Estava
cá a pensar em Adão e Eva, os dois personagens abençoados por Deus para
inaugurar a travessia judaico-cristã e descritos por Moisés como sendo a moça e
o rapaz que deram o pontapé inicial na história humana. Na contramão do que se
prega, o pecado original representou a catraca livre para a liberdade. Deus,
tendo a bondade que tem, não seria mesquinho a ponto de fazer da sua criatura
mero divertimento, algo a funcionar tal qual um equipamento movido a controle
remoto. Não parece ser do feitio de uma divindade agir assim.
Pontuemos:
extraindo metáforas e parábolas de que a Bíblia é pródiga, não havia fruto algum.
O que ocorreu no Jardim do Éden foi a cópula entre homem e mulher, dois belos e
apetecíveis pedaços de mau caminho que deliberaram entornar o caldo do sexo, a
sensação mais incrível que o bicho – pensante ou não – pôde conceber. Como os
nudes comiam solto naquela época, encostaram uma pele na outra, fizeram os
corpos se aquecerem e, ao contrário do que acontece conosco hoje, sentiram
vergonha.
Isso
posto, Adão e Eva estavam numa encruzilhada: escolher o determinismo imposto
por Deus ou o livre-arbítrio, artifício igualmente postulado pela figura maior
entre judeus e cristãos. Pra sorte de todos que vieram depois deles – você e
eu, inclusive –, preferiram transgredir e assumir a autoria dos seus próprios atos.
Se tivessem seguido a vontade divina, que mérito haveria na ação do casal?
Rigorosamente, nenhum. Teriam agido bem, mas não por vontade. Não há virtude na
servidão.
É
por isso que o existencialista francês Sartre afirmou que o homem, livre que é,
tem consciência da responsabilidade sobre o que fará e, por isso, é um ser
angustiado. Em suma, o casal primogênito abriu as cortinas do espetáculo
chamado ética. Se ética é a reflexão
que antecede a melhor conduta, moral diz respeito à ética consumada, ao ato em si,
fruto do pensamento ponderado, submetido a rigorosos critérios de escolha e
renúncia. Ambas – moral e ética – dependem de uma prerrogativa elementar: a
liberdade do sujeito que age.
Por
que um pit bull não é julgado por atacar um pedestre? Por que uma cobra não é
incriminada por picar alguém? Por que um leão não é condenado por avançar numa
pessoa? Porque o animal, silvestre ou doméstico, não age livremente. O animal
que não pensa é vítima do seu instinto, uma vez que o impulso se põe acima de
qualquer outra faculdade que o bicho irracional possa ter. Ele vive a única
vida que poderia viver, regido que é pelo princípio da necessidade.
Machado
de Assis, talvez o maior de todos os escritores nossos, em algumas linhas de Dom Casmurro, tratou, assim como
Chaplin, de dizer verdades em tom de brincadeira. Com a ironia fina que lhe era
praxe, no capítulo XVII, intitulado “Os Vermes”, o autor mostra como a vida de
um bicho, ao contrário da nossa, está completamente entregue a uma única
possibilidade. Quando Bentinho, personagem principal e narrador da história, depara-se
com livros comidos por vermes e indaga-os a respeito das informações que não
mais podem ser lidas, eis que um deles responde: “Meu senhor, nós não sabemos
absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem
amamos e detestamos o que roemos: nós roemos”.
Aristóteles
defendia que se os fenômenos da natureza e os bichos tinham uma função
específica no cosmos, o mesmo ocorria com o homem. Cabia a este identificar o
seu papel no mundo, para o próprio bem e do local onde vivia. Esse papel seria posto
em prática com base num talento nato, parte constituinte do indivíduo desde o
nascimento e aprimorada com o tempo. Os gregos, em contraponto à filosofia
moderna, eram adeptos do determinismo. Não era de se surpreender: numa
sociedade aristocrata, quanto menor o ambiente para a mudança, melhor.
Já
para o pensamento moderno, na esteira das descobertas científicas de Newton,
Galileu e Copérnico, o universo não era finito e ordenado como defendiam
Aristóteles e Ptolomeu. E, sendo assim, os indivíduos não tinham papeis
específicos e definidos. Está claro, sim, que o homem atua permeado também pelo
instinto. É o instinto que leva o bebê recém-nascido a sugar o seio da mãe em
busca de leite. Ninguém disse a ele que era preciso fazer daquele modo, nem que
ali havia leite – ele não seria capaz de compreender. Ainda assim, a
criaturinha o faz, como se houvesse um chip programado pra levá-lo a agir de
tal forma. Mas o que prevalece no bicho homem é a razão, a capacidade
inteligente de ponderar os efeitos da sua ação, agindo de modo a buscar o
melhor pra si, sem prejuízo a outro. No limiar de tudo, é o que nos difere do
restante da natureza. Negar a liberdade é, pois, recusar a humanidade que nos
foi legada ou conquistada.
Perceba
que estamos aqui no coração do Direito: sem liberdade, não há culpa; sem culpa,
não há julgamento. Porque o determinismo defende, com feições equivocadas,
aquela máxima em que muitos se escoram para justificar seu comodismo e
ineficiência: “as coisas são assim mesmo, não há o que fazer”. Sem terem consciência
disso, assim vive um gato, uma tartaruga, uma formiga.
Ética,
então, é quando ajo sem o medo da consequência, mesmo que não haja um tipo
sequer de patrulhamento sobre a minha ação. O alemão Kant, ao contrário do
utilitarista Stuart Mill e do pragmático Maquiavel, pregou que o fundamento
moral não está no efeito do ato, porque agir conforme um fim coloca as condutas
na corda bamba dos relativismos. Para ele, a base da ação está no intento,
naquilo que, a priori, move o ator social. A isso ele chamou de imperativo categórico, expressão mais
que consagrada do pensamento kantiano. Se atuo bem, mas tendo como impulso uma aceitação
social, a ação é lícita, mas não moral. Em miúdos, eu não devo ceder meu lugar
no busão a uma idosa porque as demais pessoas verão nobreza em mim. O banco
deve ser cedido porque, conscientemente, cheguei à conclusão de que é sensato
fazê-lo.
De
igual modo, o medo da punição não torna a minha ação ética, ainda que eu possa
avaliá-la como correta. Se o aluno não cola na prova porque o professor está em
sala, mas, caso não estivesse, consultaria o conteúdo no caderno, o ato de não
colar, neste caso, não é moral, apesar de não ter ferido qualquer exigência
postulada antes do início da avaliação. A moral passa a valer quando o
professor não está em sala e, mesmo assim, o estudante delibera não colar,
porque sabe que, com isso, infringiria uma norma que permanece válida com ou
sem o professor perto dele.
Em
oposição, a criança que nasce com leucemia não decidiu ser doente, coisa que
ninguém, com exceção do hipocondríaco, deseja. O adoecido estará condicionado a
uma vida que não escolheu ter. Porém, é exagerado afirmar que “essa foi a
vontade de Deus”, como se o determinismo divino explicasse aquilo que custamos
compreender. O corpo humano, na imensidão da complexidade em que está imerso,
tem um funcionamento alheio às nossas ordens, tal como o sangue que circula ou
os neurônios que realizam sinapses. Embora, é bom que se registre: uma anomalia
hoje pode ter explicação prática em alguma ação, seja da própria pessoa ou de
outra, que aconteceu no passado. A despeito de não explicar tudo, a ciência alcança
respostas que o misticismo faz questão de ignorar.
Se
Adão e Eva não fossem pioneiros no acasalamento humano, o livre-arbítrio seria
uma grande falácia. Se Adão e Eva fizessem o que deles se esperava, a
predestinação triunfaria, nós não nos empenharíamos em evoluir e não seríamos
nem metade do que somos hoje. Se Adão e Eva mantivessem a compostura, o sexo
não seria proibido e tão bom como é. Eles teriam se comportado, tirado dez na
avaliação divina. Mas se o medo da punição pauta o ato, cadê a honra da boa
conduta? Mandela, Gandhi, Luther King e Betinho cravaram seus nomes na história
porque decidiram fazer o que fizeram. Hitler, na intenção inversa, idem. Todos optaram,
e foram julgados para o bem ou para o mal.
Mesmo hemofílico, tuberculoso e HIV positivo, o sociólogo Betinho não deixou de militar contra a fome, a miséria e a ditadura [Foto: www.vivario.org.br] |
Milan
Kundera, em A insustentável leveza do ser,
já nos encaminhamentos finais da sua obra mais proeminente, registra um diálogo
entre o casal protagonista da história, Tomas e Tereza. Sentindo-se culpada
pelo fato do amado ter negligenciado o ofício da Medicina para segui-la, Tereza
lamenta: “Sua missão era operar!”. Tomas, ciente de que a predestinação é um
engodo, responde: “Missão, Tereza, é
uma palavra idiota. Eu não tenho missão. Ninguém tem missão. E é um alívio
enorme perceber que somos livres, que não temos missão”.
Tereza havia se
perdido na explicação cósmica para as frustrações da vida, como se os
insucessos germinassem à revelia de uma causa humana. Tomas compreendera com
boa dose de sucesso que a gente pode fazer, refazer e desfazer muita coisa. A
não ser que você seja um dos vermes descritos por Machado.