O
amor tem os requintes de uma arapuca. Possui essa mania de se preservar
sorrateiro, de comer pelas beiradas, de ficar ali como quem não quer nada. No
começo, tudo é sem intenção, como se a novidade das coisas se encarregasse
disso e daquilo. Um olhar, uma palavra, o sorriso úmido a ferver as entranhas
de quem espia. E vem o beijo. E, antes dele, a vontade. O intento de querer o
outro lábio no nosso, quando antecedido de muito ensejo, já carrega em si mais
que desejo. Não há no ato de descansar uma boca na outra mera saciedade, o
arremate de uma pulsão que nos faz bichos. Não. Quando dos rituais menos
efêmeros, existe uma pitada de sentimento que inverte o eixo da lógica: se
antes era necessário rapidez para matar o desejo, agora quanto mais tortuoso o
caminho, maior a fome. O amor tem o hábito de se consolidar em bases
semelhantes a essas. A felicidade é suprema.
De
igual modo, o seu fim parece lento. É como se a bondade do amor, nos idos do
princípio, virasse à casaca, mudasse de humor despretensiosamente e quisesse
judiar. A praia em calmaria vira ressaca. Da mesma forma que custa a
constituir-se, como quem precisa de protocolos e cerimônias para se firmar, o
amor também se esvai paciente e, por isso, cruel. A letalidade é ainda mais
impiedosa quando, do lado de lá – ou cá – o sentimento se comporta intacto.
Ouvir que tudo findou arranha a alma e deixa sequelas que o tempo, dito ‘senhor
de tudo’, sofre a curá-las, em especial quando o romance não dura apenas
“quinze meses e onze contos de réis”. Todavia, antes de escutar a palavra
capital – ‘acabou!’ –, a gente sabe que a rua é sem saída, mas prefere o
engano. É segurar alguém pelas mãos, que, por uma força alheia, é levada pela
maré de volta ao mar revolto. Como se viver à base de uma esperança fomentada
artificialmente, que não encontra resquícios quaisquer na realidade, pudesse
redimir o nosso insucesso, que está logo ali, com capa preta e foice às mãos,
de prontidão a desferir o golpe derradeiro. A dificuldade de lidar com o fim é
evidente: o problema não é apagar o passado, extrair da memória todos os
momentos de cumplicidade. A questão é: como abortar todas as projeções? É como
se uma máquina, concebida para funcionar de um jeito, precisasse ser
reconfigurada, uma vez que a demanda agora é outra. Ofício árduo. A melancolia triunfa
sobre a felicidade.
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Respeitando
a inabalável 3ª Lei de Newton, se o mundo gerou frustração, normal que o
coração embruteça. E o entristecido se fecha pro mundo, desrespeita muitas –
pra não dizer todas – formas de sentimento que outras pessoas lhe têm, só
porque julga que, caso se entregue, o mesmo infortúnio de outrora cairá sobre ele.
Procura garantir que nenhum outro amor fracassado irá derrubá-lo, levá-lo à
fossa, lugar de onde as pessoas que vivenciam o amor têm certa dificuldade de
sair, quando ele – o amor – vira pó e arrebata. Para saciar uma pretensa
necessidade de se proteger, constrói uma caverna, e nela se põe em clausura até
que o tempo – de novo ele! – o alforrie dos medos cravados ao derredor da
infelicidade. E perturbado pelo receio de notar-se no fundo do poço, anula
qualquer chance de estar na condição inversa. É o atleta que, por medo da
derrota, recusa-se a competir. Aquele que teme amar outra vez até neutraliza o
sofrimento, mas também não regozija. Contenta-se com a passibilidade dos
apetites e vive uma vida medíocre. As intermitências da existência escasseiam e
inexiste o estímulo de lutar contra o que não se quer. Enfim, a opção por não
sofrer é aderir a um trajeto sem curvas: seguro, porém entediante. O medo supera
a melancolia e a felicidade.
Quando
os olhos castanhos te meterem mais medo que um dia de sol, é prudente lembrar
que “quem de dentro de si não sai vai morrer sem amar ninguém”. É possível que
sofra? Sim. Com um mundo tão dinâmico e intenso, com tanta gente boa e
interessante por todos os lados, a probabilidade de tudo acabar é muito maior.
E quem disse que um relacionamento findado obrigatoriamente deu errado? A
julgar a nossa quedinha pela rotina, facilitadora de tudo, pois não nos exige
qualquer empenho, o muro que separa o deleite e o mal êxito é de areia, prestes
a ruir. De certa forma, o amor é um jogo de sorte e azar, sendo que a chance de
levar um tombo é hedionda. Assim como na vida, que tende a ser mais triste que
feliz. Só que “a tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais
triste, não”, e a esperança vence a felicidade, a melancolia e o medo.