Para além do produto jornalístico, o objeto de sua atenção escancara a nossa miséria enquanto humanidade
De tempos em tempos, o jornalismo é capaz de parir uma produção que, para o bem ou para o mal, mobiliza as pessoas, gera discussões acaloradas e, no limite, leva-nos a uma reflexão sobre a sociedade que ele próprio tenta retratar e os artifícios técnicos e deontológicos de que ele dispõe para tal ofício. A bola da vez é “A mulher da casa abandonada”, uma reportagem (ou seria um documentário?) em áudio produzida pela Folha de S. Paulo, em uma série com sete episódios, tendo no repórter Francisco Felitti o seu maior artífice.
Em resumo, o material coloca no centro da sua abordagem Margarida Bonetti, indiciada no Estados Unidos por manter uma empregada doméstica brasileira sob condições análogas à escravidão durante quase duas décadas, que só escapou da condenação e da prisão por fugir para o Brasil. Margarida é a mulher da casa abandonada, que, como se nota, não é tão abandonada assim. Por trás de uma mansão decadente de um dos bairros mais ricos de São Paulo, há um passado que vai sendo desvendado em cada um dos sete episódios do podcast.
Sob o ponto de vista técnico, parece-me que o podcast explora os recursos que a mídia sonora oferece: som ambiente (ruídos, burburinhos e animais), sonoras de pessoas que concedem entrevistas ou que representam vozes captadas (mais adiante, falaremos de alguns deslizes da produção), trilha inserida em momentos de destaque, tudo compondo a paisagem sonora, conceito que aprendi com o companheiro de UFMT, Luãn Chagas, a quem respeitosamente peço licença para falar de um flanco do jornalismo sobre o qual acumulo reduzido conhecimento.
Se o jornalismo produzido apenas com sons precisa fidelizar o público com aquilo que ele ouve, o repertório apresentado pela produção não prescindiu nem do silêncio, uma relevância aparentemente contraditória para uma mídia cuja razão da própria existência é a marola, não a mansidão.
Neste aspecto, entre todas as credenciais exploradas pela reportagem, a impertinência técnica mais gritante foi aplicar a uma história de gravidade elevada (e não em poucas oportunidades o conteúdo faz menção a isso), em momentos específicos, uma trilha sonora que remetia o ouvinte a um outro teor, mais exótico, folclórico, especialmente quando a linguagem falada (pelo repórter e pelas fontes) se referia a espíritos e assombrações. Não há nada de sobrenatural na escravidão. Aliás, na pele de quem a sofre, é a mais real agressão - física e moral - a que alguém é submetido.
Ainda no aparato técnico da produção, é necessário fazer um destaque positivo ao texto, com evidentes características literárias: descrição (de espaços, objetos e pessoas), períodos curtos (por vezes, uma ou duas palavras), uso de adjetivos, elaboração de juízos de valor, linguagem simples, nariz de cera (quando a narrativa, típica da literatura, não vai ao ponto logo de cara, como fazem as notícias) e digressão (o movimento de sair do tempo presente e ir ao contexto histórico para dar o entendimento mais robusto à informação abordada).
O roteiro (sim, o podcast é um documentário em áudio!) é outro ponto de relevo. A forma como se organizam as sonoras (não em ordem cronológica de captação) e a própria narração do repórter (também de maneira a fragmentar as informações que estão sendo passadas, ainda que ele as detenha em sua totalidade quando ouvimos os primeiros episódios) também é um movimento notável.
Com evidência, falamos aqui de um formato híbrido, tal como já o produziram, em mídia impressa, jornalistas da envergadura de Euclides da Cunha, Eliane Brum, Caco Barcellos, Lira Neto, Mário Magalhães, Truman Capote, Norman Mailer, John Hersey, Gay Talese, entre tantos outros. O documentário audiovisual, de alguma maneira, caminha aí também. O brasileiro Eduardo Coutinho o fez como poucos.
Truman Capote, repórter da revista "The New Yorker", teve em "A Sangue Frio" uma de suas obras mais célebres. Fonte: Letras In.Verso e Re.Verso |
Não por outra razão, o roteiro tem importância majorada em uma produção desta estirpe. Faz com que ouçamos uma história de não ficção como se fosse um romance. Faz com que enxerguemos as pessoas entrevistadas como personagens, não como fontes. Faz com que olhemos o fato como um enredo, manipulável em tempo e espaço, e não um acontecimento, cujos desdobramentos se impõem aos observadores.
Mas é preciso reconhecer, de igual modo, que os elementos literários da narrativa dão ao conteúdo jornalístico o interesse humano que a linguagem (função referencial) e a estrutura (lide e pirâmide invertida) do jornalismo de puro-sangue não são capazes de oferecer. A imersão provocada por um roteiro bem construído viabiliza às pessoas vivenciarem o acontecimento em todas as suas nuances - boas ou ruins, trágicas ou regozijantes, contentadoras ou tristes.
Na apuração jornalística, etapa da produção do conteúdo que converge técnica, epistemologia e ética, ressaltam-se alguns vetores: [i] parte deles forjada pela academia, como as reflexões acerca do fazer jornalístico; [ii] uma fração dependente do acaso, como encontrar, por sorte, a dona da casa sobre a qual havia a intenção de falar; e [iii] uma porção final relativa ao tino do profissional, na capacidade que o repórter teve de converter o comentário em um site de arquitetura no ponto de partida para uma excelente matéria.
No decorrer da caminhada, o empenho em consultar fontes documentais é destacável: processos, leis ou conteúdos noticiosos televisivos e impressos. A busca por fontes pessoais também compõe a sua base de informações: Margarida Bonetti, a mulher da casa abandonada; a pessoa escravizada por quase 20 anos em outro país; pessoas do entorno da casa (porteiro, taxista, zelador, moradora, segurança); Vicky Schneider, a mulher que criou as condições para que a situação análoga à escravidão terminasse e houvesse a investigação do FBI, jurista, cientista, dois procuradores, um integrante da Organização Interncional do Trabalho (OIT), além da tentativa de falar com Renê Bonetti, o marido de Margarida, condenado a mais de seis anos de prisão pelos crimes cometidos contra a empregada doméstica brasileira.
No entanto, os méritos do podcast (que são muitos, como se vê) não podem escamotear algumas deficiências no âmbito da deontologia do Jornalismo. O nosso ofício carrega consigo um corolário de princípios, sem os quais o trabalho resvala no utilitarismo ou no pragmatismo, cujos motes são a maximização da felicidade e o vale-tudo para se atingir um objetivo (os fins justificam os meios), respectivamente.
A deontologia, ao contrário, constitui-se em uma conduta intencionalista, segundo a qual as consequências, fora do escopo de controle de quem atua, não podem se sobrepor aos deveres (princípios). Ela pressupõe o “dever ser”, lógica ética que invoca os imperativos categóricos da concepção kantiana de filosofia moral, de sorte que a atuação da imprensa não se faz valer atrelada aos efeitos, às consequências, à audiência do conteúdo que se noticia, mas às premissas, como interesse público, verdade factual, relevância, transparência, independência, entre outros, que são invioláveis, praticadas à revelia do desejo do cidadão ou do próprio profissional.
Neste caso, portanto, falamos em erros de procedimentos, que só acontecem porque a ambiência ética, que é uma instância a priori, foi corrompida: as pessoas que falavam, ainda no primeiro episódio, na farmácia de Higienópolis tinham ciência de que estavam sendo gravadas? Elas autorizaram a veiculação de suas vozes e falas? Margarida Bonetti sabia que a sua voz estava sendo captada para além do momento da entrevista? A ela foi dada ciência de que os contatos telefônicos com o jornalista foram gravados?
Em nome da informação, não pode haver uma espécie de “excludente de ilicitude”, dado que o repórter, assim como tantos outros, estará em outras pautas logo adiante. Que garantia uma pessoa comum passa a ter de que, no contato com um jornalista (qualquer que seja), as suas manifestações não estão sendo registradas sem que a ela seja dada ciência disso?
Veja como há aqui uma camada de corporativismo às avessas do que comumente ocorre: o desvio de um colega de trabalho pode macular, de modo preventivo, o trabalho dos seus pares. O jornalismo é permeado por relações de confiança: do repórter em relação ao editor (e vice-versa), do repórter em relação à fonte (e vice-versa), do público em relação ao repórter. Se ocorre um ruído, uma hesitação, em qualquer um desses elos, o nosso ofício fica comprometido.
Ao mesmo tempo, é importante destacar, em diálogo com a legislação, que o sigilo da fonte foi resguardado às pessoas que não quiseram se identificar, desde aquelas que não revelaram o seu sobrenome, até as fontes totalmente ocultas, como uma das partes envolvidas na herança e a pessoa que foi submetida a condições análogas à escravidão. O jornalismo está bastante desguarnecido do ponto de vista normativo, especialmente a partir do momento em que caiu a exigência do diploma para o exercício da profissão, em 2009. No entanto, o sigilo da fonte é garantido pelo texto constitucional, em seu Artigo 5º, inciso XIV: “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”.
A informação em off (off the record) tem virtudes e defeitos: se, por um lado, ela dá conforto à fonte para revelar uma informação sensível, movimento que não faria se ela estivesse identificada, por outro o procedimento fragiliza o jornalista, na medida em que o ônus da informação publicada recai sobre si, correndo o risco de que a fonte, de forma segura, pode usar o repórter para plantar uma informação (factoide) que lhe convém. Neste meandro, a nossa atuação está mais fragilizada, mas é necessário reconhecer que o escândalo de Watergate, uma das maiores e melhores coberturas jornalísticas da história, só foi possível graças ao “garganta profunda”, a fonte que desenhou o caminho para que Woodward e Bernstein chegassem a Nixon.
Carl Bernstein (à esquerda) e Bob Woodward, jornalistas do "The Washington Post", cujo trabalho culminou na renúncia de Richard Nixon, presidente dos Estados Unidos, em 1974. Fonte: O Globo |
Por fim, há que se destacar que a fonte tem o direito de decidir se o seu nome será ou não vinculado à informação, e é dever do jornalista respeitar o posicionamento daquela pessoa que lhe concedeu o depoimento. Mas não é do escopo da fonte deliberar sobre a publicação ou não do conteúdo final, etapa da produção jornalística que cabe ao repórter, ao editor, à chefia de redação e à direção de jornalismo. A fonte não possui expertise sobre o ofício, cabendo a decisão aos operadores dos critérios de noticiabilidade e dos valores-notícia.
“A mulher da casa abandonada” é mais uma produção jornalística, que, como praticamente todas as demais, é portadora de aspectos positivos e negativos, sobre os quais o conhecimento científico e o senso comum irão debater por algum tempo, até que outra pauta chame a atenção de todo mundo, tornando a anterior descartável. Até que outra pauta desperte a curiosidade mórbida do público para se sentir parte de um fato via Instagram ou Tik Tok, desconsiderando o drama que é saber da existência de novas formas de escravidão após 134 anos de abolição.
Isso, sim, é relevante, não apenas porque desnuda um passado perverso, de quase 400 anos, mas também porque descortina o submundo da nossa elite econômica. Durante muito tempo, barões e marqueses se beneficiaram dos títulos recebidos para se enriquecerem às custas do Estado, o que de alguma maneira nos permite entender a apropriação de espaços públicos, privatizando-os, enfiando cancelas em ruas, transformando bairros em condomínios. É a derrota do coletivo, da cidadania, em prol do individualismo.
Mas não para aí. A empregada doméstica (como a própria reportagem pontua: quase sempre uma mulher pobre e negra), calcada no tripé gênero-pobreza-negritude, torna-se uma propriedade dos patrões, a ponto de se impor uma desumanização sobre a outra pessoa. Ela não precisa ter uma família (e, por isso, o “quarto de empregada” nos imóveis aristocratas); ela não precisa de janela (já que uma empregada não tem direito ao mundo exterior, não dando a ela também a possibilidade da projeção onírica de uma vida melhor e trancafiando-a numa realidade sem tempo, sem céu, sem vento); ela não precisa saber ler e escrever (porque é próprio das coisas o iletramento); ela não precisa de atendimento à saúde (a não ser que isso interfira na realização do trabalho); ela não precisa se alimentar, tomar banho, pois tudo é um privilégio do que não é objeto.
De um jeito ou de outro, uma mansão aparentemente abandonada não deixa de simbolizar a decadência. A sujeira, o mau cheiro, o excesso de insetos, o lixo dão a dimensão de que há ocasiões em que nem a aparência, a perfumaria, escapam à imoralidade. Mas tudo isso é insuficiente, a ponto de uma mulher morar em uma mansão, importunar em moralismos e hipocrisia agentes públicos, como se o seu passado oferecesse as credenciais de uma pessoa ilibada. Em suma, a cara da riqueza.
A função do jornalismo, neste caso, não é outra, senão a palavra de ordem escrita por Brecht: arrancar a cortina que nos oculta isto e aquilo. Nem que para isso a imprensa tenha que se deparar com uma falha aqui e ali - e nenhum profissional está isento disso. Nem que para isso nós tenhamos que olhar para as nossas inexploradas entranhas, já denunciadas por Drummond, e encarar os demônios que ainda hão de ser exorcizados. A história do Brasil, mais pontualmente sobre como maltratamos as minorias, precisa ser passada a limpo.