Achei
a propaganda sutil, sensível e com narrativa muito bacana, surpreendendo a
nossa mente pragmática que sempre espera o encontro de um homem com uma mulher,
e, por isso, se assusta quando duas mulheres ou dois homens se tocam,
compartilhando um sentimento que é lícito e conveniente a todos: o amor.
Os
Malafaias, Felicianos e Bolsonaros da vida berram impropérios porque esquecem [ou
seria pura ignorância?] que em 15 de novembro de 1889 – há mais de um século! –
Estado e Igreja assumiram caminhos independentes. A laicidade da polis prega
que as leis da igreja – seja ela qual for – valem para os rituais religiosos,
mas não governam mais a vida na esfera pública.
Malafaia blasfema contra a democracia. Ele é autor daquilo que chamamos de sofisma: parte de uma premissa falsa para construir um raciocínio lógico, que tem como meta postular-se como verdade.
Se
a igreja é contra a união homoafetiva, basta não realizar cerimônias dessa
natureza. Embora eu discorde, a leitura que as instituições cristãs fazem da
Bíblia [transformando a homossexualidade em pecado] é uma leitura possível, e
seria incoerente a igreja ir de encontro ao seu documento maior. Mas isso vale
para o intramuros cristão.
À
política, então, cabe o dever de conceder direitos aos gays, lésbicas, bi, travestis e
transexuais, ficando aos cidadãos – não aos fiéis – a deliberação sobre as leis
que normatizem a convivência em sociedade. Mesmo porque se fosse haver uma
política com base na religião, de qual religião estaríamos falando? Da cristã?
Espírita? Muçulmana? Judia? Umbandista? Do candomblé? Como são muitas – e isso
é saudável para a constituição cultural de qualquer povo –, nenhuma governa, e
o Estado aceita todas, inclusive o ateísmo. Simples.
Propaganda mostra o amor nas suas mais diversas e possíveis combinações
A trans
crucificada
A
minha visão de mundo está calcada num tripé: felicidade, amor e liberdade. O
movimento GLBT é legítimo e sempre terá o meu apoio. No estado democrático de
direito, é fundamental que as minorias – este termo ultrapassa a ideia de
quantidade – tenham os seus direitos resguardados. Do contrário, não há nem
cidadania, nem democracia.
Não
fiquei chocado com a crucificação encenada – isso mesmo, encenada – por uma
atriz transexual. Da mesma maneira que muitos atores, inclusive da Globo, se
propõem a isso em época de semana santa, que mal há no que fez a moça? Não
houve ali qualquer tentativa de ridicularizar a fé cristã. Tampouco existiu
banalização, algo que a igreja, evangélica e católica, sempre gostou de fazer
com os “pertences de Jesus”, comercializando-os e lucrando horrores.
Viviany Beloboni foi mais uma atriz a representar, pelas vias artísticas, uma passagem marcante da história humana [Foto: www.noticias.uol.com.br] |
De
todo modo, é prudente ter cuidado com os símbolos, independente da religião. Particularmente,
não me apego a símbolos. Pra mim, não passam de pedaços de madeira, metal e
gesso. A própria igreja é um símbolo, ao qual nunca me afeiçoei. Embora sejam
isso – apenas símbolos –, possuem representatividade para muita gente.
É
possível que a ideia de reproduzir a simbologia religiosa tenha como alvo
pastores midiáticos que valorizam a homofobia. Mas, ao fazer isso, o movimento atinge
toda a cristandade, inclusive pessoas que militam pelos direitos de homo, bi, travestis e
transexuais. É importante que a militância GLBT tenha estratégia e não dê aos
abutres os argumentos que eles tanto querem. Definitivamente, não é quebrando
imagens ou colocando um crucifixo no ânus – como já se viu na Marcha das
Vadias, em 2013 – que se resolve o problema do preconceito. Os movimentos que
buscam espaço na polis sem o uso da violência são todos legítimos. É só não
meter os pés pelas mãos.
A democracia no argumento falacioso
Por
outro lado, quem critica o movimento gosta de usar a ideia de democracia para
destilar preconceito, como se isso fosse um direito. Não. O estado democrático
de direito, cuja representação máxima é a Constituição Federal, não prevê em
qualquer artigo o exercício da discriminação. Então, atentar contra alguém de
forma preconceituosa passa a ser antidemocrático e, pasme, até crime.
Nesse
sentido, é justo dizer que qualquer cidadão tem o direito de questionar e
discordar da cena protagonizada pela transexual. E por quê? Porque ela poderia
ter agido de diversas outras maneiras, mas, livre e conscientemente, deliberou
fazer aquilo. Ou seja, a partir das vias racionais assumiu uma conduta. Isso passa
a ser uma questão moral.
Trecho da Constituição Federal [Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm] |
Em
contrapartida, questionar e discordar de alguém por ser gay, lésbica, bi, travesti ou transexual
não é legítimo. As questões de gênero, ao contrário do que prega o ‘pastor’
Malafaia, não estão no âmbito do comportamento. Falamos aqui de uma condição. A
natureza [instinto] do indivíduo se impõe diante de qualquer iniciativa
racional, e ser gay, por exemplo, já não é uma escolha. Portanto, não temos, agora,
uma questão moral. Qualquer questionamento torna-se descabido.
Mesmo
assim, as polêmicas da Parada Gay em São Paulo – que foram isoladas, diga-se –servirão
para legitimar a homofobia. E isso implica, pelo menos, três erros: primeiro,
nada justifica um preconceito; segundo, quem erra não erra porque é gay, erra
porque cometeu um ato falho, assim como você, hétero, está cansado de fazer;
terceiro, muitos começarão uma cruzada contra os gays por causa dos eventos do
último domingo, mas já tinham restrições aos homossexuais antes disso.
De acordo com estimativas da Polícia Militar, a manifestação reuniu 20 mil pessoas. Segundo os organizadores da Parada, eram aproximadamente 2 milhões de pessoas. [Foto: www.folha.uol.com.br] |
A
tentativa de inverter a ordem das coisas virá outra vez. Heterossexuais e
porta-vozes do cristianismo se colocarão como vítimas. Aliás, as frases quase
sempre começam da mesma maneira: “Estão tentando nos impor...” ou “Não que eu
seja homofóbico, mas...” ou “Eu respeito a escolha dele, mas não concordo”. Besteira!
Respeita nada. Além disso, não cabe a alguém discordar de um gay, mesmo porque,
como já dito, só é possível a discordância em relação a uma deliberação
racional.
Mas,
descontente, haverá quem bote a democracia no meio: “Eu tenho o direito de
manifestar a minha opinião”. Hitler manifestou opinião matando judeus. Um
estuprador manifesta opinião transando com alguém, à revelia da vítima. O
pedófilo manifesta opinião atentando sexualmente contra uma criança.