segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

CUIDADO! OS CONTOS DE FADAS NÃO MENTEM

Na última terça [17], depois de muito tempo, fui ao cinema. Aproveitei o feriado de carnaval para fazer o que mais gosto: não pular carnaval. E para tirar o atraso, já vi logo dois filmes, um na cola do outro: O Jogo da Imitação e Caminhos da Floresta. Enquanto o primeiro conta a história de Alan Turning, matemático idealizador de uma máquina que decodificava as estratégias dos submarinos nazistas, o segundo reuniu alguns contos de fadas bem conhecidos do público. O texto de hoje é sobre este.

Mais do que retomar histórias importantes do imaginário infantil, como Rapunzel, Cinderela e Chapeuzinho Vermelho, mais do que satirizar as histórias lúdicas que nos habituamos a ouvir desde pequenos, Caminhos da Floresta é um filme sobre Ética.

Tendo no elenco artistas do porte de Maryl Streep e Johnny Depp, o longa discute justamente a definição de Ética: a reflexão sobre a melhor maneira de agir, cuja finalidade é a boa convivência.

[Foto: www.cinemacomrapadura.com.br]

O ponto-chave do filme é apresentado logo no início: um padeiro [Corden] e sua companheira [Blunt] vivem num vilarejo, onde interagem com personagens famosos de contos de fadas, e tentam – sem sucesso – ter um filho. E a boa convivência, elemento importante das relações éticas, será abalada pela escolha, outro fator crucial no campo da Ética, feita pelo casal.

A insistência – em vão – por parte de ambos de gerar um filho é esclarecida pela Bruxa [Streep]: a infertilidade é resultado de um feitiço imposto pela vilã por um erro cometido, outrora, pelo pai do padeiro. E, como sempre, havia uma possibilidade do mau agouro ser desfeito. Para isso, bastava ao casal cumprir as quatro exigências da Bruxa: levar a ela “um capuz vermelho como sangue, cabelo amarelo como espiga de milho, um sapato dourado como ouro e um cavalo branco como o leite”. A união de todos esses objetos permitiria ao marido voltar a ser fértil e daria a Bruxa as suas feições originais.

O problema ético que o enredo nos coloca está na aceitação das condições impostas pela vilã. E, nesse sentido, o padeiro e sua esposa vão aderir a uma das correntes éticas com as quais a Filosofia trabalha: o Pragmatismo. Tendo como principal expoente o italiano Nicolau Maquiavel, a vertente em questão prima pelo resultado final. Ou seja, a partir do momento em que se estipula um objetivo, ele deve ser cumprido, seja de que maneira for. Temos a materialização da mentalidade “os fins justificam os meios”.


Admite-se, então, fazer qualquer coisa para se atingir a meta, até as piores atitudes, aquelas que infringem a liberdade e o bem-estar de outro indivíduo, que passa a sofrer os prejuízos da ação. Mais do que isso: o afetado enfrenta dificuldades a contragosto, de modo a vivenciar para si uma realidade gerada por outra pessoa.

No filme, a mentira [meio] é o principal recurso para conquistar um filho [fim], provando que o casal não está preocupado com as estratégias de que fará uso para conseguir o que quer. A única relevância é conseguir o que quer. Ponto. Por isso é que se atribui aos praticantes desse pensamento filosófico o termo “pragmático”, uma vez que irá atuar, tal como um robô, em função do anseio.

O pragmatismo, então, é egoísta por natureza, porque exclui qualquer preocupação com o próximo, só resguardando os interesses de quem age. Fazendo uma analogia, é como se um político, para atingir o seu objetivo máximo – manter-se no poder sem ser incomodado –, lançasse mão de medidas questionáveis: censura à imprensa, intimidação de funcionários públicos, chantagem moral, violência psicológica e uso da condição de dirigente máximo como fator que o diferencie dos demais.

Nicolau Maquiavel, italiano, viveu entre 1469 e 1527.
Fundou o pensamento político moderno e a sua principal obra é O Príncipe.
[Foto: www.clickeaprenda.uol.com.br]

Enfim, nota-se que no pragmatismo não há méritos na ação. Existe, sim, o interesse em cumprir uma meta estipulada, que, como se fundamenta num interesse individual, invariavelmente passará como um trator pelos anseios coletivos. E quando falamos em política, ainda mais num contexto de democracia que vigora na cidade, isto é, na polis (termo que dá origem à palavra “política”), a vertente pragmática é dispensável, porque não contempla as demandas de todos, nem da maioria, mas sim de poucos, ou até de um, apenas.

Como se vê, os contos de fadas nos apresentam histórias fantasiosas para escancarar verdades. Impossível não mencionar Chaplin: “Se você tivesse acreditado na minha brincadeira de dizer verdades, teria ouvido verdades que teimo em dizer brincando”. É exatamente esse o legado de Caminhos da Floresta. Ao aceitar atropelar a integridade moral de outras pessoas para ter um filho, o casal conquista o que desejava, mas sem o mérito, aquele parâmetro que dá o gosto doce dos grandes êxitos. De quebra, como a punição tarda, mas não falha, a esposa morre, justamente porque ‘aliar-se ao diabo’ costuma dar nisso. É como um castelo de areia: belo, pomposo, porém cedo ou tarde tende a ruir.

Sim, os contos de fadas são histórias sobre o que vivemos todos os dias. Eles falam, com beleza, das aberrações que praticamos e de que somos vítimas.

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