolvido. Quando assim, ele sempre volta pior.

Não tem mais a ver com partido ou ser favorável ou não a Dilma. Também não se trata de concordar ou não com o argumento tacanho "se está com pena de menor bandido, leva pra casa". Se querem legalizar o financiamento privado de campanha, se querem reduzir a maioridade penal, se querem instituir a pena de morte, enfim, se é objetivo desse parlamento embrutecer o espírito da democracia em nome de valores tiranos, o nosso papel é botar a mão no peito do fascismo e dizer: "aqui, não".

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Sobre o comercial d’O Boticário e o preconceito entranhado

Achei a propaganda sutil, sensível e com narrativa muito bacana, surpreendendo a nossa mente pragmática que sempre espera o encontro de um homem com uma mulher, e, por isso, se assusta quando duas mulheres ou dois homens se tocam, compartilhando um sentimento que é lícito e conveniente a todos: o amor.

Os Malafaias, Felicianos e Bolsonaros da vida berram impropérios porque esquecem [ou seria pura ignorância?] que em 15 de novembro de 1889 – há mais de um século! – Estado e Igreja assumiram caminhos independentes. A laicidade da polis prega que as leis da igreja – seja ela qual for – valem para os rituais religiosos, mas não governam mais a vida na esfera pública.

 Malafaia blasfema contra a democracia. Ele é autor daquilo que chamamos de sofisma: parte de uma premissa falsa para construir um raciocínio lógico, que tem como meta postular-se como verdade.

Se a igreja é contra a união homoafetiva, basta não realizar cerimônias dessa natureza. Embora eu discorde, a leitura que as instituições cristãs fazem da Bíblia [transformando a homossexualidade em pecado] é uma leitura possível, e seria incoerente a igreja ir de encontro ao seu documento maior. Mas isso vale para o intramuros cristão.

À política, então, cabe o dever de conceder direitos aos gays, lésbicas, bi, travestis e transexuais, ficando aos cidadãos – não aos fiéis – a deliberação sobre as leis que normatizem a convivência em sociedade. Mesmo porque se fosse haver uma política com base na religião, de qual religião estaríamos falando? Da cristã? Espírita? Muçulmana? Judia? Umbandista? Do candomblé? Como são muitas – e isso é saudável para a constituição cultural de qualquer povo –, nenhuma governa, e o Estado aceita todas, inclusive o ateísmo. Simples.

Propaganda mostra o amor nas suas mais diversas e possíveis combinações 

A trans crucificada
A minha visão de mundo está calcada num tripé: felicidade, amor e liberdade. O movimento GLBT é legítimo e sempre terá o meu apoio. No estado democrático de direito, é fundamental que as minorias – este termo ultrapassa a ideia de quantidade – tenham os seus direitos resguardados. Do contrário, não há nem cidadania, nem democracia.

Não fiquei chocado com a crucificação encenada – isso mesmo, encenada – por uma atriz transexual. Da mesma maneira que muitos atores, inclusive da Globo, se propõem a isso em época de semana santa, que mal há no que fez a moça? Não houve ali qualquer tentativa de ridicularizar a fé cristã. Tampouco existiu banalização, algo que a igreja, evangélica e católica, sempre gostou de fazer com os “pertences de Jesus”, comercializando-os e lucrando horrores.

Viviany Beloboni foi mais uma atriz a representar, pelas vias artísticas,
uma passagem marcante da história humana
[Foto: www.noticias.uol.com.br]

De todo modo, é prudente ter cuidado com os símbolos, independente da religião. Particularmente, não me apego a símbolos. Pra mim, não passam de pedaços de madeira, metal e gesso. A própria igreja é um símbolo, ao qual nunca me afeiçoei. Embora sejam isso – apenas símbolos –, possuem representatividade para muita gente.

É possível que a ideia de reproduzir a simbologia religiosa tenha como alvo pastores midiáticos que valorizam a homofobia. Mas, ao fazer isso, o movimento atinge toda a cristandade, inclusive pessoas que militam pelos direitos de homo, bi, travestis e transexuais. É importante que a militância GLBT tenha estratégia e não dê aos abutres os argumentos que eles tanto querem. Definitivamente, não é quebrando imagens ou colocando um crucifixo no ânus – como já se viu na Marcha das Vadias, em 2013 – que se resolve o problema do preconceito. Os movimentos que buscam espaço na polis sem o uso da violência são todos legítimos. É só não meter os pés pelas mãos.

A democracia no argumento falacioso
Por outro lado, quem critica o movimento gosta de usar a ideia de democracia para destilar preconceito, como se isso fosse um direito. Não. O estado democrático de direito, cuja representação máxima é a Constituição Federal, não prevê em qualquer artigo o exercício da discriminação. Então, atentar contra alguém de forma preconceituosa passa a ser antidemocrático e, pasme, até crime.

Nesse sentido, é justo dizer que qualquer cidadão tem o direito de questionar e discordar da cena protagonizada pela transexual. E por quê? Porque ela poderia ter agido de diversas outras maneiras, mas, livre e conscientemente, deliberou fazer aquilo. Ou seja, a partir das vias racionais assumiu uma conduta. Isso passa a ser uma questão moral.

Trecho da Constituição Federal
[Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm]

Em contrapartida, questionar e discordar de alguém por ser gay, lésbica, bi, travesti ou transexual não é legítimo. As questões de gênero, ao contrário do que prega o ‘pastor’ Malafaia, não estão no âmbito do comportamento. Falamos aqui de uma condição. A natureza [instinto] do indivíduo se impõe diante de qualquer iniciativa racional, e ser gay, por exemplo, já não é uma escolha. Portanto, não temos, agora, uma questão moral. Qualquer questionamento torna-se descabido.

Mesmo assim, as polêmicas da Parada Gay em São Paulo – que foram isoladas, diga-se –servirão para legitimar a homofobia. E isso implica, pelo menos, três erros: primeiro, nada justifica um preconceito; segundo, quem erra não erra porque é gay, erra porque cometeu um ato falho, assim como você, hétero, está cansado de fazer; terceiro, muitos começarão uma cruzada contra os gays por causa dos eventos do último domingo, mas já tinham restrições aos homossexuais antes disso.

De acordo com estimativas da Polícia Militar, a manifestação reuniu 20 mil pessoas.
Segundo os organizadores da Parada, eram aproximadamente 2 milhões de pessoas.
[Foto: www.folha.uol.com.br]

A tentativa de inverter a ordem das coisas virá outra vez. Heterossexuais e porta-vozes do cristianismo se colocarão como vítimas. Aliás, as frases quase sempre começam da mesma maneira: “Estão tentando nos impor...” ou “Não que eu seja homofóbico, mas...” ou “Eu respeito a escolha dele, mas não concordo”. Besteira! Respeita nada. Além disso, não cabe a alguém discordar de um gay, mesmo porque, como já dito, só é possível a discordância em relação a uma deliberação racional.

Mas, descontente, haverá quem bote a democracia no meio: “Eu tenho o direito de manifestar a minha opinião”. Hitler manifestou opinião matando judeus. Um estuprador manifesta opinião transando com alguém, à revelia da vítima. O pedófilo manifesta opinião atentando sexualmente contra uma criança.

quinta-feira, 26 de março de 2015

RESISTIR É PRECISO: preconceito se combate com enfrentamento

O beijo de Teresa [Montenegro] e Estela [Timberg], no primeiro capítulo da novela Babilônia, trama das 21h da TV Globo, deu pano pra manga. Óbvio que deu. De um país calcado nas religiões cristãs não dá pra esperar muita coisa. A tolerância, definitivamente, é um valor escasso na sociedade conservadora. Cabe às mentes mais abertas enfrentar o preconceito e reverter o quadro. Não é fácil, porque a questão vai muito além de alguns segundos de teledramaturgia. A ficção apenas reproduz as dinâmicas humanas mais agudas pelas vias artísticas. E a arte, por excelência, é afeiçoada às transgressões. O problema é mais embaixo. Tentemos, então, entender de onde vem a discriminação.

O Brasil, como é sabido, foi colonizado pelos portugueses. A tiracolo, Cabral e Caminha trouxeram a Igreja Católica, já que política e religião caminhavam de mãos dadas na Europa. Tudo em nome de riquezas, terras e poder, e às custas, lógico, do trabalho escravo executado por nativos e africanos. Verdade seja dita, a Igreja já se encontrava em franca decadência na transição do século XV para o XVI, pois a bonança dos tempos de Idade Média caíra sensivelmente. Mas o Papa ainda ditava normas. O Estado, claro, acatava.

Prova dessa relação – que o nosso passado provou ser promíscua – é que boa parte das nossas cidades foi fundada sobre duas fortalezas: a sede do governo e o templo religioso. Nas cidades menores, isso ainda é muito visível. Mesmo nas maiores, as praças, com igrejas – católicas, sempre – cravadas em seus pontos centrais, não deixam dúvidas. Até em São Paulo isso ocorre: o marco zero da maior metrópole do país é a Praça da Sé, sede de uma catedral capaz de abrigar oito mil pessoas.

A Catedral da Sé não é a maior igreja do país.
O Templo de Salomão, da Igreja Universal do Reino de Deus, comporta 100 mil fiéis sentados.
[Foto: www.vidaeenergia.com.br]

Ao passo que o catolicismo perdia campo, começam a surgir as religiões protestantes, fruto da Reforma proposta por Martinho Lutero, em 1517, e consequência imediata do rompimento de Henrique VIII com o Vaticano, ação que fundou o Anglicanismo, em 1533. A partir daí, o protestantismo se subdividiu. No contexto atual brasileiro, os representantes mais conhecidos são os evangélicos.

Mesmo apresentando diferenças – os católicos adoram santos, os evangélicos, não –, as duas Igrejas se entendem na essência: ambas têm o mesmo Deus e o mesmo profeta. Nesse sentido, por serem mais modernas e identificadas especialmente com os jovens, as religiões evangélicas, muito fragmentadas, cresceram, fazendo com que o contingente cristão se mantivesse grande.

Assim, a ideia de Sodoma e Gomorra continua a fissurar os fundamentalistas; e a concepção do forjamento de Adão e Eva também serve de base para açoitar os homo e transexuais. Perceba que o cristianismo, de religião perseguida pela Roma pagã, passou a perseguir. Da mesma forma que as religiões de matriz africana foram caçadas aqui no Brasil nos tempos da soberania católica, o dedo agora aponta para gays, lésbicas e transexuais. Viver num país de mentalidade tacanha nunca foi fácil.

Aqui, valem algumas observações: a Bíblia foi escrita num momento em que os paradigmas morais recriminavam as relações homoafetivas. Natural que no Livro haja menções reprovando o ato, posto que diante das ilicitudes humanas, ser gay era uma delas. Porém, como a história demonstra, os parâmetros morais mudam, seja em eras ou espaço. O mundo, por incrível que pareça, avançou.

Trecho bíblico do livro de Romanos [1:26-27]

Indo mais além, a Bíblia trabalha com metáforas, a maioria delas explorando referências da época, e ela se propôs a isso justamente para cair no entendimento coletivo da época – o mesmo procedimento foi usado pelas mitologias. O Salmo 23, dos mais conhecidos da doutrina, em seu primeiro versículo prega: “O Senhor é o meu pastor, nada me faltará”. Temos aí uma frase que se apodera de um símbolo do passado: a sociedade era campestre, de maneira que a ideia do pastoreio passa a quase não fazer sentido numa civilização atual, majoritariamente urbana.

Por isso, parafraseando uma colocação do professor da Unicamp, Leandro Karnal, se a Bíblia fosse escrita hoje, o Salmo seria: “O Senhor é a minha internet 4G, e sempre pegará”. A ideia continua a mesma, mas os símbolos mudaram. E cá pra nós: a Bíblia, como não poderia ser diferente, é fundamentalmente simbólica. Lê-la ao pé da letra pode ser imprudente.

Outro ponto em que os religiosos se apoiam para condenar os homossexuais é no mito de Adão e Eva e na ideia de multiplicação da espécie que se tem em torno disso. Já escrevi em outra oportunidade que os agrupamentos homossexuais não prejudicam a perpetuação da espécie. O que garante a nossa existência contínua é uma medicina mais avançada, é tecnologia inovadora, é dar às pessoas saneamento básico digno, educação, segurança para que homens, mulheres e crianças não morram nos becos urbanos. A carência de tudo isso pode emperrar a nossa perpetuação, não os gays. Aliás, ao que consta, a população mundial só tem aumentado. Tanto é assim, que os casais heterossexuais não dão conta de criar os filhos que botam no mundo. Pois pasme: há casais homossexuais querendo adotar os descendentes abandonados pelos héteros.

[Foto: www.direitolegal.org]

Além do mais, boa parte dos revoltosos incorre num erro crucial: apontar a Bíblia como a doutrina verdadeira, sendo que outras expressões religiosas também podem corresponder aos nossos exercícios de fé. Isso à parte, seria também muito cômodo exigir do livro sagrado as respostas para todos os dilemas. “Como resolvemos isso?”. “Ah, olha na Bíblia!”. Não. A vida é um pouco mais difícil, e reduzir as soluções a um livro é limitar demais a nossa existência. E, imagino eu, quem concebeu as Escrituras não tinha tamanha pretensão. Se a Bíblia é capaz de trazer luz a uma pendência, ótimo. Mas impossível conter ali as soluções para todas elas. O que significa dizer que não é equivocado lançar mão do âmbito sagrado para resolver dificuldades. Mas é preciso ter o entendimento de que alguns abacaxis terão de ser descascados por nós, com reflexão, debate, atitude, com luta. A vida em sociedade tem disso.

Saindo do campo da fé, segundo a teoria da responsabilidade moral do ato, um indivíduo é culpado pelo que cometeu, se agiu de maneira livre e consciente. Por isso, só o homem responde a processos judiciais, já que os outros animais agem instintivamente, inconscientes e reféns do impulso que são. Porém, ainda que o ser humano seja municiado de razão, o que lhe permite liberdade e consciência na ação, nem sempre somos regidos pelo princípio da contingência [as coisas são de uma maneira, mas poderiam ser de inúmeras outras]. O princípio da necessidade [as coisas são da única maneira que poderiam ser] também afeta os humanos. Quando isso ocorre, isto é, quando alguém faz algo sem ter a possibilidade de fazer diferente, a responsabilidade não é atribuída a ele.

É o que acontece com os gays. Eles não escolhem ser gays. Nesse caso, a natureza é mais forte que a vontade. Por isso, não se fala em opção sexual, mas sim orientação. É alheio à vontade de um gay ser gay. Ele simplesmente é. De igual modo, acontece com o heterossexual: eu não escolhi gostar de mulheres. Papai não me ensinou a desejá-las – e nem seria possível. A minha natureza me levou a isso. Até por esse aspecto, é escroto falar em cura gay. Não é algo que se ensina e se aprende. Essas questões vão além da nossa capacidade racional. São do âmbito sentimental, carnal e da própria identidade.

Segundo Nietzsche, em Além do bem e do mal, "não sou eu que decido. A minha consciência dispara como um cavalo selvagem. Logo, algo pensa em mim".
[Foto: www.espacoetica.com.br]

Nesse sentido, mais absurdo do que culpar um gay por ser gay, é querer que ele deixe de sê-lo. É como exigir que um negro tenha menos melanina. É como cobrar de um japonês que não tenha o olho ‘puxado’. É ditar que o sorriso de uma criança não seja inocente. Impossível. O que os fundamentalistas precisam entender é que a orientação sexual transcende o querer: é uma força maior agindo sobre o indivíduo, que o instrui em busca do amor e da felicidade. Qualquer coisa que vá de encontro a isso, é ceifar a possibilidade de amar e ser feliz, prerrogativa de qualquer indivíduo, bondade que um cristão, por essência, deveria alimentar.

Confuso de entender? Bastante. Agora, imagine todos esses conflitos na cabeça de um homossexual ou transexual. Pelo menos de cara, há sofrimento. E, por isso, como se não bastasse toda a angústia existencial por que passa, receber dos heterossexuais uma dose cavalar de preconceito e intolerância é uma canalhice da qual a sociedade pode abri mão sem hesitar. Não há culpa. E se não há culpa, o julgamento dos homens e dos deuses é sem fundamento. Só falta a nós o entendimento de que o organismo humano é complexo e os mistérios entre o céu e a terra, intermináveis.

Como a resistência por parte da maioria afeta a liberdade de ir e vir de um determinado grupo, a luta dos homo e transexuais tem bases políticas. O que significa dizer que esses grupos minoritários buscam resguardar o seu espaço na polis, nas dimensões públicas. Sendo assim, numa discussão política, livros sagrados e religiões não contribuem, não oferecem parâmetros racionais e pertinentes para a boa convivência numa sociedade permeada por identidades distintas e, por vezes, conflitantes. Outro fator importante: o Estado, gerenciado pela política, é laico, e, pelo menos no caso do Brasil, desamarrado da religião desde 1889, início da República por essas bandas.

No final deste texto ou ao término de uma conversa, alguém continuará bradando a frase que dá um tapa com luva de pelica em gays, lésbicas e transexuais: “eu respeito, mas não concordo”. O fato é que não cabe concordar ou discordar. Independente disso, com a anuência ou não dos reacionários, vai continuar tendo beijo gay, sim. Tanto na novela, como na vida.

quinta-feira, 5 de março de 2015

OLHOS DE LINCE: o amor é mais esperto do que parece

“O amor é cego”. Esse é o mote que me leva a escrever sobre tema tão espinhoso e, igualmente, saboroso. Porque o amor é bem isso: a afeição de valores opostos, contradições que se assimilam, um caldeirão de parâmetros que, em tese, não se misturam. Mas, como já dito, o assunto em voga é o amor, e tudo lhe é lícito. Enfim, amar é uma ação que representa todas as variáveis da nossa existência em permanente conflito, especialistas em botar no divã a nossa identidade, tornando expostas as crises e fragilidades que fazem do ser humano um habitante forte deste mundo, mas também titubeante, pois amor e sofrimento são indissociáveis. De igual modo, o sentimento amoroso é nada, porque tudo teima em ser muito incerto e passível de reviravoltas.

Sim, o amor pode acabar. Ainda que o término seja fator improvável no auge da relação, tudo pode ruir. Aliás, escrevi, em 2012, que os relacionamentos tendem ao fracasso, tamanhos são os desafios pelos quais ambos passam a cada dia, seja no contato de um com o outro, seja na interação de cada um com o mundo. Os meandros da convivência humana são inúmeros, e a todo momento a forma como encaramos a companhia muda, pelo simples fato de que o mundo nos molda segundo a segundo. Porém, importante frisar: o ponto final é uma probabilidade, não uma certeza. Mesmo porque as certezas em relação ao amor, assim como a respeito das questões metafísicas, são traiçoeiras.

As saliências por que passa o amor dependem muito do comportamento de cada um. À medida que o sentimento traz sossego às partes, a generosidade ganha campo, e ambos conseguem ter espaço para vivenciar suas vidas. A despeito do contato estreito, é importante que os indivíduos continuem a ter suas rotinas, algo que desprenda o casal como combate à monotonia. Desde que a liberdade de cada um não aborreça o que é pertinente aos dois [ou às duas], vida que segue. Em contrapartida, o egoísmo se mostra prejudicial à relação e ao próprio amor, uma vez que negar independência ao outro, além de não ser pertinente ao amor, é flertar com o fim. Ser egoísta não é amar, é ser possessivo. E querer a posse da companhia não denota apenas arrogância, como dá as mãos à paixão, valor oposto ao amor.

[Fonte: www.vivirbienesunplacer.com]

Então, se não há garantias de que o relacionamento dará certo, o que fazemos? A gente caga e anda pras perspectivas nebulosas, e cai de cabeça naquilo que nos chama. Lembre-se: há boas chances de não dar certo, mas vai que dá! Ainda que não dê, ponto pra ambos, que, até o segundo derradeiro, viveram a intensidade que a vida nos exige. Na hipótese de dar errado – e se isso ocorrer, você estará na fossa, certamente –, o maior desafio não é apagar da memória as boas conversas, a troca de olhares, as risadas, os acolhimentos. Não. A tarefa, que por vezes ganha feições de monstro, posto que nos faz pequenos, é o inverso: tirar da cabeça tudo aquilo que se vislumbrou para o futuro. O foda da história não é o beijo que já foi dado, mas sim os que não mais serão consumados. É trabalho árduo reprogramar os sentimentos: enquanto a razão quer se recuperar, o coração é esperançoso, e briga contra as imposições da inteligência.

Com exceção do fim – ou da iminência dele –, o amor está escorado nas condutas racionais [claro que uma pitada ou dose de paixão, de transgressão, faz um bem danado para o sentimento se renovar, ganhar força e resistir aos altos e baixos pertinentes à vida. Mas isso é assunto pra logo mais]. É justamente a característica racional do amor que me traz a crença de que amar não tem nada a ver com cegueira. Ao contrário, o amor vê. E por quê? Porque ele é a construção, passo a passo, de uma história, cujo elemento fundador não é a tensão, a pressa, o ímpeto. Mas a paciência, o entendimento de que situações adversas virão e a capacidade de dialogar. Assim, o amor não só não é cego, como tem visão microscópica, capaz de despertar o bom pensamento em proveito de uma relação gostosa, pacífica e generosa.

Por essas e outras é que, assim como “o amor é cego”, abomino também a expressão “amor à primeira vista”. Ninguém ama ninguém ao visualizar a pessoa uma única vez. O que surge daí é a atração, a surpresa, talvez tesão. Ou seja, tudo vinculado às nossas aptidões sensíveis, aquelas que fazem o nosso corpo sentir as sensações da primeira impressão. Mas tudo isso pode ser – e normalmente é – demasiado enganoso. Ou pode não ser, e a relação se constituir adiante e provar-se forte. Mas isso irá acontecer porque, conscientemente, ambos chegaram a essa conclusão, observando, tentando, mudando, gostando. A tão propalada “primeira vista” nos leva a quebrar a cara, e, pelo menos comigo, só deu certo uma vez.

[Fonte: www.blogsdagazetaweb.com.br]

Os equívocos da primeira troca de olhares se encaixam naquilo que entendemos sobre o amor idealizado ou platônico [justiça seja feita, Platão se refere às idealizações, vinculando-as a todos os nossos afetos. A ideia de relacionar o amor platônico especificamente às pendengas dos relacionamentos é uma adaptação nossa]. De todo modo, quando a adolescente se apaixona pelo ator, por exemplo, ela não se afeiçoa ao homem, mas à ideia que ela constrói do homem. Isso ocorre devido ao fato da nossa capacidade de imaginar ser muito superior à materialidade das coisas e das gentes. Tudo em nós é limitado, menos o nosso potencial de fantasiar a vida.

Por isso, é comum a gente sentir atração – não amor – por alguém, com base no que vemos. No entanto, a partir do momento que se estabelece o diálogo, a ilha da fantasia pode explodir, e daí vêm a frustração e o desengano. Por isso é que Platão ficou marcado por ser um filósofo dualista, pois dividiu a nossa existência entre corpo e alma. O corpo pode ser apreendido pelos nossos sentidos e é perecível. A alma, por sua vez, representada pelo pensamento, foge às nossas aptidões sensíveis e é infinita. Como, então, tomamos ciência da alma, já que não a vemos, tocamos, cheiramos? Conversando, trocando ideia, isto é, racionalizando a relação. Perceba que a inteligência não é mera coadjuvante nessas coisas do amor.

Mas nessas coisas do amor também é necessário tempero. Não há aqui contradições. Continuo defendendo que o alicerce do amor está na razão, já que a sua concepção se dá no pensamento e no conhecimento por quem se tem afeto. Mas a razão, amiga íntima da ciência, é fria, cheia de pressupostos e sem aventura. E o amor precisa de uns sacolejos de vez em quando pra botar a gente pra cima: uma viagem não premeditada, um presente fora de data, um bombom de supetão, qualquer bobagem dita pra mera troca de sorrisos, um beijo desinteressado.

[Fonte: www.petcomufam.com.br]

Ah, o beijo. Uma das portas de entrada do amor, o tapete vermelho para o sexo, porque um beijo sem graça é capaz de melar qualquer pretensão mais carnal ou lúcida. Uma transa sem química, também. Falamos aqui do beijo e do sexo, duas práticas do homem que permitem à espécie as melhores delícias da vida. O beijo, delicado ou com vontade, umidifica a alma, nos provoca sensação de calmaria e desejo e realiza a troca de prazeres adquiridos até aquele instante de vida.

Já o sexo é daquelas coisas que a evolução não nos tirou. Aliás, se teve uma coisa entre a transição do bicho pro homem que não se perdeu, pode cravar: foi o sexo. Por mais delicado que seja o ato – e, certamente por isso, sem graça ao extremo – o ato sexual é provido de brutalidade, da intensidade que está habilitada a apimentar o amor, por essência racional. O nível de intimidade da cópula não se compara a nada: os corpos nus, mãos a desvendar os mistérios de cada curva, lábios que passeiam por aqui e ali, calor que brota da pele de dois seres que, pelo menos ali, naquela fração de tempo, se bastam, se completam, se querem. Sexo e amor, amor e sexo. De todas as parcerias, a mais bem sucedida. Como é bom amar e transar!

Talvez você me pergunte: “Thiago, tem certeza de que o amor é tudo isso mesmo?”. Não. É nisso que creio, hoje. Amanhã, pode ser que mude. O fato é que o amor está por aí, à solta, pegando na nossa mão, fazendo um carinho no rosto, tocando os lábios meus e seus. Com razão, paixão ou ambos, que amemos até o último segundo de vida. Se os afetos reais nos dão força, aprimoram a nossa existência e fazem a gente sofrer, os relacionamentos idealizados são ricos em fantasia, o que, convenhamos, é deveras bem-vinda num mundo, por vezes, tão pra baixo.

Por isso, nos dias de calor, de chuva ou de frio, na noite estrelada ou nebulosa, nos momentos de maior tensão ou contentamento, seja você quem eu realmente penso, seja você só uma idealização minha, saiba, sem medo de me arrepender ou de sangrar, certo de que a possibilidade de ser feliz existe, que eu amo você.