quinta-feira, 27 de outubro de 2016

PEC 55: crise, mentiras e alternativas

Amanhã (13) está prevista no Senado a votação em 2º turno da PEC 51 (antiga PEC 241, quando tramitou na Câmara), que estabelece o teto para os gastos públicos até 2036. No último dia 30, a Proposta de Emenda à Constituição foi aprovada em 1º turno com 61 votos favoráveis e 14 contrários. Como já passou pela Câmara, caso tenha nova adesão superior a 3/5 da casa, a PEC fica aprovada, sem a necessidade de sanção presidencial. O objetivo de Michel Temer é que toda a tramitação ocorra este ano para que, em 2017, as regras passem a valer. Saúde e Educação entram na contenção em 2018.

Os repasses serão feitos com base na quantia empenhada no ano anterior, corrigida pela inflação dos últimos 12 meses. Botando na ponta do lápis, o principal pecado dessa política fiscal é não proporcionar aumentos reais aos investimentos, congelando-os no parâmetro da inflação, além de viabilizar perdas ao longo de 20 anos, no comparativo com os índices atualmente despendidos. As medidas valem por duas décadas, mas daqui a dez anos o presidente em exercício poderá revê-las. Antes disso, só por meio de outra PEC.

Mas a PEC 55 acaba por falhar também no diagnóstico. Um déficit fiscal pode ser gerado por dois problemas: muito gasto ou pouca receita. Temer quer atacar o primeiro, quando o déficit do Brasil está, fundamentalmente, no segundo. O país não gasta mais do que deveria. Basta ir a uma escola ou hospital público para entender isso. Então, se a receita cai, é preciso encontrar formas de reavê-la. Em nota, o Conselho Federal de Economia (Cofecon) rechaçou a PEC e explicou os motivos do seu posicionamento. No vídeo abaixo, Laura Carvalho, professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, fala sobre a Proposta, seus erros e exageros e em que caminho deveria seguir a política fiscal brasileira.


Que o país precisa reequilibrar as suas contas, isso é inegável. Culpa de Dilma, que deveria ter revogado, em 2013 (e não dois anos depois), a política de desoneração fiscal e concessão de créditos, que foi tacada certeira de Lula em 2008 para amenizar os efeitos do epicentro da crise: a quebra do mercado imobiliário dos EUA. A bancarrota norte-americana, aliada à decisão tardia de Dilma de reformular a política econômica (por interesse eleitoreiro), pôs o Brasil na conjuntura atual: desemprego em alta, déficit no orçamento e recessão. Pior: as conquistas inéditas de doze anos de gestão do PT (2003-14) – avanços que nenhum outro governo ousou gerar – sofrem retração.

Mas uma coisa é tomar medidas pontuais, proporcionais ao problema vigente. Outra é o que Temer quer fazer. Se a estimativa é que o país volte a crescer no próximo ano ou no mais tardar em 2018, por que estipular um teto de gastos públicos para as próximas duas décadas? É verdade que um PIB positivo não implica orçamento no azul. É provável que o déficit perdurará por mais de dois anos. Mas exagero achar que levará duas décadas para sair do vermelho. Como já dito, cortar despesas é importante, mas não pode ficar na afirmação vazia e genérica. É preciso pontuar que áreas sofrerão cortes (maiores e menores) e quais, por questões de necessidade básica, ficarão de fora. O resto é neoliberalismo vazio.

Alguns gastos são fundamentais, dentre os quais estão saúde e educação. Se com os investimentos atuais escolas e hospitais deixam a desejar, engessar o orçamento voltado às duas áreas é decretar a falência de ambas. Sendo assim, o mais coerente seria tirar saúde e educação do contingenciamento e, para o resto, regular os gastos. Numa comparação com o ambiente doméstico – Temer adora esse tipo de paralelo! –, é como se eu tivesse a necessidade de cortar gastos por estar desempregado. O que faço, então? Duas listas: uma com as necessidades elementares e outra, com as supérfluas. Não posso deixar de comprar alimentos básicos e água. Aí entra a segunda lista: cortar a TV a cabo, sair menos aos finais de semana, deixar de fazer uma viagem programada, comprar menos roupas, calçados, objetos para a casa.

A PEC e os bilhões de reais em perdas
Segundo a Nota Técnica nº 28, de Fabiola Sulpino Vieira e Rodrigo Benevides, publicada em setembro pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão vinculado ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, em 20 anos de gastos congelados a Saúde pode perder até R$ 1 trilhão em investimentos. O pretexto do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, de que o montante atual é suficiente, não condiz com a realidade. Em 2013, o Brasil investiu em saúde, por habitante, um total de US$ 591. A Argentina, no mesmo ano, colocou o dobro: US$ 1.167. Se comparado ao gasto dos EUA com cada cidadão, a disparidade é ainda maior: os norte-americanos investiram, per capita, US$ 4.307, sete vezes mais que o Brasil.

Se fosse aplicada há 20 anos, a PEC só não teria sido prejudicial em 2003 [Fonte: Fabiola Sulpino Vieira e Rodrigo Benevides/Ipea]
Ainda de acordo com o estudo, outro problema a que a PEC 55 parece não atentar é o envelhecimento da população brasileira. Com mais idosos, a demanda do SUS vai aumentar, algo incompatível com a medida tomada por Temer. Isso prova duas coisas: os governos do PT não conseguiram solucionar esse gargalo do país e o problema do Brasil não é só a alocação dos gastos, como argumenta Meirelles. Segundo os autores do estudo, o problema é de gestão e investimento. Enfim, falta gastar melhor, como afirma o ministro, mas falta dinheiro também, e ele será ainda mais escasso na vigência da Proposta.

Outra área de relevância social que sofrerá com a contenção de investimentos é a assistência. Em outro estudo do Ipea, intitulado “O novo regime fiscal e suas implicações para a política de Assistência Social no Brasil”, de Andrea Barreto de Paiva, Ana Claudia Cleusa Serra Mesquita, Luciana Jaccoud e Luana Passos, investimentos em programas como o Bolsa Família cairão quase pela metade em 20 anos: de 1,26% do PIB, em 2015, para 0,7% daqui a duas décadas. Em valores, as perdas podem chegar a R$ 868 bilhões até 2036 (Fonte: Folha de S. Paulo).

Na educação, se vigorar pelos próximos 20 anos, a PEC irá gerar perdas na ordem de R$ 480 bilhões, segundo dados da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara apresentados na coluna de Jânio de Freitas, no último dia 16, também na Folha de S. Paulo. O argumento de que a população brasileira vai envelhecer e, com isso, o número de crianças e jovens irá diminuir, reduzindo também a demanda por escola, seria sólido, não fosse o déficit atual entre o que é investido em educação e o que é preciso fazer para torná-la um lugar melhor. Em resumo, é impensável diminuir o orçamento da área.

Quanto maior for o crescimento do PIB, menor será o percentual de investimento em saúde 
[Fonte: Fabiola Sulpino Vieira e Rodrigo Benevides/Ipea]
Por outro lado, os programas que oferecem subsídios e desoneram tributos do setor produtivo, a chamada “bolsa empresário”, não sofrerão cortes, como apresentou matéria da Folha de S. Paulo. O custo disso em 2017: R$ 224 bilhões a menos nos cofres da União, ou seja, 3,4% do Produto Interno Bruto. Em valores correntes, a política fiscal para o ramo garante uma fatia do orçamento sete vezes maior que a destinada para o Bolsa Família (R$ 29,7 bi), bem acima também dos investimentos em saúde (R$ 94,9 bi) e educação (R$ 33,7 bi). Aliás, os valores postos em saúde e educação somados, excetuando gastos com pessoal, atingem pouco mais da metade do que o governo deixa de arrecadar junto ao setor de produção.

O pano de fundo da crise e as reais motivações de Temer
A partir daí, algumas constatações: é falacioso o argumento de que os encargos trabalhistas impedem mais contratações: se de um lado as empresas e indústrias arcam com custos elevados, por outro o Estado assopra a ferida. Segundo: importante que o setor produtivo não perca força por ser gerador de emprego, mas não entrar no contingenciamento, ainda que mínimo, comprova que o objetivo de Temer não é equilibrar as contas, e sim implementar o projeto denominado “Uma ponte para o futuro”, que, segundo ele, não foi aderido por Dilma. Justamente por isso – e não porque Dilma cometera crime de responsabilidade – houve a troca da presidente pelo vice no Planalto, segundo o próprio beneficiário do processo, Michel Temer.


Isso demonstra que Temer e sua equipe econômica parecem não entender de... economia, mesmo mal que acometia a ex-presidente e seu time. O capitalismo é um modo de produção cuja característica principal é o trajeto em uma linha curva. Trocando em miúdos – e quem tem mais de 30 anos como eu já pôde perceber –, a economia capitalista é oscilante: ela progride e o momento mais próspero é sucedido por uma crise, a partir da qual é preciso se reorganizar para voltar a crescer. Pois bem. Se o capitalismo é cíclico, por que estabelecer uma medida que será válida por 20 anos? Ela é apropriada para um período de recessão, mas o Brasil, como já dito, irá se recuperar antes de 2036. Aliás, é provável que o país passe por pelo menos outras duas crises econômicas até lá. Na fase superavitária, não há motivo para manter o investimento vinculado à inflação. Neste caso, recorrer à receita líquida volta a ser a melhor alternativa. Em suma, é uma medida muito duradoura e austera para um cenário que não será o mesmo ao longo duas décadas.

O papel da dívida pública no orçamento da União
Quando se discute o orçamento, alguns pontos como saúde, educação, cultura, programas sociais, infraestrutura, salário mínimo e previdência sempre estão em voga, na mira dos cortes, justamente os parâmetros que fazem a diferença para ampla porção da sociedade brasileira. Mas a maior fatia do orçamento da União é destinada a pagar a dívida pública e os seus juros.

Essa dívida é composta por três componentes: dívida interna em mercado, dívida externa e encargos no Banco Central. Somados, eles atingiram em 2015, segundo relatório anual do Tesouro Nacional, um montante bruto de R$ 778,1 bilhões. O orçamento reservou R$ 162,2 bilhões para saldar a dívida. E os R$ 615,9 bi restantes? São liquidados pela União:  o governo emite títulos da dívida e os põe à venda para sanar o déficit do orçamento com o dinheiro arrecadado. Os títulos são comprados no mercado por investidores – convenhamos, o trabalhador que vive com um salário mínimo por mês não participa da brincadeira. Esse jogo só aceita grandes fortunas. Quem adquire títulos passa a ser credor do Estado, pois, em troca, quer ser ressarcido com o pagamento de juros. Este percentual pode estar vinculado ao câmbio, à taxa Selic e à inflação.

Isso significa que os credores, além dos bancos, ganham – e muito! – com inflação, dólar e taxa básica de juros altos. Não é difícil entender por que índices que seriam melhores à população estando baixos tendem a permanecer altos, especialmente a Selic. O Bradesco, em 2015, isto é, com o país já em crise, teve lucro de R$ 17,1 bilhões, aumento de 14% em relação a 2014 (Fonte: G1). Na hora de sangrar o orçamento, a dívida e os seus juros não “entram na faca”. Em setembro deste ano, ela atingiu, em valores correntes, R$ 3 trilhões (dívida + juros). De acordo com o Plano Anual de Financiamento, a dívida pode chegar, ao final de 2016, a R$ 3,3 trilhões, o equivalente a mais da metade (55,9%) do PIB registrado no ano passado (R$ 5,9 trilhões) (Fonte: G1). O vídeo a seguir explica o que é a dívida pública, para que serve e como é usada.


O discurso, a prática e as alternativas
Se Temer estivesse preocupado em cortar gastos para a recuperação da economia brasileira, poderia tomar outras medidas: diminuir cargoscomissionados, taxar as grandes fortunas, conter as regalias do Executivo, Legislativo e Judiciário, cortar gastos com propaganda oficial – da qual o novo “presidente” tem abusado bastante. Entre manter privilégios ou direitos, a PEC 55 preserva os primeiros. Poderia também, em tempos austeros, não oferecer coquetel e jantar para mais de 400 convidados, cujo cardápio foi risoto, massa, vinho importado e salmão. Banquete pago com o nosso dinheiro e que Temer, republicano que não é, recusou-se a divulgar. A estratégia? Agradar a base aliada nos dias que antecederam a votação da PEC em primeiro e segundo turnos na Câmara. Claro que o valor não faria diferença para fechar o orçamento, mas se a ordem é conter gastos, é prudente evitar jantares pomposos.

Outra máxima do discurso do governo é o caos. A PEC é pregada como a salvação da lavoura. Sem ela, o país quebra. Rodrigo Maia, presidente da Câmara, vislumbrou a catástrofe, afirmando que sem o teto dos gastos o Brasil vira o Haiti. Conclusão tão exagerada quanto falsa. Mas a receita é antiga, conhecida e habitual em regimes políticos com feições de tirania: o governo planta o medo na população e ele mesmo – e só ele – oferece o remédio para combater o problema. Contando com apoio irredutível do povo, temeroso por momentos difíceis, qualquer ação governamental está legitimada. Foi assim que Bush tocou o terror no mundo em praticamente toda a primeira década do século XXI.

Em tempos de polarização política, maniqueísmos e ódio, é importante não misturar alguns conceitos: o fato de se ter feito oposição a Dilma não implica abanar o rabo para tudo o que o sucessor faz. Por incrível que possa parecer, assim como a ex-presidente, Temer comete erros e age por interesse próprio e de quem o colocou na presidência. Independentemente do partido e da pessoa que se encontram no poder, é preciso discernir a doença do remédio, o problema real da aparente boa intenção em saná-lo, para que daqui a alguns anos a história não nos impute a vergonha.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

SER PROFESSOR

O texto pode soar doutrinário, mas a minha intenção não é legar à humanidade um modo universal de lecionar. Mesmo porque não atingi o que proponho aqui e, quando o fizer – se é que o farei –, será hora de repensar outros parâmetros, ampliar as fronteiras, uma vez que o passar do tempo se incumbe de gerar novas ansiedades em quem chega à escola. Naturalmente, isso impõe a quem nela já está a necessidade de atualizar-se.

Aqui, hoje, em comemoração ao Dia do Professor, apenas constarão a maneira como enxergo a escola e qual entendo ser a atuação do docente e, não menos importante, do estudante no processo de ensino-aprendizagem. É só uma forma de refletir sobre a profissão e homenagear todas e todos que se dedicam à sala de aula – e outros espaços de escolarização – com compromisso celibatário.

[Foto: www.blog.andi.org.br]
Ser professor é ter o domínio da epistemologia referente à disciplina da qual está à frente. Estar alheio ao conhecimento produzido na área seria determinar a morte prematura do estudante. O ambiente escolar pressupõe, claro, as sedimentações da história, mas também as novas demandas do mundo. O pensamento produzido pela ciência, desde que encarado de modo crítico, contribui para a formação do acadêmico. A teoria pressupõe atualização de conceitos e o percurso histórico das investigações científicas. Sabê-los é compreender a evolução da área e o contexto que redundou no momento atual. No caso do Jornalismo, minha área de atuação, é imprescindível apresentar as primeiras publicações impressas e as circunstâncias em que se estabeleceram. Porém é preciso discutir, igualmente, de que forma jornais e revistas podem sobreviver em um cenário dominado pela tecnologia. Essa é apenas uma dentre tantas discussões que o curso pode fazer.

Mas para ser professor não basta isso. Porque sem didática – ou seja, os recursos de exposição do conteúdo e dinâmicas de atividades para fazer a teoria ser compreendida pelo estudante –, o docente é como um livro fechado: o conteúdo está lá, mas se não chega a quem de fato importa, de que adianta? Conhecer as teorias é o ponto de largada. No entanto, sem a didática o competidor não cruza a linha de chegada. Se a escola não se presta a realizar o aprendizado do estudante – e isso só se dá na transformação da teoria em conhecimento, justamente por meio da didática do professor –, melhor seria o docente ficar em casa, ruminando o que sabe na solidão de sua própria companhia. Dependendo da didática, o professor transforma o estudante em aluno, mero espectador de um monólogo. Dependendo da didática, o estudante atua, produz, provoca o docente, desafiando-o a sair das caixas do positivismo, do pragmatismo e de tantos outros “ismos” que ainda atormentam a academia.

Trecho do livro "Extensão ou Comunicação?", de Paulo Freire, publicado em 1968.
[Foto: Thiago Cury Luiz]
Para fechar o tripé, o lado humano não é carta fora do baralho. Parece óbvio, mas não custa lembrar: o professor não é alguém que, na intimidade do seu trabalho, aperta parafusos. A companhia do docente é o estudante, a sua razão de ser, o pedaço que falta para sentir-se inteiro. O discente é quem dá sentido ao professor, a fazer deste alguém ainda admirado, com algum reconhecimento. Ao professor, ter o entendimento de que a escola não pode reproduzir as relações de opressão de que a sociedade já está repleta é fundamental para que a sala de aula cumpra o seu papel de fomentar a cidadania, um dentre diversos princípios democráticos que precisam ser postos em diálogo nos espaços de ensino-aprendizagem. A escola, definitivamente, não deve se limitar ao mero tecnicismo da transmissão de conteúdo, tal como transferimos arquivos de uma pasta para o outra no computador.

Um saravá às professoras e professores que fazem do ofício uma proposta de vida; aos docentes que tanto me ensinaram; aos colegas e companheiras, sem deixarmos de refletir acerca do que podemos fazer para melhorar o que aí está, peitando os retrocessos que as políticas governamentais tentam nos impor com PECs e "escola sem partido"; e aos estudantes, a outra metade da nossa existência, os que nos fazem voltar no dia seguinte com a esperança de que é possível fazer diferente e melhor.