O
beijo de Teresa [Montenegro] e Estela [Timberg], no primeiro capítulo da novela
Babilônia, trama das 21h da TV Globo,
deu pano pra manga. Óbvio que deu. De um país calcado nas religiões cristãs não
dá pra esperar muita coisa. A tolerância, definitivamente, é um valor escasso
na sociedade conservadora. Cabe às mentes mais abertas enfrentar o preconceito
e reverter o quadro. Não é fácil, porque a questão vai muito além de alguns
segundos de teledramaturgia. A ficção apenas reproduz as dinâmicas humanas mais
agudas pelas vias artísticas. E a arte, por excelência, é afeiçoada às
transgressões. O problema é mais embaixo. Tentemos, então, entender de onde vem
a discriminação.
O
Brasil, como é sabido, foi colonizado pelos portugueses. A tiracolo, Cabral e
Caminha trouxeram a Igreja Católica, já que política e religião caminhavam de
mãos dadas na Europa. Tudo em nome de riquezas, terras e poder, e às custas,
lógico, do trabalho escravo executado por nativos e africanos. Verdade seja
dita, a Igreja já se encontrava em franca decadência na transição do século XV
para o XVI, pois a bonança dos tempos de Idade Média caíra sensivelmente. Mas o
Papa ainda ditava normas. O Estado, claro, acatava.
Prova
dessa relação – que o nosso passado provou ser promíscua – é que boa parte das
nossas cidades foi fundada sobre duas fortalezas: a sede do governo e o templo
religioso. Nas cidades menores, isso ainda é muito visível. Mesmo nas maiores,
as praças, com igrejas – católicas, sempre – cravadas em seus pontos centrais,
não deixam dúvidas. Até em São Paulo isso ocorre: o marco zero da maior
metrópole do país é a Praça da Sé, sede de uma catedral capaz de abrigar oito
mil pessoas.
A Catedral da Sé não é a maior igreja do país. O Templo de Salomão, da Igreja Universal do Reino de Deus, comporta 100 mil fiéis sentados. [Foto: www.vidaeenergia.com.br] |
Ao
passo que o catolicismo perdia campo, começam a surgir as religiões
protestantes, fruto da Reforma proposta por Martinho Lutero, em 1517, e consequência
imediata do rompimento de Henrique VIII com o Vaticano, ação que fundou o
Anglicanismo, em 1533. A partir daí, o protestantismo se subdividiu. No
contexto atual brasileiro, os representantes mais conhecidos são os
evangélicos.
Mesmo
apresentando diferenças – os católicos adoram santos, os evangélicos, não –, as
duas Igrejas se entendem na essência: ambas têm o mesmo Deus e o mesmo profeta.
Nesse sentido, por serem mais modernas e identificadas especialmente com os
jovens, as religiões evangélicas, muito fragmentadas, cresceram, fazendo com
que o contingente cristão se mantivesse grande.
Assim,
a ideia de Sodoma e Gomorra continua a fissurar os fundamentalistas; e a
concepção do forjamento de Adão e Eva também serve de base para açoitar os homo
e transexuais. Perceba que o cristianismo, de religião perseguida pela Roma
pagã, passou a perseguir. Da mesma forma que as religiões de matriz africana
foram caçadas aqui no Brasil nos tempos da soberania católica, o dedo agora
aponta para gays, lésbicas e transexuais. Viver num país de mentalidade tacanha
nunca foi fácil.
Aqui,
valem algumas observações: a Bíblia foi escrita num momento em que os
paradigmas morais recriminavam as relações homoafetivas. Natural que no Livro
haja menções reprovando o ato, posto que diante das ilicitudes humanas, ser gay
era uma delas. Porém, como a história demonstra, os parâmetros morais mudam,
seja em eras ou espaço. O mundo, por incrível que pareça, avançou.
Trecho bíblico do livro de Romanos [1:26-27] |
Indo
mais além, a Bíblia trabalha com metáforas, a maioria delas explorando
referências da época, e ela se propôs a isso justamente para cair no
entendimento coletivo da época – o mesmo procedimento foi usado pelas
mitologias. O Salmo 23, dos mais conhecidos da doutrina, em seu primeiro
versículo prega: “O Senhor é o meu pastor, nada me faltará”. Temos aí uma frase
que se apodera de um símbolo do passado: a sociedade era campestre, de maneira
que a ideia do pastoreio passa a quase não fazer sentido numa civilização
atual, majoritariamente urbana.
Por
isso, parafraseando uma colocação do professor da Unicamp, Leandro Karnal, se a
Bíblia fosse escrita hoje, o Salmo seria: “O Senhor é a minha internet 4G, e
sempre pegará”. A ideia continua a mesma, mas os símbolos mudaram. E cá pra
nós: a Bíblia, como não poderia ser diferente, é fundamentalmente simbólica. Lê-la
ao pé da letra pode ser imprudente.
Outro
ponto em que os religiosos se apoiam para condenar os homossexuais é no mito de
Adão e Eva e na ideia de multiplicação da espécie que se tem em torno disso. Já
escrevi em outra oportunidade
que os agrupamentos homossexuais não prejudicam a perpetuação da espécie. O que
garante a nossa existência contínua é uma medicina mais avançada, é tecnologia
inovadora, é dar às pessoas saneamento básico digno, educação, segurança para
que homens, mulheres e crianças não morram nos becos urbanos. A carência de
tudo isso pode emperrar a nossa perpetuação, não os gays. Aliás, ao que consta,
a população mundial só tem aumentado. Tanto é assim, que os casais
heterossexuais não dão conta de criar os filhos que botam no mundo. Pois pasme:
há casais homossexuais querendo adotar os descendentes abandonados pelos héteros.
[Foto: www.direitolegal.org] |
Além
do mais, boa parte dos revoltosos incorre num erro crucial: apontar a Bíblia
como a doutrina verdadeira, sendo que outras expressões religiosas também podem
corresponder aos nossos exercícios de fé. Isso à parte, seria também muito
cômodo exigir do livro sagrado as respostas para todos os dilemas. “Como
resolvemos isso?”. “Ah, olha na Bíblia!”. Não. A vida é um pouco mais difícil,
e reduzir as soluções a um livro é limitar demais a nossa existência. E,
imagino eu, quem concebeu as Escrituras não tinha tamanha pretensão. Se a
Bíblia é capaz de trazer luz a uma pendência, ótimo. Mas impossível conter ali
as soluções para todas elas. O que significa dizer que não é equivocado lançar
mão do âmbito sagrado para resolver dificuldades. Mas é preciso ter o
entendimento de que alguns abacaxis terão de ser descascados por nós, com
reflexão, debate, atitude, com luta. A vida em sociedade tem disso.
Saindo
do campo da fé, segundo a teoria da responsabilidade moral do ato, um indivíduo
é culpado pelo que cometeu, se agiu de maneira livre e consciente. Por isso, só
o homem responde a processos judiciais, já que os outros animais agem
instintivamente, inconscientes e reféns do impulso que são. Porém, ainda que o
ser humano seja municiado de razão, o que lhe permite liberdade e consciência
na ação, nem sempre somos regidos pelo princípio da contingência [as coisas são
de uma maneira, mas poderiam ser de inúmeras outras]. O princípio da
necessidade [as coisas são da única maneira que poderiam ser] também afeta os
humanos. Quando isso ocorre, isto é, quando alguém faz algo sem ter a
possibilidade de fazer diferente, a responsabilidade não é atribuída a ele.
É
o que acontece com os gays. Eles não escolhem ser gays. Nesse caso, a natureza
é mais forte que a vontade. Por isso, não se fala em opção sexual, mas sim orientação.
É alheio à vontade de um gay ser gay. Ele simplesmente é. De igual modo,
acontece com o heterossexual: eu não escolhi gostar de mulheres. Papai não me
ensinou a desejá-las – e nem seria possível. A minha natureza me levou a isso.
Até por esse aspecto, é escroto falar em cura
gay. Não é algo que se ensina e se aprende. Essas questões vão além da
nossa capacidade racional. São do âmbito sentimental, carnal e da própria
identidade.
Segundo Nietzsche, em Além do bem e do mal, "não sou eu que decido. A minha consciência dispara como um cavalo selvagem. Logo, algo pensa em mim". [Foto: www.espacoetica.com.br] |
Nesse
sentido, mais absurdo do que culpar um gay por ser gay, é querer que ele deixe
de sê-lo. É como exigir que um negro tenha menos melanina. É como cobrar de um
japonês que não tenha o olho ‘puxado’. É ditar que o sorriso de uma criança não
seja inocente. Impossível. O que os fundamentalistas precisam entender é que a
orientação sexual transcende o querer: é uma força maior agindo sobre o
indivíduo, que o instrui em busca do amor e da felicidade. Qualquer coisa que
vá de encontro a isso, é ceifar a possibilidade de amar e ser feliz,
prerrogativa de qualquer indivíduo, bondade que um cristão, por essência,
deveria alimentar.
Confuso
de entender? Bastante. Agora, imagine todos esses conflitos na cabeça de um
homossexual ou transexual. Pelo menos de cara, há sofrimento. E, por isso, como
se não bastasse toda a angústia existencial por que passa, receber dos
heterossexuais uma dose cavalar de preconceito e intolerância é uma canalhice
da qual a sociedade pode abri mão sem hesitar. Não há culpa. E se não há culpa,
o julgamento dos homens e dos deuses é sem fundamento. Só falta a nós o
entendimento de que o organismo humano é complexo e os mistérios entre o céu e
a terra, intermináveis.
Como
a resistência por parte da maioria afeta a liberdade de ir e vir de um
determinado grupo, a luta dos homo e transexuais tem bases políticas. O que
significa dizer que esses grupos minoritários buscam resguardar o seu espaço na
polis, nas dimensões públicas. Sendo assim, numa discussão política, livros
sagrados e religiões não contribuem, não oferecem parâmetros racionais e
pertinentes para a boa convivência numa sociedade permeada por identidades
distintas e, por vezes, conflitantes. Outro fator importante: o Estado,
gerenciado pela política, é laico, e, pelo menos no caso do Brasil, desamarrado
da religião desde 1889, início da República por essas bandas.
No final deste texto ou ao término de
uma conversa, alguém continuará bradando a frase que dá um tapa com luva de
pelica em gays, lésbicas e transexuais: “eu respeito, mas não concordo”. O fato
é que não cabe concordar ou discordar. Independente disso, com a anuência ou
não dos reacionários, vai continuar tendo beijo gay, sim. Tanto na novela, como
na vida.