Na
última terça [17], depois de muito tempo, fui ao cinema. Aproveitei o feriado
de carnaval para fazer o que mais gosto: não pular carnaval. E para tirar o
atraso, já vi logo dois filmes, um na cola do outro: O Jogo da Imitação e Caminhos
da Floresta. Enquanto o primeiro conta a história de Alan Turning,
matemático idealizador de uma máquina que decodificava as estratégias dos
submarinos nazistas, o segundo reuniu alguns contos de fadas bem conhecidos do
público. O texto de hoje é sobre este.
Mais
do que retomar histórias importantes do imaginário infantil, como Rapunzel,
Cinderela e Chapeuzinho Vermelho, mais do que satirizar as histórias lúdicas
que nos habituamos a ouvir desde pequenos, Caminhos
da Floresta é um filme sobre Ética.
Tendo
no elenco artistas do porte de Maryl Streep e Johnny Depp, o longa discute
justamente a definição de Ética: a reflexão sobre a melhor maneira de agir,
cuja finalidade é a boa convivência.
[Foto: www.cinemacomrapadura.com.br] |
O
ponto-chave do filme é apresentado logo no início: um padeiro [Corden] e sua
companheira [Blunt] vivem num vilarejo, onde interagem com personagens famosos
de contos de fadas, e tentam – sem sucesso – ter um filho. E a boa convivência,
elemento importante das relações éticas, será abalada pela escolha, outro fator
crucial no campo da Ética, feita pelo casal.
A
insistência – em vão – por parte de ambos de gerar um filho é esclarecida pela
Bruxa [Streep]: a infertilidade é resultado de um feitiço imposto pela vilã por
um erro cometido, outrora, pelo pai do padeiro. E, como sempre, havia uma
possibilidade do mau agouro ser desfeito. Para isso, bastava ao casal cumprir
as quatro exigências da Bruxa: levar a ela “um
capuz vermelho como sangue, cabelo amarelo como espiga de milho, um sapato
dourado como ouro e um cavalo branco como o leite”. A união de todos esses
objetos permitiria ao marido voltar a ser fértil e daria a Bruxa as suas
feições originais.
O problema ético que o enredo nos coloca está na aceitação
das condições impostas pela vilã. E, nesse sentido, o padeiro e sua esposa vão
aderir a uma das correntes éticas com as quais a Filosofia trabalha: o Pragmatismo.
Tendo como principal expoente o italiano Nicolau Maquiavel, a vertente em questão
prima pelo resultado final. Ou seja, a partir do momento em que se estipula um
objetivo, ele deve ser cumprido, seja de que maneira for. Temos a
materialização da mentalidade “os fins justificam os meios”.
Admite-se, então, fazer qualquer coisa para se atingir a meta,
até as piores atitudes, aquelas que infringem a liberdade e o bem-estar de
outro indivíduo, que passa a sofrer os prejuízos da ação. Mais do que isso: o
afetado enfrenta dificuldades a contragosto, de modo a vivenciar para si uma
realidade gerada por outra pessoa.
No filme, a mentira [meio] é o principal recurso para
conquistar um filho [fim], provando que o casal não está preocupado com as
estratégias de que fará uso para conseguir o que quer. A única relevância é
conseguir o que quer. Ponto. Por isso é que se atribui aos praticantes desse pensamento
filosófico o termo “pragmático”, uma vez que irá atuar, tal como um robô, em
função do anseio.
O pragmatismo, então, é egoísta por natureza, porque exclui
qualquer preocupação com o próximo, só resguardando os interesses de quem age.
Fazendo uma analogia, é como se um político, para atingir o seu objetivo máximo
– manter-se no poder sem ser incomodado –, lançasse mão de medidas questionáveis:
censura à imprensa, intimidação de funcionários públicos, chantagem moral,
violência psicológica e uso da condição de dirigente máximo como fator que o
diferencie dos demais.
Nicolau Maquiavel, italiano, viveu entre 1469 e 1527. Fundou o pensamento político moderno e a sua principal obra é O Príncipe. [Foto: www.clickeaprenda.uol.com.br] |
Enfim, nota-se que no pragmatismo não há méritos na ação.
Existe, sim, o interesse em cumprir uma meta estipulada, que, como se
fundamenta num interesse individual, invariavelmente passará como um trator pelos
anseios coletivos. E quando falamos em política, ainda mais num contexto de
democracia que vigora na cidade, isto é, na polis (termo que dá origem à palavra
“política”), a vertente pragmática é dispensável, porque não contempla as
demandas de todos, nem da maioria, mas sim de poucos, ou até de um, apenas.
Como
se vê, os contos de fadas nos apresentam histórias fantasiosas para escancarar
verdades. Impossível não mencionar Chaplin: “Se você tivesse acreditado na
minha brincadeira de dizer verdades, teria ouvido verdades que teimo em dizer
brincando”. É exatamente esse o legado de Caminhos
da Floresta. Ao aceitar atropelar a integridade moral de outras pessoas
para ter um filho, o casal conquista o que desejava, mas sem o mérito, aquele
parâmetro que dá o gosto doce dos grandes êxitos. De quebra, como a punição
tarda, mas não falha, a esposa morre, justamente porque ‘aliar-se ao diabo’ costuma
dar nisso. É como um castelo de areia: belo, pomposo, porém cedo ou tarde tende
a ruir.
Sim,
os contos de fadas são histórias sobre o que vivemos todos os dias. Eles falam,
com beleza, das aberrações que praticamos e de que somos vítimas.
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