sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Alta tensão: a representação política sob escombros

A democracia republicana brasileira tem uma virtude: além de multipartidária, é adepta do presidencialismo de coalizão. Isso significa que o poder está partido em muitos pedaços e a agremiação principal precisa compor com vários deles para obter a governabilidade. Revisitando a história, Collor saiu pela porta dos fundos do palácio porque, além de ter um irmão que mais parecia inimigo, não possuía maioria no Congresso. Renunciou à presidência para entrar na história. FHC, o próximo a ser eleito pelo voto popular, aprendeu a jogar o jogo da política, e tratou de dar as mãos a Deus e o mundo. Lula, que não era bobo nem nada, dançou a música como mandava a cartilha.

A democracia republicana brasileira tem um vício: além de multipartidária, é adepta do presidencialismo de coalizão. Isso significa que o “poder do povo” é jogado na guilhotina para salvaguardar os interesses de muitos partidos. Com a carta na manga da governabilidade, oferecem apoio ao partido que está na ponta de lança, sem, evidentemente, se esquecerem do que querem em troca. As alianças, pois, dão sustentação ao governo à base de barganhas. A coalizão é o antro das negociatas com dinheiro público, um achaque às instituições, furtadora das esperanças cidadãs. Temos instaurado um dilema: seguir ou não o modelo que está posto?

Em resumo, as alianças partidárias em período de eleição forçam o mandatário empossado a lotear o governo. Aos partidos que deram sustentação cabe uma fatia ou outra do poder: ministério, presidência na Câmara, Senado e Comissões, cargos importantes em empresas ligadas diretamente à União, como é o caso da Petrobrás, do Banco do Brasil, Caixa, BNDES e Correios. Porque, óbvio, o apoio na corrida eleitoral não vem por semelhança ideológica ou identificação programática.

O presidencialismo de coalizão de FHC contava com as costas largas de ACM. Anos antes, enquanto Fernando Henrique Cardoso atuava contra a ditadura, Antonio Carlos Magalhães recrudescia o regime militar na Bahia.
[Foto: www.mauriciogrille.wordpress.com]
Assim, o presidencialismo de coalizão, que passa o rolo compressor por cima de quem quer que seja desde 1995, na eleição de FHC, mostra-se autodestrutivo, porque permeado por interesses escusos, egoístas e criminosos. Veja só: o PMDB, principal partido da base aliada, é quem garante a paz no Plano Piloto. Também, é quem mais se beneficia com um impeachment de Dilma, uma vez que o vice e os presidentes da Câmara e do Senado são peemedebistas. Temos um ninho de conspirações e traições no coração da nossa política, em um enredo que Shakespeare invejaria.

No cerne do jogo, tanto de quem apoia como de quem é apoiado, está o intuito de transformar tudo em um grande esquema, numa forma muito eficiente de roubar um dinheiro que não é de alguém específico, mas que deveria voltar à nação em forma de escolas, hospitais, moradias, saneamento, segurança e tudo aquilo que ainda falta a muita gente. Tal como parasitas, se instalam onde a grana rola solta, desfalcam os cofres públicos, deixam o moleque pobre da periferia sem escola digna. São bandidos que roubam na cara dura, comem muito bem, obrigado, e têm a desfaçatez de tirar um cochilo depois do rango. Sem culpa.

De outubro do ano passado até agora, muita coisa rolou
No panorama colocado, qual o cenário que temos hoje? Dilma venceu Aécio por uma margem pequena de votos, o que denotava que qualquer escorregão da petista resultaria em rejeição. Não deu outra. Depois de um primeiro mandato bem mediano, a presidente tomou medidas impopulares logo no tiro de largada da sua segunda gestão, apertou as torneiras da economia porque os gastos públicos dos últimos anos haviam sido altos e o brasileiro sentiu aquilo que mais valoriza: o bolso.

Paralelo a isso, a Operação Lava Jato, que já tinha sido deflagrada antes das eleições, ganhou fôlego. Desnudando um caso de corrupção na maior empresa brasileira – a Petrobrás –, a ação da Polícia Federal e do Ministério Público do Paraná sangrou ainda mais Dilma e o PT. Embora, é bom que se diga, o Partido dos Trabalhadores está longe de ser vilão único da Lava Jato, esquema capitaneado pelo PP e PMDB, e que também conta com gente da oposição. O ‘batom na cueca’ do PT é que ele figura no poder há mais de 12 anos. Quase favas contadas atribuir a maior responsabilidade ao partido de Lula, Dirceu e companhia. Erro grave achar que os ‘petralhas’ detêm o monopólio da corrupção.

Em 16 de dezembro de 2014, o juiz Sérgio Moro aceitou a denúncia do MPF. Até agora, 44 pessoas já foram condenadas.
[Foto: www.brasil.elpais.com] 
Em tal conjuntura, o que faz, então, o presidente da Câmara, o deputado Eduardo Cunha [PMDB/RJ]? Ele põe em votação e aprova, ancorado na oposição liderada pelo PSDB, o financiamento de empresas a campanhas eleitorais como dispositivo previsto em Constituição. Na era em que a Polícia Federal, o Ministério Público do Paraná e, agora, a Procuradoria Geral da República escancaram o maior escândalo de corrupção envolvendo empresas privadas e partidos políticos, a Câmara, em sua maioria, leva adiante uma Proposta de Emenda Constitucional [PEC] que não só não impede o modus operandi das transações financeiras no nosso processo eleitoral, como legaliza um crime de lesa-pátria ao prevê-lo no principal documento da República. Como Dilma está longe de ser a principal dor de cabeça da nossa política, a medida aprovada por Cunha e seus asseclas foi vetada no Planalto, contando com o amparo do STF, que, por 8 a 3, julgou inconstitucional a doação de dinheiro empresarial a campanhas eleitorais.

E a imprensa nessa história toda?
Num mundo em que a realidade é cada vez mais mediada, a imprensa adquire função basilar no regime democrático. Os acontecimentos de maior relevância precisam do jornalismo para chegar ao conhecimento do grande público. Conscientes do que se passa na esfera pública, os cidadãos podem deliberar melhor de acordo com as demandas mais urgentes. Isso significa que se a imprensa trabalha na contramão do que lhe é de dever, atenta-se contra o Estado de Direito.

Os erros do jornalismo podem ser de duas naturezas: resultantes da ignorância ou da má fé. Quando a TV Globo, em 1989, editou o debate entre Collor e Lula, dando ênfase aos melhores momentos do alagoano e, em igual proporção, enfatizando as piores investidas do pernambucano, realizava ali um deslize intencional. Recentemente, Veja publicou matéria atribuindo a Romário, senador pelo PSB do Rio de Janeiro, uma conta de R$ 7,5 milhões na Suíça. Malfeito grave. A publicação errou, até onde se sabe, por incompetência. As duas investidas, independente do que as motivou, foram prejudiciais à democracia e, a reboque, nocivas a nós também.

Em razão do despreparo ou da sabotagem, pouco se falou e contestou o item da reforma política que define como elemento constitucional o financiamento de empresas a campanhas, assim como o holofote não se voltou para a aprovação do Projeto de Lei que regulamenta a terceirização de atividades-fim e a PEC que prevê a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Quase tudo passou sem desdobramentos. Atenção breve e pouco convincente que não se vê em relação a Dilma nos âmbitos da política e da economia que lhe competem. 

Desde que assumiu a presidência da Câmara, no início do ano, Cunha tem imposto derrotas ao governo.
No entanto, o cerco da Lava Jato tem se fechado contra ele.
[Foto: www.sensacionalista.uol.com.br]
Nessa situação, uma oposição nada madura, composta inclusive pelo outrora aliado PMDB, conta com uma mídia que quer o circo pegando fogo. Diante disso, o país vive, claro, crise econômica: economia em recessão, inflação em alta, dólar ascendente, desemprego subindo. Mas a grande imprensa passa ao público uma realidade que não é verdadeira. Ou seja, cria-se a sensação de caos, de uma crise que tem um tamanho maior do que o real.

A parcela da população derrotada nas urnas em outubro, que já falava em impeachment desde o dia seguinte à vitória de Dilma, ganhou vigor e foi pra rua três vezes: 15 de março, 12 de abril e 16 de agosto. Em tese, a reivindicação é pelo fim da corrupção. Na prática, o alvo é o PT e as suas figuras mais proeminentes, mesmo porque boa parte do público que tem protestado votou em Aécio no último ano. Resultado: a revolta tem mais fundo partidário do que político, o que, em termos de democracia, acaba agregando muito pouco. Se pau que bate em Chico deve fazer o mesmo em Francisco, no julgamento da massa, a justiça inexiste.

Como se não bastasse, então, as crises econômica e política, a de âmbito institucional se avizinha. A mídia mais influente – entenda-se Globo, Folha, Estadão e Veja – agenda o impeachment diariamente. A oposição, idem. Ambos, canalhamente, criam um cenário que, de modo artificial, vai ganhando vida. Temos o achincalhamento da democracia, ao bel prazer da imprensa e de partidos indispostos com o governo. Dilma, ao mentir na campanha, também golpeou o “poder do povo”.

O castelo de areia da podridão, a ser alicerçado por PT, PMDB, PSDB e pelas demais siglas que tomam o país de assalto, começa a ruir. Mas tudo que é nocivo se reinventa, e ledo engano achar que não irão mais subtrair a pátria amada em tenebrosas transações. A imprensa mantém seus tentáculos na política, submetendo a democracia de forma acintosa, mantendo relações sombrias com esse ou aquele partido. Já o poder, retalhado que é, continua a ser a melhor opção ante qualquer alternativa totalitária. A prerrogativa que parece faltar é: “governar com eficiência e sem corrupção”. Qualquer outra combinação já se provou insustentável.