segunda-feira, 19 de junho de 2017

A tragédia brasileira tem o seu Macbeth

Eu já li quatro obras de Shakespeare: Romeu e Julieta, a mais fraca delas; O Rei Lear; Otelo; e aquela que, junto com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, é a maior que a literatura de ficção já produziu, Hamlet. Até tenho um quinto livro do escritor inglês nascido no século XVI, mas só acessei o conteúdo por meio do filme. Por duas vezes – a primeira no cinema e ontem (18) pela TV – assisti a Macbeth: ambição e guerra (2015), dirigido por Justin Kurzel, cujas atuações destacáveis ficam a cargo de Michael Fassbender e Marion Cotillard.

O enredo traz aspectos importantes da bibliografia shakespeariana, em sua faceta trágica: conspiração, culpa, traição e morte. Macbeth (Fassbender) é general do exército escocês. Influenciado pela esposa, Lady Macbeth (Cotillard), personagem forte, densa e igualmente assombrada pela morte precoce do filho, assassina o rei. Único a testemunhar o crime, Malcolm (Jack Reynor), o herdeiro do trono, é forçado a fugir. Macbeth e sua cúmplice, agora, são os únicos a ter ciência completa dos fatos. A condição de monarca cai no colo do conspirador do reino.

[Fonte: www.wicaonline.org]
A partir daí, a sensação de culpa, nos moldes de Crime e Castigo, de Dostoiévski, toma conta de Macbeth, que, justamente por isso, surta. A fragilidade do agora rei fica escancarada na sua incapacidade de lidar com as traições e mortes das quais fora autor ou mandante. A esposa, vendo a fraqueza do marido se transformar em tirania, tira a própria vida, talvez por perceber que despertou em Macbeth o lado mais obscuro da vida: o receio de acontecer consigo aquilo que ele causou aos outros.

Há que se destacar alguns pontos da produção cinematográfica: a atuação do casal protagonista é brilhante. A expressividade dos gestos, o texto bem fiel à redação de Shakespeare e a carga dramática, com pertinência, que Cotillard e Fassbender deram aos seus personagens, quase que compondo uma peça de teatro filmada, mostram que o filme não se preocupou em popularizar a obra literária. A ambientação e a fotografia dão uma carga ainda mais pesada à narrativa. Do contrário, talvez surgiria um conteúdo mais acessível ao público, porém infiel à obra canônica.

Deixando de lado as sempre injustas comparações entre livro e filme, Macbeth: ambição e guerra contém 105 minutos de entretenimento consistente e desafiador. Mas não é necessário se limitar à ficção. É quase inevitável não buscar paralelo com a nossa realidade política em curso. Se a história é sofisticada e o texto de difícil entendimento, não será trabalhoso ao espectador identificar que a tragédia brasileira tem o seu Macbeth.

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Curtos contos cotidianos

FOGO
O vento que soprava na varanda arejou o ar abafado de janeiro e pôs a balançar o candeeiro que alumiava em movimento o lado de fora da casa. Quando uma rajada se engrandeceu, o fogo apagou, e o brilho da luz que outrora contemplava uma conversa não presenciou o beijo apaixonado de duas mulheres que ali estavam há algum tempo. Elas não se amavam, nunca haviam se visto até então. Se contentaram com a nudez em meio à sombra por entenderem que o prazer dispensa protocolos.

RECOMEÇO
Vinha de longe, cambaleando, um pedaço miúdo de gente. As pernas – fofas, arqueadas e diminutas deveras – zanzavam, com os pés a tatearem o chão sem firmeza. Parou, fez-se do corpo um pêndulo e caiu. Não chorou. Com sabedoria inata, supunha que a vida era de tombos também, e preferiu se agarrar a um objeto qualquer para se colocar de pé e começar tudo outra vez.

PARAÍSO
Havia algo de fascinante no céu daquela noite: a lua, encoberta por espessas nuvens, não deixava a escuridão tomar conta de tudo. Em derredor, relâmpagos relatavam a chuva recente ou anunciavam uma outra vindoura e que, agora, caía forte nas imediações. Ali, numa rua pouco habitada e quase sem movimento, restou ao casal uma brisa boa, daquelas que encorajam transgressões e perturbam os bons modos. E entre um gole e outro de cerveja, dois corpos desavergonhados e em enlace.

MISTÉRIO
De tanto pensar no sentido da vida, morreu. E sem poder falar o que descobrira – pois morto já estava –, guardou segredo e legou a quem ficou a angústia de viver sem saber ao certo por quê.

A vida lhe havia dado mais uma pancada. Caído e imerso numa fragilidade soturna, não sorriu, nem chorou. Sabia que o momento era de coragem, com parcimônia. E antes de se levantar e prosseguir, alinhou os joelhos no chão, cerrou os olhos e, abrindo os braços com as palmas pra cima, bradou em silêncio: “meu Deus!”.

[Fonte: www.observenigeria.com]
IGNORÂNCIA
O professor, convicto de que estava ali só para ensinar, perdeu oportunidade de aprender com os alunos, que aprendiam e ensinavam todos os dias que ensino e aprendizagem não são monopólios de quem quer que seja.

AUSÊNCIA
Acordou feliz do sonho que acabara de ter. De imediato, amuou-se: a pessoa só lhe era presente nas brevidades do sono. Lembrou, então, que a vida não brinca de sonhar e que o sonho, irrealizável, caíra-lhe como um lembrete: contenta-te com a saudade.

DILEMA
Com receio de sofrer por amor, preferiu não amar. E como não amou e nem sofreu, deixou de provar o gosto doce de amar e ser mais feliz do que foi sem sofrer.

AMPULHETA
Quando se deu conta, a vida lhe passara. Enquanto via as feridas do passado cicatrizarem, outras se abriam em virtude do futuro não vivido. E concluiu resignadamente: o tempo é o melhor e o pior dos remédios.

AVESSO
Ao avistar algo estranho, parou. Estava diante de uma situação que jamais vivera. E quando menos esperava, o amor passou por ela como um mar em ressaca que arrasta tudo sem gentilezas. Ao recuo das águas, a calmaria fazia-lhe a emanação de uma outra vida, arrebatada pelo sentimento do qual ela não mais queria abrir mão.