terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Star Wars: por que é desperdício assistir à saga como entretenimento puro e simples

*O texto a seguir contém spoilers.

Diante de uma obra de arte complexa – seja ela de que natureza for –, há um benefício e um prejuízo ao conhecê-la tardiamente: é passível de lamentação porque nos damos conta de que algo tão bom poderia ser visto antes, mas, por outro lado, entrar em contato com uma produção cultural já com maturidade permite apreender significados que não seriam captados numa idade menor, sob um repertório mais limitado. Prefiro levar o último argumento em conta para justificar o meu encontro inédito, no último final de semana, com os sete episódios de Star Wars, como forma de me preparar para a estreia mundial do próximo longa da série, quinta-feira, dia 14.

Logo na primeira trilogia – episódios IV, V e VI – já é possível constatar que George Lucas concebeu uma história à frente de seu tempo, fazendo dele uma figura genial não só com lugar cativo na história do cinema – como roteirista, produtor e diretor –, mas também no âmbito da literatura de ficção, como autor/escritor. Tentemos entender por que o norte-americano é tudo isso e mais um pouco, conduzindo a reboque a sua obra para o patamar das maiores produções cinematográficas com registro na história. O meu relato traz percepções originais a partir dos sete longas, sem que eu me permitisse fazer qualquer tipo de pesquisa a respeito da história e dos filmes.

Toda a sequência é permeada, especialmente os episódios de I a VI, por aquilo que defino como dois grandes conceitos, cujo domínio do autor é flagrante, e que ficam evidentes em Star Wars: Filosofia e Mitologia. O controle por parte de Lucas de diferentes teorias e narrativas é tamanho, que não restam dúvidas de que todo esse arcabouço é usado sem despretensão. Não há ali nada que seja involuntário, sem querer. As recorrências que o autor faz à filosofia e à mitologia são cirúrgicas, e isso fica transparente em uma narrativa densa, compassada e que não confunde o espectador, embora exija deste um olhar bastante atento.

No campo da Filosofia, é possível identificar conteúdo consistente sobre conhecimento, ética e política. A respeito da epistemologia [ou Teoria do Conhecimento], o autor dilui ao longo da sequência cenários que se apropriam dos quatro elementos da natureza: ar, terra, fogo e água. No vídeo abaixo, entenda que referência o autor utiliza para abordá-los, tendo ainda na Alegoria da Caverna, de Platão, uma outra ancoragem da sua narrativa:


No âmbito da ética, os guerreiros Jedi prezam pelo dever. Para eles, é preciso ter em mente que ser um guardião da galáxia impõe certos sacrifícios, aos quais qualquer um de nós está suscetível: os dilemas entre aquilo que queremos e podemos, mas não devemos fazer. Estamos aí no coração da filosofia moral de Immanuel Kant, pensador alemão do século XVIII, fundador da corrente ética denominada deontologia: pautado pelo imperativo categórico, ou seja, agindo de tal forma que a máxima da conduta possa se tornar lei universal, o indivíduo pauta suas ações em princípios, ainda que o resultado delas não seja positivo. A intenção é o fundamento da moral kantiana, em oposição ao pensamento pragmático de Maquiavel, italiano do século XVI, cuja assertiva é “os fins justificam os meios”, sendo permitida, neste caso, qualquer ação para conquistar o objetivo traçado, mesmo que isso fira [física ou moralmente] outras pessoas envolvidas. Está claro, no antagonismo complexo entre pai [Anakin] e filho [Luke], quem adere a uma e à outra corrente.

Por fim, acompanhe no vídeo a seguir uma análise sobre como o cineasta transita pelos conceitos da teoria política:


Saindo da filosofia, Lucas se ancora muito na mitologia de origem grega. A oposição entre caos e ordem é presente o tempo todo nos sete episódios. Impossível não mencionar a explicação que a mitologia grega dá à origem do universo. No princípio de tudo, era o caos, representado pelos Titãs, uma vez que as divindades na tradição grega são imanentes e múltiplas [politeísmo], e não transcendente e única [monoteísmo] como no judaico-cristianismo e no Islamismo. Os deuses Titãs rivalizaram com os Olimpianos, aqueles que pretendiam estabelecer - e foram bem sucedidos - a ordem no cosmos.

Nessa esteira, é imperativo recorrer a outro elemento da mitologia grega: os conflitos entre pai e filho, sempre muito presentes na literatura e na história do período clássico. O líder dos Titãs era um deus chamado Cronos [tempo], que rivalizou com seu pai, Urano [céu], um dos primeiros deuses a existir, juntamente com Gaia [terra] e Caos [queda]. Cronos, ao pressupor que teria o mesmo fim de seu pai, tratou de se resguardar, enquanto pôde, da ameaça dos próprios filhos, destino que foi selado no confronto com o mais novo deles, Zeus. Outro exemplo se encontra na história escrita por Sófocles: Édipo, ao nascer, teve a própria vida encomendada pelo pai, Laio. Não sendo bem-sucedido o assassinato, anos depois ambos, sem saber das identidades de um e outro, se encontram, e o fim é o mesmo: o pai é morto pelo filho. Outros dois episódios, esses comprovadamente verídicos e mais conhecidos pelo senso comum, podem se encaixar nesta reflexão: Alexandre Magno, durante muito tempo, foi considerado mandante da conspiração que matou seu pai, Filipe II, rei da Macedônia, nação que já dominava a Grécia. A seguir, conhecemos a história do imperador romano Marcus Aurélio, morto pelo filho Commodus. A narrativa de Star Wars não poupa elementos dessa natureza, seja com Anakin e Luke, seja com Han e Ben, cujo desfecho é a morte dos pais pelos próprios filhos. Mais mitologia grega que isso, impossível.

Ainda no campo mitológico, Star Wars é carregado de elementos bíblicos: [1] O fruto proibido, o amor que não poderia se consumar pela possibilidade de desencadear desgraças (Anakin e Amidala são a metáfora do casal que protagonizou o pecado original, Adão e Eva); [2] Bem x Mal; [3] Luz x Trevas; [4] a ideia de alguém “escolhido” [referência ao Messias], pobre, em meio à escravidão e sem pai [é o caso de Anakin e, por que não, de Moisés e do próprio nazareno], em quem todo um povo deposita a esperança de libertá-lo da opressão [menção a hebreus/judeus]; [5] a separação da mãe para cumprir o seu destino, tendo a possibilidade de escolhê-lo ou recusá-lo [é muito Jesus pro meu gosto!]; [6] uma tal Ordem 66, já na transição da República para o Império, numa citação ao número da Besta [666]. Com evidência, são elementos que caracterizam a sequência. Porém, há um que, logo de cara, dá uma chave importante para desvendar os enigmas da obra: o nome Skywalker. Numa tradução sem muito rigor, poderíamos encontrar anjo. O primeiro nome do protagonista da saga é Luke, uma abreviação ou apelido para Lucas, proveniente do termo latim Lux, ou seja, Luz. Agora ficou fácil: Luke Skywalker é o Anjo de Luz, enquanto que o pai, Anakin Skywalker, é também anjo, mas aquele que cai, que se entrega ao medo, ódio e à arrogância. Lembrou Lúcifer, anjo que se rendeu às tentações do mal porque tinha a pretensão de ser maior do que Deus. Cristo foi tentado no mesmo sentido, mas não sucumbiu. Até o momento, Luke é um cristão inveterado.

Dois anjos se enfrentam: o filho, Luke [à direita], que se manteve fiel ao ensinamento Jedi,
e o pai, Anakin, anjo decaído já sob as feições de Darth Vader [Foto: www.reddit.com]
A obra de George Lucas contém toda essa gama de teorias, conceitos, nomenclaturas que a torna especial. Nesse aspecto, o último episódio [O despertar da força, 2015] destoou negativamente dos seis anteriores, pois se propôs mais ao entretenimento. Com raras exceções – como no discurso político de ódio, no trabalho com diferentes elementos da natureza e no confronto entre pai e filho –, o último filme da sequência não resgatou a essência complexa e rica idealizada por Lucas. Algo a se lamentar, já que o escritor, roteirista e diretor criou, na combinação de elementos díspares já existentes, uma mitologia à parte, assim como fizeram J. R. R. Tolkien [O Senhor dos Anéis], J. K. Rowling [Harry Potter] e George R. R. Martin [Game of Thrones]. Dos quatro aspectos essenciais a uma narrativa [tempo, espaço, personagens e conflito], os três primeiros são originais, exclusivos da saga. Ainda assim, não abriu mão do receituário que sempre dá certo: recheou a história com romance, humor, perseguições, corridas, lutas, tiros, mortes. Não tinha como dar errado.

Alguém poderá se perguntar: se eu não detiver os conhecimentos sobre filosofia e mitologia apresentados aqui, não entenderei o filme? Entenderá, mas sob outra perspectiva. Do mesmo modo que uma pessoa, detentora de informações que vão além das minhas, apreenderá um significado mais completo e fiel da obra. Na pior das hipóteses, a saga poderá se resumir ao seu próprio título, em que seres humanos, monstrengos e robôs se confrontam para manter o caos ou estabelecer a paz. Não importa. Já terá valido a pena. 

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Saudade: dor e entendimento na metafísica da vida

“[...] mas o tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo. Também se pode bordar nada. Nada em cima de invisível é a mais sutil obra deste mundo, e acaso do outro” [Machado de Assis, em Esaú e Jacó]

Parece ser consenso entre religiões e doutrinas que negam a religação que a morte é inexorável e representa o fim de um ciclo, seja ele concebido por preceitos divinos ou resultado de embates cósmicos que nos fazem ser apenas uma fração insignificante do universo, desprovido de qualquer protagonismo que o ser humano teima em homologar a si próprio. E ainda que a gente se escore na vida eterna, em outras vidas finitas ou na inexistência de Deus e diabo, o fato é que a morte é implacável com quem vai e tem o talento inigualável de machucar quem fica.

E o medo da perda acaba fazendo da gente o esboço do egoísmo. É comum, à beira do suspiro derradeiro de quem acena um “tchau”, o apego à carne, à pequenez da nossa ontologia que só consegue entender uma fagulha do todo. O todo nos escapa, tamanha a nossa insignificância. Talvez não seja a perda em si, mas a incapacidade de entender o que se passa, o nosso maior monstro, o fantasma que nos coloca de joelhos a decifrar, sem sucesso, o maior enigma que está posto. A gente se habituou a manipular o mundo, a impor a nossa soberania sobre as gentes e as coisas, e quando se depara com a única equação da qual não tem controle, sofre.

A saudade nos traz uma certeza, que é pessimista por excelência: na ausência de quem foi, nada será como antes. É inegável: cada pessoa, na complexidade que é a existência humana, é insubstituível. Por mais que se empenhem, dos que nos acompanham em meio à tormenta só ficará o esforço de consolar, um afago em gesto ou palavra. Em suma, a falta de alguém importante remexe as nossas entranhas, cria-nos vácuos no peito, flashes de lembranças, uma lágrima a arranhar a face... Acabou.


Mas se a saudade só vivesse de infortúnios, ninguém resistiria a uma ausência acachapante. Ela ajuda a amadurecer o espírito, coage a mente a entender que a vida, o tempo todo, também é de perdas. O corpo responde com o pranto e a sensação de que o tempo estacionou, no intuito de aborrecer ainda mais o nosso juízo. Mas ele – o tempo – passa, e a não aceitação dá lugar ao conformismo de que, a partir dali, será assim. Então, o exercício de revisitar a pessoa, num movimento mental de ver quem partiu sob uma outra perspectiva, torna-se praxe. Passamos a pinçar detalhes da história e a ressignificá-los.

[Fonte: www.casamento.culturamix.com]
E essa ação atrasada se dá por um equívoco de cálculo: é consenso entre nós que sempre haverá uma chance de entender o gesto de alguém em vida, sem perceber que acabamos por eternizar o “deixa pra depois”. É só quando não há mais depois que buscamos o aceno, o beijo, o semblante, o sorriso, a palavra, o olhar, uma foto, um cheiro, um lugar. Enfim, qualquer coisa que na displicência da vida não atentamos e que, agora, tem significados que confortam, por um lado, mas por outro frustram em função da impossibilidade de agradecer, não poder mostrar que nada foi em vão.

Hoje, exatamente um ano após a maior perda que tive, não é dia diferente na saudade. Porque não houve um momento, nesses 365 dias, que eu não tenha revisitado aquela que mais zelou por mim, a ela virado do avesso e a mim também. Mas a falta é maior. O ser humano cometeu o erro de encapsular o tempo, torná-lo contábil, e nesse movimento de controlar a realidade, esqueceu-se das simbologias que o titã Cronos poderia criar. Porém, propõe Machado, “este desejo de capturar o tempo é uma necessidade da alma e dos queixos; mas ao tempo dá Deus habeas corpus”.

Por isso, há que ser otimista também: se alguém não tivesse botado areia na ampulheta, as datas simbólicas não concentrariam as angústias da perda. Sem demarcação temporal, a vida seria uma sucessão constante de lamentações, um “eterno retorno” às avessas do proposto por Nietzsche. No fim das contas, a dor de hoje é a dor de sempre, e assim será até o dia em que eu me tornar a saudade de alguém.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

A tragédia brasileira tem o seu Macbeth

Eu já li quatro obras de Shakespeare: Romeu e Julieta, a mais fraca delas; O Rei Lear; Otelo; e aquela que, junto com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, é a maior que a literatura de ficção já produziu, Hamlet. Até tenho um quinto livro do escritor inglês nascido no século XVI, mas só acessei o conteúdo por meio do filme. Por duas vezes – a primeira no cinema e ontem (18) pela TV – assisti a Macbeth: ambição e guerra (2015), dirigido por Justin Kurzel, cujas atuações destacáveis ficam a cargo de Michael Fassbender e Marion Cotillard.

O enredo traz aspectos importantes da bibliografia shakespeariana, em sua faceta trágica: conspiração, culpa, traição e morte. Macbeth (Fassbender) é general do exército escocês. Influenciado pela esposa, Lady Macbeth (Cotillard), personagem forte, densa e igualmente assombrada pela morte precoce do filho, assassina o rei. Único a testemunhar o crime, Malcolm (Jack Reynor), o herdeiro do trono, é forçado a fugir. Macbeth e sua cúmplice, agora, são os únicos a ter ciência completa dos fatos. A condição de monarca cai no colo do conspirador do reino.

[Fonte: www.wicaonline.org]
A partir daí, a sensação de culpa, nos moldes de Crime e Castigo, de Dostoiévski, toma conta de Macbeth, que, justamente por isso, surta. A fragilidade do agora rei fica escancarada na sua incapacidade de lidar com as traições e mortes das quais fora autor ou mandante. A esposa, vendo a fraqueza do marido se transformar em tirania, tira a própria vida, talvez por perceber que despertou em Macbeth o lado mais obscuro da vida: o receio de acontecer consigo aquilo que ele causou aos outros.

Há que se destacar alguns pontos da produção cinematográfica: a atuação do casal protagonista é brilhante. A expressividade dos gestos, o texto bem fiel à redação de Shakespeare e a carga dramática, com pertinência, que Cotillard e Fassbender deram aos seus personagens, quase que compondo uma peça de teatro filmada, mostram que o filme não se preocupou em popularizar a obra literária. A ambientação e a fotografia dão uma carga ainda mais pesada à narrativa. Do contrário, talvez surgiria um conteúdo mais acessível ao público, porém infiel à obra canônica.

Deixando de lado as sempre injustas comparações entre livro e filme, Macbeth: ambição e guerra contém 105 minutos de entretenimento consistente e desafiador. Mas não é necessário se limitar à ficção. É quase inevitável não buscar paralelo com a nossa realidade política em curso. Se a história é sofisticada e o texto de difícil entendimento, não será trabalhoso ao espectador identificar que a tragédia brasileira tem o seu Macbeth.

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Curtos contos cotidianos

FOGO
O vento que soprava na varanda arejou o ar abafado de janeiro e pôs a balançar o candeeiro que alumiava em movimento o lado de fora da casa. Quando uma rajada se engrandeceu, o fogo apagou, e o brilho da luz que outrora contemplava uma conversa não presenciou o beijo apaixonado de duas mulheres que ali estavam há algum tempo. Elas não se amavam, nunca haviam se visto até então. Se contentaram com a nudez em meio à sombra por entenderem que o prazer dispensa protocolos.

RECOMEÇO
Vinha de longe, cambaleando, um pedaço miúdo de gente. As pernas – fofas, arqueadas e diminutas deveras – zanzavam, com os pés a tatearem o chão sem firmeza. Parou, fez-se do corpo um pêndulo e caiu. Não chorou. Com sabedoria inata, supunha que a vida era de tombos também, e preferiu se agarrar a um objeto qualquer para se colocar de pé e começar tudo outra vez.

PARAÍSO
Havia algo de fascinante no céu daquela noite: a lua, encoberta por espessas nuvens, não deixava a escuridão tomar conta de tudo. Em derredor, relâmpagos relatavam a chuva recente ou anunciavam uma outra vindoura e que, agora, caía forte nas imediações. Ali, numa rua pouco habitada e quase sem movimento, restou ao casal uma brisa boa, daquelas que encorajam transgressões e perturbam os bons modos. E entre um gole e outro de cerveja, dois corpos desavergonhados e em enlace.

MISTÉRIO
De tanto pensar no sentido da vida, morreu. E sem poder falar o que descobrira – pois morto já estava –, guardou segredo e legou a quem ficou a angústia de viver sem saber ao certo por quê.

A vida lhe havia dado mais uma pancada. Caído e imerso numa fragilidade soturna, não sorriu, nem chorou. Sabia que o momento era de coragem, com parcimônia. E antes de se levantar e prosseguir, alinhou os joelhos no chão, cerrou os olhos e, abrindo os braços com as palmas pra cima, bradou em silêncio: “meu Deus!”.

[Fonte: www.observenigeria.com]
IGNORÂNCIA
O professor, convicto de que estava ali só para ensinar, perdeu oportunidade de aprender com os alunos, que aprendiam e ensinavam todos os dias que ensino e aprendizagem não são monopólios de quem quer que seja.

AUSÊNCIA
Acordou feliz do sonho que acabara de ter. De imediato, amuou-se: a pessoa só lhe era presente nas brevidades do sono. Lembrou, então, que a vida não brinca de sonhar e que o sonho, irrealizável, caíra-lhe como um lembrete: contenta-te com a saudade.

DILEMA
Com receio de sofrer por amor, preferiu não amar. E como não amou e nem sofreu, deixou de provar o gosto doce de amar e ser mais feliz do que foi sem sofrer.

AMPULHETA
Quando se deu conta, a vida lhe passara. Enquanto via as feridas do passado cicatrizarem, outras se abriam em virtude do futuro não vivido. E concluiu resignadamente: o tempo é o melhor e o pior dos remédios.

AVESSO
Ao avistar algo estranho, parou. Estava diante de uma situação que jamais vivera. E quando menos esperava, o amor passou por ela como um mar em ressaca que arrasta tudo sem gentilezas. Ao recuo das águas, a calmaria fazia-lhe a emanação de uma outra vida, arrebatada pelo sentimento do qual ela não mais queria abrir mão.

quinta-feira, 18 de maio de 2017

12 breves considerações [gosto disso!] sobre as nossas tragédias

[1] Com Aécio em vias de ser preso [Fachin, por ora, livra o mineiro do xilindró], Cunha já condenado e Temer chegado a uma propina [os três sabotadores da República em 2015 e 2016, correto?], está mais do que claro: Dilma Rousseff sofreu golpe.

[2] Numa tacada só, Aécio é pego planejando assassinato e Temer sendo benevolente com pagamento de propina. Que dia terrível para a direita brasileira!

[3] Cada vez mais, frases como “somos milhões de Cunhas” e “A culpa não é minha. Eu votei no Aécio” ficam risíveis e entram para os anais da história.

[4] Lembro da tucanalha questionando os petralhas porque, em 2014, estes preferiram Dilma a Aécio [pasmem! Numa democracia a gente pode escolher]. Hoje, Dilma tá andando de bicicleta e tirando selfie com o povo em Porto Alegre. Aécio, escorraçado do senado, é quase um foragido. 

[5] Temer é produto de dois movimentos opostos: do PT, que cretinamente o permitiu na vice-presidência, e dos reaças brasileiros [grande mídia, empresários e parte do judiciário, parlamento e da sociedade civil], que o tiraram da sua legitimidade como vice e o transformaram num presidente usurpador do poder.

[6] Os petistas sempre tentaram se desvencilhar totalmente de Michel, sem atentar que o princípio de tudo deveu-se ao fisiologismo do partido em nome da manutenção do poder. A direita, capitaneada pelo PSDB, faz o mesmo, mas se aliou a Temer quando lhe foi conveniente. Não que os seguidores de Alexandre Frota e Kim Kataguiri curtissem o esposo de Marcela, mas como era "tudo culpa do PT", agarraram-se a Temer. Agora naufragam.

[Fonte: Folha/UOL]
[7] Repito o que já falei sobre Lula: é mais sujo que o banheiro do boteco que frequento às sextas [saudades, arcanjo!]. Cabe a Moro prendê-lo, algo que o juiz e o MP de Curitiba tentam há mais de três anos [sem provas, só com convicções, fica difícil]. Mas não botem Luiz Inácio e Michel Temer na mesma prateleira. Lula não é nada. Temer é o presidente da República Federativa do Brasil.

[8] Temer reclamar de conspiração é o mesmo que imaginar Hitler se queixando de mau tratamento num campo de concentração. Provar do próprio veneno parece indigesto.

[9] Aquele conto de fadas, de que o PT monopolizava o mercado da corrupção, ruiu ontem. Agora o senso comum vocifera: “nenhum salva, tudo farinha do mesmo saco” [o que, diga-se, é outro equívoco dos fundamentalistas de plantão]. A 'santíssima trindade' da política brasileira [PSDB/PMDB/PT] está na lama, mas profetizar terra arrasada é típico do fascismo.

[10] O estado democrático de direito é fascinante por vários motivos. Um deles: não há o diz-que-me-diz-que. Há a lei. Temer, Dória, Moro, Lula, você e eu devemos obediência a ela. Se a lei é ruim – e muitas são –, a nossa luta é válida para alterá-la, não burlá-la. O parágrafo primeiro do Artigo 81 da Constituição Federal é claro: no caso de vacância dos cargos de presidente e vice, a menos de dois anos do término do mandato, são realizadas eleições [indiretas] pelo Congresso Nacional, em até 30 dias. Sim, os parlamentares, a maioria deles representando a fina flor da canalha, devem escolher presidente e vice que terminarão o mandato vigente até 31/dez/2018. Qualquer coisa fora disso, só por Emenda Constitucional, algo que demandaria tempo para passar pelas comissões e pelos plenários da câmara e do senado em dois turnos, com 3/5 de aprovação em cada uma das quatro votações.

[11] O que eu acho: eleições diretas resolveriam um problema iniciado por Dilma em janeiro de 2015 [estelionato eleitoral] e aprofundado em 2016 [golpe de Estado]: um novo pacto seria estabelecido. A celebração quase sagrada entre representação e sociedade só pode se dar pelo voto. E que quem sair derrotado das urnas saiba entender que é legítimo o outro governar, ao contrário do papelão protagonizado pelos tucanos, que no dia seguinte à eleição de Dilma em 2014 começaram a choramingar o impeachment.

[12] Num cenário de devastação total – ainda não é o nosso caso, embora quase –, os bons recusam a política, abrindo espaço para o surgimento de personagens reacionários. A tendência é aparecer gente pior [Bolsonaro tá esfregando as mãos e lambendo os beiços; Dória, o farsante, vai continuar se vestindo de gari, demagogo que é]. A despeito da história provar isso, que se desmantele esse grande esquema em que se transformaram os corredores do nosso poder. São dois processos distintos: um é punir a corrupção; o outro são as escolhas que faremos a partir daí.

quinta-feira, 9 de março de 2017

Talvez o meu texto seja machista

Há alguns anos, eu não parabenizava as mulheres por julgar o 08/03 uma idiotice. O idiota era eu. Hoje, eu continuo a não dirigir à mulher o já batido “parabéns pelo seu dia”. A data está longe de ser uma tolice como eu mesmo julgava, mas a forma como o Dia Internacional da Mulher é encarado, de um modo geral, quase sempre resvala em afirmações do tipo “o que seria de nós sem vocês” ou nos inúmeros estereótipos desastrosos que Michel Temer conseguiu incluir ontem em menos de um minuto de fala. Deu saudade dos discursos de Dilma. Se fosse uma gafe – eufemismo que os preconceituosos dão para justificar suas discriminações –, já teria sido uma aparição desprezível. Mas não foi um deslize: aquele é o exato pensamento do “presidente”, lamentavelmente em concordância com uma imensidão de brasileiras e brasileiros.

Mas a data, em vez de servir para dar esmolas às mulheres e colocá-las no protagonismo que não se vê nos outros 364 dias do ano, é de muita reflexão e coragem – não só por parte da mulher, diga-se. Reflexão para entender as conquistas das últimas décadas, cenário que obriga o homem a se reinventar também. A mulher continua fazendo o que sempre fez, e nos espaços que passou a ocupar trouxe virtudes desconhecidas até então. Para quem pensou na “beleza” como melhor recurso oferecido pela mulher, um aviso: rosto ou corpo bonito não tem a menor importância no caldeirão de avanços que o mundo teve com a incursão da mulher aqui e ali. Lembremos: as melhorias não foram benevolências concedidas pelos homens. Vieram à custa de muita mulher na rua.

Logo, cabe ao homem fazer o mesmo: empenhar-se em melhorar os seus atributos nos espaços que agora divide – mesmo porque ganha um salário bem maior que a mulher no mercado de trabalho, ainda que em cargos similares –  e desempenhar obrigações que, hoje, não são mais exclusivas da mulher – ou não deveriam ser. Já passou da hora do homem dividir os afazeres domésticos, contribuir não só financeiramente para o bom andamento do lar, participar ativamente da educação dos filhos e, óbvio, entender que a roupa do dia, o lugar aonde ir, em companhia ou solitária, a hora de ir e vir, o que vai falar, beber e comer, o jeito de dançar, em que cama e com quem irá dormir são decisões que competem a ela, e a ninguém mais.

O incêndio na Triangle Shirtwaist Company, em 25 de março de 1911 (Nova Iorque/EUA), é um marco para as manifestações feministas no século XX. Foram 146 mortes, dentre elas 125 mulheres. A partir de então, foi comum ver protestos exigindo melhores condições de trabalho, redução da jornada diária, equiparação salarial e melhor tratamento no ambiente das fábricas. Porém, as primeiras mobilizações feministas nasceram no final do século XIX.
(Foto: Wikepédia)
Foi-se o tempo em que o homem saía para trabalhar e a esposa – sempre bela, recatada e do lar – ficava em casa providenciando as refeições, limpando a casa, lavando e passando roupa, cuidando dos filhos, à espera da volta triunfal do marido. É isso que Michel Temer ainda não entendeu (e possivelmente nunca entenderá). O mérito da mulher não está cravado no território doméstico. Está na autonomia de fazer o que bem entender de si mesma, algo que antes lhe era negligenciado pelos homens. Sem aceitarem a igualdade, apelam ao machismo, ancorados em mentalidades arcaicas que só servem para atentar contra direitos fundamentais.

E é por isso que o 08/03 é também dia de coragem. Coragem porque muita mulher é ridicularizada no trabalho, apanha em casa, é estuprada nas ruas. Coragem porque é senso comum não distinguir a morte de um homem da de uma mulher em casos de violência. A mulher, em larga porcentagem, é morta por ser mulher (o mesmo acontece com negros e homossexuais). Há uma diferença que precisa ser estabelecida, e não fazer isso é fomentar o preconceito.

Reflexão e coragem são exercícios de todas e todos. Parece-me que numa sociedade democrática e republicana, não cabe só à mulher lutar contra as opressões que lhe são impostas, a despeito de ser mais do que pertinente a sua liderança em um movimento dessa natureza. Defendo isso não por julgar a mulher incapaz de resistir isoladamente (tantas já fizeram isso um sem número de vezes), mas por entender que o homem é parte do todo, e seria muito cômodo simplesmente lavar as mãos diante de preconceito tão evidente. Entretanto, se alguma mulher um dia disser que não quer a minha militância ao lado dela, só me caberá acatar e torcer à distância para que ela triunfe.