Se
um homem bebe o suficiente para não conseguir manter a lucidez... Se um homem
sai com quantidade de roupa a esconder pouco o seu corpo... Se um homem anda sozinho
até altas horas na rua ou vai a um baile funk, nada disso servirá de base para
justificar um estupro. Motivo: o homem, em geral, não é alvo desse tipo de atentado.
Quando apenas a mulher é vitima e só ela corre o risco de ser violentada
sexualmente, temos estabelecida uma cultura, um hábito, um costume que virou
rotina e, portanto, é aceito. É cultural considerar a mulher como objeto
sexual, a saciar o desejo do homem quando este deseja. Por se colocar como
superior, é legitimado socialmente ao homem infringir a vontade feminina. Ainda
que sem consentimento, a mulher deve se contentar com o seu papel de submissa. Historicamente,
à mulher não é dado o direito ao prazer, ao gozo, sensação que só o homem pode
ter. Eis a cultura que temos em voga, que, por ser nociva, é necessário
combatê-la.
Em Kant, desejo e vontade são colocados como dimensões distintas e até opostas. O desejo, proveniente do instinto e das emoções, deve ser rechaçado pela vontade, fruto da inteligência e do pensamento racional. Só que o desejo não se controla, justamente porque as contenções comportamentais são acionadas apenas pelas nossas faculdades intelectivas. O que é instintivo simplesmente desabrocha, sem qualquer capacidade de censura, de uma coerção premeditada. Mas entre a excitação e o ato, ou seja, a materialização do anseio no corpo de outra pessoa, há uma distância considerável. Não há moralidade ou imoralidade no desejo, mas na vontade, sim, pois esta é deliberada ou pode ser evitada. De modo que cabe a nós, seres pensantes, propormos o descolamento entre um e outra. Um cachorro, por exemplo, não é capaz de dissociar o desejo de transar da transa, e, assim, o cão é um bicho amoral [a sua conduta não é moral, nem imoral].
No Brasil acontece um caso de estupro a cada 11 minutos [Foto: www.amarujala.com] |
Nietzsche,
pensador que faz oposição a Kant, coloca uma ideia que, contextualizada, irá
concordar com a de seu conterrâneo. A violência é intrínseca ao homem,
característica que o condiciona. Os macacos já eram violentos, ensejando a
espécie que iria sucedê-los. Como exemplo, a violência imputada como castigo,
segundo Nietzsche, não serve para reparar ou compensar um erro, mas é, antes de
tudo, prazerosa. A agressão é excitante e tem como princípio o poder sobre
outra pessoa. O estupro, em síntese, é isso: um homem invade, a contragosto da
mulher, a sua intimidade. E ele o faz não porque está excitado. Ele o faz
porque quer demonstrar poder, de igual modo que o senhor fazia com o escravo:
açoitava-o não como punição ou método reparador, mas como instância de poder e
prazer. Se o problema fosse a excitação, caberia ao homem se masturbar, e a
questão estaria resolvida.
A diferença entre o
estuprador e quem discursa botando a culpa na vítima quase inexiste. O agressor
caminha por aí porque encontra conforto na impunidade, que, por sua vez, se
aconchega no pouco caso que a sociedade ainda dá à violência contra a mulher.
Naturalizada que está, o preconceito de gênero legitima tudo, transformando uma
aberração como o estupro em coisa normal, parte da cultura que não é aniquilada.
Resignar-se aí é ter as mãos manchadas nos atentados que as mulheres ainda
sofrem todos os dias. O disparate é tamanho, que até filósofos de opiniões
conflituosas como Kant e Nietzsche chegam a concordar em ao menos um ponto.
. Resignar-se aí é ter as
mãos manchadas nos atentados que as mulheres ainda sofrem todos os dias. O
disparate é tamanho, que até filósofos de opiniões conflituosas como Kant e
Nietzsche chegam a concordar em ao menos um ponto.