“[...] mas o tempo é um
tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um
castelo, um túmulo. Também se pode bordar nada. Nada em cima de invisível é a
mais sutil obra deste mundo, e acaso do outro” [Machado de Assis, em Esaú e Jacó]
Parece ser consenso entre
religiões e doutrinas que negam a religação
que a morte é inexorável e representa o fim de um ciclo, seja ele concebido
por preceitos divinos ou resultado de embates cósmicos que nos fazem ser apenas
uma fração insignificante do universo, desprovido de qualquer protagonismo que
o ser humano teima em homologar a si próprio. E ainda que a gente se escore na
vida eterna, em outras vidas finitas ou na inexistência de Deus e diabo, o fato
é que a morte é implacável com quem vai e tem o talento inigualável de machucar
quem fica.
E o medo da perda acaba fazendo
da gente o esboço do egoísmo. É comum, à beira do suspiro derradeiro de quem
acena um “tchau”, o apego à carne, à pequenez da nossa ontologia que só
consegue entender uma fagulha do todo. O todo nos escapa, tamanha a
nossa insignificância. Talvez não seja a perda em si, mas a incapacidade de
entender o que se passa, o nosso maior monstro, o fantasma que nos coloca de
joelhos a decifrar, sem sucesso, o maior enigma que está posto. A gente se
habituou a manipular o mundo, a impor a nossa soberania sobre as gentes e as
coisas, e quando se depara com a única equação da qual não tem controle, sofre.
A saudade nos traz uma certeza,
que é pessimista por excelência: na ausência de quem foi, nada será como antes.
É inegável: cada pessoa, na complexidade que é a existência humana, é
insubstituível. Por mais que se empenhem, dos que nos acompanham em meio à tormenta só ficará o esforço de consolar, um afago em gesto ou palavra. Em suma, a falta de alguém
importante remexe as nossas entranhas, cria-nos vácuos no peito, flashes de
lembranças, uma lágrima a arranhar a face... Acabou.
Mas se a saudade só vivesse de
infortúnios, ninguém resistiria a uma ausência acachapante. Ela ajuda a amadurecer
o espírito, coage a mente a entender que a vida, o tempo todo, também é de
perdas. O corpo responde com o pranto e a sensação de que o tempo estacionou,
no intuito de aborrecer ainda mais o nosso juízo. Mas ele – o tempo – passa, e
a não aceitação dá lugar ao conformismo de que, a partir dali, será assim. Então,
o exercício de revisitar a pessoa, num movimento mental de ver quem partiu sob
uma outra perspectiva, torna-se praxe. Passamos a pinçar detalhes da história e
a ressignificá-los.
E essa ação atrasada se dá por um
equívoco de cálculo: é consenso entre nós que sempre haverá uma chance de
entender o gesto de alguém em vida, sem perceber que acabamos por eternizar o
“deixa pra depois”. É só quando não há mais depois
que buscamos o aceno, o beijo, o semblante, o sorriso, a palavra, o olhar, uma
foto, um cheiro, um lugar. Enfim, qualquer coisa que na displicência da vida
não atentamos e que, agora, tem significados que confortam, por um lado, mas
por outro frustram em função da impossibilidade de agradecer, não poder mostrar que nada foi em
vão.
[Fonte: www.casamento.culturamix.com] |
Hoje, exatamente um ano após a
maior perda que tive, não é dia diferente na saudade. Porque não houve um
momento, nesses 365 dias, que eu não tenha revisitado aquela que mais zelou por mim, a ela virado
do avesso e a mim também. Mas a falta é maior. O ser humano cometeu o erro de
encapsular o tempo, torná-lo contábil, e nesse movimento de controlar a
realidade, esqueceu-se das simbologias que o titã Cronos poderia criar. Porém, propõe
Machado, “este desejo de capturar o tempo é uma necessidade da alma e dos
queixos; mas ao tempo dá Deus habeas
corpus”.
Por isso, há que ser otimista
também: se alguém não tivesse botado areia na ampulheta, as datas simbólicas
não concentrariam as angústias da perda. Sem demarcação temporal, a vida seria
uma sucessão constante de lamentações, um “eterno retorno” às avessas do
proposto por Nietzsche. No fim das contas, a dor de hoje é a dor de sempre, e
assim será até o dia em que eu me tornar a saudade de alguém.