Em nome de Deus, dos meus filhos, das
minhas netas, do coronel Ustra, pelas forças armadas, pela paz em Jerusalém, o
meu voto é ‘sim’.
Houve de tudo no histórico domingo, 17
de abril. Quase nada sobre crimes de responsabilidade, os únicos, segundo a lei, a destituírem
uma presidente do seu cargo. Estranho, uma vez que Dilma Rousseff, eleita em
pleito direto, está como ré de um processo de impeachment. Este é, de fato, um
dispositivo constitucional e, portanto, democrático e republicano. Mas se não
se menciona crime quando a ocasião é propícia, crime não há. E se o argumento
pelo “sim” não carrega no seu núcleo a denúncia de um desvio, o processo não é
de impeachment: é de golpe.
Dilma botou o dedo em Furnas. Cunha emburrou e ficou de mal da presidente. [Foto: www.blogs.oglobo.globo.com] |
O que determina a instauração, o
andamento e o julgamento final não são decisões equivocadas de uma gestão –
ainda que delas devam surgir cobranças e indignações. A Constituição
[Art. 85 e 86] e a Leinº 1079/50 são claras quanto a relacionarem o
impedimento a crimes de responsabilidade. O desemprego, o corte de
investimentos na educação, a inflação e todas as demais deficiências de ordem
socioeconômicas são preocupantes, mas não caracterizam crimes. A gestão de
Dilma é questionável. O seu mandato, não.
Mas o congresso deu tudo de ombros. Nada
que surpreendesse. O mais reacionário dos nossos últimos parlamentos, a geração
mais criminosa que tomou as bancadas legislativas agiu como dela se espera: com
o deboche e a hipocrisia
que lhe são peculiares. No domingo [17], uma deputada, ao votar “sim”, vociferou
moralismos e usou o nome do marido como exemplo de político. Na segunda [18],
quase antes que o galo cantasse, viu o nobre esposo, prefeito de Montes Claros
[MG], ser
preso. Outra vez, nada fora da curva. Foi
sempre dessa forma que a nossa classe dominante se comportou, criminalizando a
mulher, os homossexuais, os negros, os pobres, mesmo tendo o próprio quintal
imundo. Com raras exceções, o que se viu ali foi o reduto do machismo, da
homofobia, do racismo. Fico a pensar: um congresso tão monstruoso surge de uma
política carente de reforma ou temos ali o retrato perfeito do que é a sociedade
brasileira hoje?
O meu marido deve ser preso porque é corrupto? "Sim, sim, sim, sim, sim, sim!"
Um congresso que teima em botar o nome
de Deus em meio às decisões políticas sugere não saber a sua devida finalidade
– nem a do congresso, nem a de Deus. O que carece aos representantes que assim
o fazem é o trivial: entender que a laicidade fundamenta o Estado, que a polis
é deliberada pelas condutas racionais, e não místicas, míticas, alegóricas,
fantasiosas. Os espaços de cultos e rituais devem ser assegurados com base nas
liberdades religiosas consagradas no Art. 5º, Inciso VI da Constituição. Todavia,
Deus, Cristo, Maomé, Alá, Buda ou qualquer outro personagem religioso, ao menos
numa República, não ditam os rumos da coletividade. A fé compete à intimidade
de cada um. Inclusive é dado, a quem desejar, o direito de rechaçá-la. Num país
de crenças diversas como o nosso, eleger uma como oficial é o riscar do fósforo
para fazer do Estado um perseguidor, um inquisidor. Nos dias que correm, o
exemplo do vínculo entre fé e política é o Estado Islâmico [EI]. Parece-me
ponto pacífico que o EI não traz qualquer contribuição à vida de quem quer que
seja. A maioria entre os próprios muçulmanos atesta isso.
Não é tão difícil ver o que se passa.
Tarefa árdua é um golpista aceitar. Porque o golpista sabe que Eduardo Cunha [PMDB/RJ], presidente da Câmara, está em maus lençóis. Ele sabe disso. Mas o golpista é, por excelência, um
pragmático, maquiavélico: em benefício de um fim, tomado pelo ódio ideológico,
ele é capaz de qualquer artimanha. “Dilma deve sair do poder. O PT deve ser
extirpado”. Para isso, vale ter Cunha no jogo, o primeiro e único, entre a
gente graúda de foro privilegiado, a ser réu na Lava Jato. Não, ele não é um
mero suspeito ou investigado. Ele será julgado no STF e, provavelmente,
enquadrado. O golpista olha Cunha no centro da mesa diretora da Câmara, fazendo
a bola rolar numa das maiores decisões que pode haver no regime republicano e
democrático, e está convencido de que ali há um contraventor. O golpista tem noção
de tudo isso. Mas, pra ele, golpista, assim como o deputado que legitima, vale
tudo pela meta.
O golpista sabe que Temer é traidor e sabotador. Ele sabe que, se o partido rompeu com
o Planalto, o seu compromisso moral deveria ser o mesmo: sair da
vice-presidência. Não é ilícito permanecer, mas é de uma incoerência abissal. Da
cadeira de vice, já projeta o governo que cairá no seu colo. Porém exigir
coerência de Temer, do PMDB e de um golpista, é pedir demais. Fiquemos no que é
superficial, no degrau raso e baixo que o golpista consegue pisar. Do segundo
andar pra cima, tudo fica turvo.
"Nada é impossível de mudar". Poema do teatrólogo alemão Bertolt Brecht, narrado por Antonio Abujanra
O golpista sabe: o movimento que tanto
apoia e do qual é manifestante nasceu maculado, e isso implica a contaminação
de tudo o que está por vir. Ainda que Dilma não sofra cassação no senado, o
golpista estará com o “G” do ferrete cravado na testa, já que defendeu um
processo pelos esgotos das vias legais. O resultado pode ser um ou outro, mas
se a concepção está envenenada, envenenado o resto estará. O golpista é sabedor
de que tudo isso está posto. Ele só não está habilitado a compreender, numa
reflexão mais ampla, a mediania entre o que se critica e os caminhos do combate
ao que não está bom.
Mas o golpista planta a sua
reivindicação numa terra, cujo adubo é a ignorância, a alienação, o ufanismo.
Na sua conta, só cabe o “fora, Dilma. E leve o PT junto”. Slogan dos
oposicionistas nas eleições de 2014, está aí a comprovação de que o que ocorreu
anteontem foi, de fato, o 3º turno. O PSDB, habituado às derrotas na disputa
honesta, conseguiu vencer da única maneira que lhe era viável: no tapetão, na
mão grande, nas tramoias subterrâneas em conluio com os conspiradores do PMDB.
O movimento, liderado por Temer e Aécio, tem em Eduardo Cunha o seu testa de
ferro. O presidente da Câmara é um gângster. Mas há que se admitir: ao contrário
do vice traidor e do mineiro mal perdedor, nunca escondeu quem é.
TEXTOS RELACIONADOS:
O golpista tem noção de que o governo
corre riscos em várias frentes. O TSE está em vias de comprovar que a chapa
Dilma-Temer, assim como a de Aécio-Aloysio, recebeu verba proveniente de obras
superfaturadas da Petrobrás. E isso seria inapelável. Neste caso, a presidente
e o vice decorativo seriam cassados e, em acontecendo neste 2016, novas
eleições são convocadas. Se a anulação vier em 2017, eleições indiretas, pela
voz do congresso combalido, infinitamente mais criminoso que Dilma, sobre a
qual, é importante sempre lembrar, não paira qualquer crime. O golpista tem
isso em mente, mas não importa. Se é o túnel mais curto que o leva ao outro
lado da montanha, é por ali que tudo deve ocorrer, ainda que o túnel seja de
areia, e, frágil que é, um dia verá escancarado o seu pecado original. Mas o
golpista é assim: pensamento tacanho, visão de baixo alcance, o tipo que acha que
o amor é monopólio das relações heterossexuais.
O golpista, vencedor de um jogo impuro,
se veste com o uniforme da CBF. Simbólico! O time que, também em 2014, foi humilhado
por 7x1, tem no golpista o seu maior torcedor. No germe do golpe, materializado
pelo seu porta-bandeira, está a derrota, tudo em plena sintonia num movimento
que tem no conservadorismo, no retrocesso e no reacionarismo os seus alicerces.
Combater a podridão no reino da Dinamarca com estratégias fétidas não dignifica
a causa. Pelo contrário: contamina a ideia no nascedouro.
Patinho feio na última Copa, a seleção brasileira protagonizou o maior vexame da história do futebol [Foto: www.jcrs.uol.com.br] |
O golpista tem em Sérgio Moro o seu
baluarte. Antes dele, outros tantos: Aécio, Cunha, o japonês da PF. O adepto do
impeachment suspeito é consciente de que o juiz admitiu grampos feitos além do
horário autorizado por ele mesmo, tomando-os como provas. Mais que isso,
desprezou a legislação e botou no balaio da justiça de 1ª instância gente que
não compete a ela. E veio a cartada final: liberou à imprensa peça de alto
interesse jurídico – e, assim, sigiloso –, horas depois de interceptada. Pelo
puro espetáculo, Moro jogou pra galera. Preferiu incriminar alguém cometendo
uma sucessão de delitos. Duas semanas depois, pediu “respeitosas escusas” ao STF e fez o
que deveria ter feito no início: enviou os áudios envolvendo personagens de
foro privilegiado à Suprema Corte. O juiz, por uma daquelas ironias do destino,
assinou o atestado de réu confesso. O golpista viu tudo isso, no fundo sabe que
Moro fez uso de expedientes de exceção, mas a obra messiânica de livrar o
Brasil do comunismo não deve ser interrompida. Afinal, o país não pode se
transformar numa nova Venezuela, Cuba ou Bolívia.
O golpista sabe que a TV Globo e a
revista Veja são seus porta-vozes. Ele não tem a menor dúvida de que a grande
imprensa faz o trabalho sujo no âmbito simbólico e percebe que, às portas da
saída da presidente, o noticiário sobre a Lava Jato – não sem conveniências –
já vai minguando. Ele não é suficientemente alienado para não perceber que o
governo, em verdade, está até a tampa de movimentações reprováveis, entretanto é
sabedor de que o jornalismo de maior projeção fez um trabalho seletivo, a ponto
de ignorar o que de positivo o governo executou e os vícios da oposição. Por
parte desta, da mídia e do golpista não há indignação contra a corrupção. O
problema, definitivamente, é o PT. E o golpista, de intelecto limitado, bate o
pé no chão, faz birrinha, chia. Tal como a criança que tira a bola do jogo
porque não foi escolhida por nenhum dos dois times e vai embora aos prantos
chorar as mágoas no colo da mamãe, o golpista faz escarcéu por Lula e Dilma...
e mais ninguém.
Ouvi e li que os professores de
História terão dificuldade de explicar, lá na frente, tudo o que está
acontecendo. Não terão. É tudo muito simples, claro e, por isso, deslavado, sem
qualquer pudor. De igual modo, é papel dos cursos de Jornalismo entender e detalhar
para os postulantes a profissionais da imprensa como se deu – ora oculto, ora
escancarado – o trabalho da mídia em dias de marcha à ré. A psiquiatria não
encontrará empecilhos para traduzir a esquizofrenia de se falar em Deus no
âmbito da polis, de se ter um criminoso como chefe do julgamento. A dramaturgia
não se furtará em esmiuçar a farsa. A ciência política saberá facilmente
detalhar as mancomunações de Temer e Aécio, a desfaçatez de Cunha, a
obsolescência de Bolsonaro e Feliciano, todos capitaneando, com vozes
impolutas, uma ação desavergonhada.
Quando alguém, a discordar de isso
tudo, perguntar-se “devo
seguir o enjoo?”, mesmo em tarefa árdua, a despeito de
ser feia, sem pétalas, sem cor, a flor é capaz de furar o asfalto, o tédio, o
nojo, o ódio. No chão duro e estéril, da improbabilidade de se ter vida, um
regalo de esperança que faz a roda não emperrar.
O nojo e a esperança de Drummond
A democracia está tombada. Mas ela sabe
se reinventar, é capaz de agregar personagens que fortalecem a causa e pode,
como é do seu feitio, resistir às aberrações que aqui e acolá tentam conduzir o
Brasil “ao que não tem decência, nem nunca terá; ao que não tem vergonha, nem
nunca terá”. Porque quando a roda-viva
chegar e carregar o destino, a viola e a saudade pra lá, haverá sempre alguém,
com viola na rua, a cantar: “a gente vai contra a corrente até não poder
resistir e quem inventou a tristeza terá de ter a fineza de desinventar”.
E depois que tudo passar e que der a sensação de que a onda retrógrada triunfou, de que os democratas estão alijados, à margem da ciência sobre o que de fato acontece, os dados ainda estarão a rolar, porque o tempo, as coisas e as gentes estão aí, diligentes e engajados, em prontidão para redimir a história.
E depois que tudo passar e que der a sensação de que a onda retrógrada triunfou, de que os democratas estão alijados, à margem da ciência sobre o que de fato acontece, os dados ainda estarão a rolar, porque o tempo, as coisas e as gentes estão aí, diligentes e engajados, em prontidão para redimir a história.