O
que é mais decadente: o jogo sujo de Eduardo Cunha [PMDB/RJ], botar um moleque
de 16 anos na cadeia ou a maioria esmagadora da sociedade compactuar com tudo
isso?
Quando
me posiciono contra a redução da maioridade penal não significa afirmar que pessoas
de 16 e 17 anos não cometam crimes, inclusive hediondos. Quem é favorável usa o
argumento de que alguém nessa idade “está matando outra pessoa agora”. É
provável que sim.
Só
que o meu questionamento é claro: enjaular o adolescente vai gerar algum
benefício – em especial a longo prazo – pra ele, pra você ou pra mim? Não vai.
Aliás, se tem uma coisa que as nossas penitenciárias estão aptas a fazer é
piorar o que já está ruim. No total, a população carcerária brasileira supera a
marca dos 600 mil detentos. Há um déficit de mais de 300 mil vagas. Resultado? Superlotação
de celas. Como pode haver eficiência num sistema assim? É óbvio que não há.
Aliás, no germe das penitenciárias do país não há qualquer preocupação em
ressocializar ninguém.
[Foto: www.diariodocentrodomundo.com.br]
Mas
boa parte da sociedade – e a oposição no Congresso liderada por Eduardo Cunha –
não está muito preocupada com o perfil de quem sai da cadeia. E esse é o grande
erro, pois como no Brasil não há pena de morte [por enquanto] e nem prisão
perpétua, quem vai preso, cedo ou tarde, sairá. No mundo ideal, o apenado
deveria sair melhor do que entrou. Na prática, você e eu sabemos que isso não
acontece.
Mas
para os que são favoráveis à redução da maioridade pouco importa como alguém
sai da prisão. Na realidade, os presídios são vistos como calabouços: ‘joga os
caras lá, e foda-se’. É esse tipo de mentalidade que pauta o debate, tanto nos
espaços pomposos do parlamento, como à boca miúda aqui fora. E a gente continua
a confundir justiça com justiçamento, a ponto de ‘cidadãos’ espancarem e
amarrarem um assaltante a um poste. O nosso pé na história escravocrata ainda
está sujo. A nossa mão, que sempre foi afeita a segurar o chicote e acariciar a
tirania, também.
E
nessa violência de que somos vítimas e protagonistas, a derrota parece ser um
caminho sem volta. A gente não é capaz de lamber as próprias feridas, de
entranhar nas incongruências das nossas condutas, e fazer brotar um mínimo de
esperança. A flor se nega a crescer no asfalto. Nós nos apegamos, ansiosos,
àquilo que está posto a um palmo do nariz, somos incapazes de analisar,
pacientes, a conjuntura à distância e, dessa forma, cavamos o abismo sob os
pés.
[Foto: www.umparadoxo.com]
Temos
em curso a votação de uma Proposta de Emenda Constitucional [PEC] que regula a
redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. De acordo com o Artigo 60 da
Constituição – que o nobre presidente da Câmara já fez questão de relativizar
duas vezes em 2015 –, para uma PEC se tornar válida são necessárias quatro
votações: duas na Câmara e duas no Senado. Em cada uma delas, é preciso haver a
aprovação de pelo menos 3/5 dos votantes, algo que aconteceu em 2 de julho, mas
que, curiosamente, um dia antes não houve. Se a proposta passar pelo segundo
turno da Câmara e pelas duas votações no Senado, segue para sanção ou veto da
presidente Dilma.
Caso
aprovada em todos os trâmites, daqui a 20 anos, a considerar o nosso mergulho
em uma realidade mais conservadora do que a atual, estará em discussão a
redução da maioridade penal para 14 ou 12 anos, e assim até a maioridade fetal.
Porque nós nos apegamos a números, e eles, mal encadeados, só repassam o
problema para outros âmbitos, dando a sensação de algo resolvido. Quando assim,
ele sempre volta pior. Não tem mais a ver com partido ou ser favorável ou não a Dilma. Também não se trata de concordar ou não com o argumento tacanho "se está com pena de menor bandido, leva pra casa". Se querem legalizar o financiamento privado de campanha, se querem reduzir a maioridade penal, se querem instituir a pena de morte, enfim, se é objetivo desse parlamento embrutecer o espírito da democracia em nome de valores tiranos, o nosso papel é botar a mão no peito do fascismo e dizer: "aqui, não".
Achei
a propaganda sutil, sensível e com narrativa muito bacana, surpreendendo a
nossa mente pragmática que sempre espera o encontro de um homem com uma mulher,
e, por isso, se assusta quando duas mulheres ou dois homens se tocam,
compartilhando um sentimento que é lícito e conveniente a todos: o amor.
Os
Malafaias, Felicianos e Bolsonaros da vida berram impropérios porque esquecem [ou
seria pura ignorância?] que em 15 de novembro de 1889 – há mais de um século! –
Estado e Igreja assumiram caminhos independentes. A laicidade da polis prega
que as leis da igreja – seja ela qual for – valem para os rituais religiosos,
mas não governam mais a vida na esfera pública.
Malafaia blasfema contra a democracia. Ele é autor daquilo que chamamos de sofisma: parte de uma premissa falsa para construir um raciocínio lógico, que tem como meta postular-se como verdade.
Se
a igreja é contra a união homoafetiva, basta não realizar cerimônias dessa
natureza. Embora eu discorde, a leitura que as instituições cristãs fazem da
Bíblia [transformando a homossexualidade em pecado] é uma leitura possível, e
seria incoerente a igreja ir de encontro ao seu documento maior. Mas isso vale
para o intramuros cristão.
À
política, então, cabe o dever de conceder direitos aos gays, lésbicas, bi, travestis e
transexuais, ficando aos cidadãos – não aos fiéis – a deliberação sobre as leis
que normatizem a convivência em sociedade. Mesmo porque se fosse haver uma
política com base na religião, de qual religião estaríamos falando? Da cristã?
Espírita? Muçulmana? Judia? Umbandista? Do candomblé? Como são muitas – e isso
é saudável para a constituição cultural de qualquer povo –, nenhuma governa, e
o Estado aceita todas, inclusive o ateísmo. Simples.
Propaganda mostra o amor nas suas mais diversas e possíveis combinações
A trans
crucificada
A
minha visão de mundo está calcada num tripé: felicidade, amor e liberdade. O
movimento GLBT é legítimo e sempre terá o meu apoio. No estado democrático de
direito, é fundamental que as minorias – este termo ultrapassa a ideia de
quantidade – tenham os seus direitos resguardados. Do contrário, não há nem
cidadania, nem democracia.
Não
fiquei chocado com a crucificação encenada – isso mesmo, encenada – por uma
atriz transexual. Da mesma maneira que muitos atores, inclusive da Globo, se
propõem a isso em época de semana santa, que mal há no que fez a moça? Não
houve ali qualquer tentativa de ridicularizar a fé cristã. Tampouco existiu
banalização, algo que a igreja, evangélica e católica, sempre gostou de fazer
com os “pertences de Jesus”, comercializando-os e lucrando horrores.
Viviany Beloboni foi mais uma atriz a representar, pelas vias artísticas,
uma passagem marcante da história humana [Foto: www.noticias.uol.com.br]
De
todo modo, é prudente ter cuidado com os símbolos, independente da religião. Particularmente,
não me apego a símbolos. Pra mim, não passam de pedaços de madeira, metal e
gesso. A própria igreja é um símbolo, ao qual nunca me afeiçoei. Embora sejam
isso – apenas símbolos –, possuem representatividade para muita gente.
É
possível que a ideia de reproduzir a simbologia religiosa tenha como alvo
pastores midiáticos que valorizam a homofobia. Mas, ao fazer isso, o movimento atinge
toda a cristandade, inclusive pessoas que militam pelos direitos de homo, bi, travestis e
transexuais. É importante que a militância GLBT tenha estratégia e não dê aos
abutres os argumentos que eles tanto querem. Definitivamente, não é quebrando
imagens ou colocando um crucifixo no ânus – como já se viu na Marcha das
Vadias, em 2013 – que se resolve o problema do preconceito. Os movimentos que
buscam espaço na polis sem o uso da violência são todos legítimos. É só não
meter os pés pelas mãos.
A democracia no argumento falacioso
Por
outro lado, quem critica o movimento gosta de usar a ideia de democracia para
destilar preconceito, como se isso fosse um direito. Não. O estado democrático
de direito, cuja representação máxima é a Constituição Federal, não prevê em
qualquer artigo o exercício da discriminação. Então, atentar contra alguém de
forma preconceituosa passa a ser antidemocrático e, pasme, até crime.
Nesse
sentido, é justo dizer que qualquer cidadão tem o direito de questionar e
discordar da cena protagonizada pela transexual. E por quê? Porque ela poderia
ter agido de diversas outras maneiras, mas, livre e conscientemente, deliberou
fazer aquilo. Ou seja, a partir das vias racionais assumiu uma conduta. Isso passa
a ser uma questão moral.
Trecho da Constituição Federal
[Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm]
Em
contrapartida, questionar e discordar de alguém por ser gay, lésbica, bi, travesti ou transexual
não é legítimo. As questões de gênero, ao contrário do que prega o ‘pastor’
Malafaia, não estão no âmbito do comportamento. Falamos aqui de uma condição. A
natureza [instinto] do indivíduo se impõe diante de qualquer iniciativa
racional, e ser gay, por exemplo, já não é uma escolha. Portanto, não temos, agora,
uma questão moral. Qualquer questionamento torna-se descabido.
Mesmo
assim, as polêmicas da Parada Gay em São Paulo – que foram isoladas, diga-se –servirão
para legitimar a homofobia. E isso implica, pelo menos, três erros: primeiro,
nada justifica um preconceito; segundo, quem erra não erra porque é gay, erra
porque cometeu um ato falho, assim como você, hétero, está cansado de fazer;
terceiro, muitos começarão uma cruzada contra os gays por causa dos eventos do
último domingo, mas já tinham restrições aos homossexuais antes disso.
De acordo com estimativas da Polícia Militar, a manifestação reuniu 20 mil pessoas.
Segundo os organizadores da Parada, eram aproximadamente 2 milhões de pessoas. [Foto: www.folha.uol.com.br]
A
tentativa de inverter a ordem das coisas virá outra vez. Heterossexuais e
porta-vozes do cristianismo se colocarão como vítimas. Aliás, as frases quase
sempre começam da mesma maneira: “Estão tentando nos impor...” ou “Não que eu
seja homofóbico, mas...” ou “Eu respeito a escolha dele, mas não concordo”. Besteira!
Respeita nada. Além disso, não cabe a alguém discordar de um gay, mesmo porque,
como já dito, só é possível a discordância em relação a uma deliberação
racional.
Mas,
descontente, haverá quem bote a democracia no meio: “Eu tenho o direito de
manifestar a minha opinião”. Hitler manifestou opinião matando judeus. Um
estuprador manifesta opinião transando com alguém, à revelia da vítima. O
pedófilo manifesta opinião atentando sexualmente contra uma criança.
O
beijo de Teresa [Montenegro] e Estela [Timberg], no primeiro capítulo da novela
Babilônia, trama das 21h da TV Globo,
deu pano pra manga. Óbvio que deu. De um país calcado nas religiões cristãs não
dá pra esperar muita coisa. A tolerância, definitivamente, é um valor escasso
na sociedade conservadora. Cabe às mentes mais abertas enfrentar o preconceito
e reverter o quadro. Não é fácil, porque a questão vai muito além de alguns
segundos de teledramaturgia. A ficção apenas reproduz as dinâmicas humanas mais
agudas pelas vias artísticas. E a arte, por excelência, é afeiçoada às
transgressões. O problema é mais embaixo. Tentemos, então, entender de onde vem
a discriminação.
O
Brasil, como é sabido, foi colonizado pelos portugueses. A tiracolo, Cabral e
Caminha trouxeram a Igreja Católica, já que política e religião caminhavam de
mãos dadas na Europa. Tudo em nome de riquezas, terras e poder, e às custas,
lógico, do trabalho escravo executado por nativos e africanos. Verdade seja
dita, a Igreja já se encontrava em franca decadência na transição do século XV
para o XVI, pois a bonança dos tempos de Idade Média caíra sensivelmente. Mas o
Papa ainda ditava normas. O Estado, claro, acatava.
Prova
dessa relação – que o nosso passado provou ser promíscua – é que boa parte das
nossas cidades foi fundada sobre duas fortalezas: a sede do governo e o templo
religioso. Nas cidades menores, isso ainda é muito visível. Mesmo nas maiores,
as praças, com igrejas – católicas, sempre – cravadas em seus pontos centrais,
não deixam dúvidas. Até em São Paulo isso ocorre: o marco zero da maior
metrópole do país é a Praça da Sé, sede de uma catedral capaz de abrigar oito
mil pessoas.
A Catedral da Sé não é a maior igreja do país.
O Templo de Salomão, da Igreja Universal do Reino de Deus, comporta 100 mil fiéis sentados. [Foto: www.vidaeenergia.com.br]
Ao
passo que o catolicismo perdia campo, começam a surgir as religiões
protestantes, fruto da Reforma proposta por Martinho Lutero, em 1517, e consequência
imediata do rompimento de Henrique VIII com o Vaticano, ação que fundou o
Anglicanismo, em 1533. A partir daí, o protestantismo se subdividiu. No
contexto atual brasileiro, os representantes mais conhecidos são os
evangélicos.
Mesmo
apresentando diferenças – os católicos adoram santos, os evangélicos, não –, as
duas Igrejas se entendem na essência: ambas têm o mesmo Deus e o mesmo profeta.
Nesse sentido, por serem mais modernas e identificadas especialmente com os
jovens, as religiões evangélicas, muito fragmentadas, cresceram, fazendo com
que o contingente cristão se mantivesse grande.
Assim,
a ideia de Sodoma e Gomorra continua a fissurar os fundamentalistas; e a
concepção do forjamento de Adão e Eva também serve de base para açoitar os homo
e transexuais. Perceba que o cristianismo, de religião perseguida pela Roma
pagã, passou a perseguir. Da mesma forma que as religiões de matriz africana
foram caçadas aqui no Brasil nos tempos da soberania católica, o dedo agora
aponta para gays, lésbicas e transexuais. Viver num país de mentalidade tacanha
nunca foi fácil.
Aqui,
valem algumas observações: a Bíblia foi escrita num momento em que os
paradigmas morais recriminavam as relações homoafetivas. Natural que no Livro
haja menções reprovando o ato, posto que diante das ilicitudes humanas, ser gay
era uma delas. Porém, como a história demonstra, os parâmetros morais mudam,
seja em eras ou espaço. O mundo, por incrível que pareça, avançou.
Trecho bíblico do livro de Romanos [1:26-27]
Indo
mais além, a Bíblia trabalha com metáforas, a maioria delas explorando
referências da época, e ela se propôs a isso justamente para cair no
entendimento coletivo da época – o mesmo procedimento foi usado pelas
mitologias. O Salmo 23, dos mais conhecidos da doutrina, em seu primeiro
versículo prega: “O Senhor é o meu pastor, nada me faltará”. Temos aí uma frase
que se apodera de um símbolo do passado: a sociedade era campestre, de maneira
que a ideia do pastoreio passa a quase não fazer sentido numa civilização
atual, majoritariamente urbana.
Por
isso, parafraseando uma colocação do professor da Unicamp, Leandro Karnal, se a
Bíblia fosse escrita hoje, o Salmo seria: “O Senhor é a minha internet 4G, e
sempre pegará”. A ideia continua a mesma, mas os símbolos mudaram. E cá pra
nós: a Bíblia, como não poderia ser diferente, é fundamentalmente simbólica. Lê-la
ao pé da letra pode ser imprudente.
Outro
ponto em que os religiosos se apoiam para condenar os homossexuais é no mito de
Adão e Eva e na ideia de multiplicação da espécie que se tem em torno disso. Já
escrevi em outra oportunidade
que os agrupamentos homossexuais não prejudicam a perpetuação da espécie. O que
garante a nossa existência contínua é uma medicina mais avançada, é tecnologia
inovadora, é dar às pessoas saneamento básico digno, educação, segurança para
que homens, mulheres e crianças não morram nos becos urbanos. A carência de
tudo isso pode emperrar a nossa perpetuação, não os gays. Aliás, ao que consta,
a população mundial só tem aumentado. Tanto é assim, que os casais
heterossexuais não dão conta de criar os filhos que botam no mundo. Pois pasme:
há casais homossexuais querendo adotar os descendentes abandonados pelos héteros.
[Foto: www.direitolegal.org]
Além
do mais, boa parte dos revoltosos incorre num erro crucial: apontar a Bíblia
como a doutrina verdadeira, sendo que outras expressões religiosas também podem
corresponder aos nossos exercícios de fé. Isso à parte, seria também muito
cômodo exigir do livro sagrado as respostas para todos os dilemas. “Como
resolvemos isso?”. “Ah, olha na Bíblia!”. Não. A vida é um pouco mais difícil,
e reduzir as soluções a um livro é limitar demais a nossa existência. E,
imagino eu, quem concebeu as Escrituras não tinha tamanha pretensão. Se a
Bíblia é capaz de trazer luz a uma pendência, ótimo. Mas impossível conter ali
as soluções para todas elas. O que significa dizer que não é equivocado lançar
mão do âmbito sagrado para resolver dificuldades. Mas é preciso ter o
entendimento de que alguns abacaxis terão de ser descascados por nós, com
reflexão, debate, atitude, com luta. A vida em sociedade tem disso.
Saindo
do campo da fé, segundo a teoria da responsabilidade moral do ato, um indivíduo
é culpado pelo que cometeu, se agiu de maneira livre e consciente. Por isso, só
o homem responde a processos judiciais, já que os outros animais agem
instintivamente, inconscientes e reféns do impulso que são. Porém, ainda que o
ser humano seja municiado de razão, o que lhe permite liberdade e consciência
na ação, nem sempre somos regidos pelo princípio da contingência [as coisas são
de uma maneira, mas poderiam ser de inúmeras outras]. O princípio da
necessidade [as coisas são da única maneira que poderiam ser] também afeta os
humanos. Quando isso ocorre, isto é, quando alguém faz algo sem ter a
possibilidade de fazer diferente, a responsabilidade não é atribuída a ele.
É
o que acontece com os gays. Eles não escolhem ser gays. Nesse caso, a natureza
é mais forte que a vontade. Por isso, não se fala em opção sexual, mas sim orientação.
É alheio à vontade de um gay ser gay. Ele simplesmente é. De igual modo,
acontece com o heterossexual: eu não escolhi gostar de mulheres. Papai não me
ensinou a desejá-las – e nem seria possível. A minha natureza me levou a isso.
Até por esse aspecto, é escroto falar em cura
gay. Não é algo que se ensina e se aprende. Essas questões vão além da
nossa capacidade racional. São do âmbito sentimental, carnal e da própria
identidade.
Segundo Nietzsche, em Além do bem e do mal, "não sou eu que decido. A minha consciência dispara como um cavalo selvagem. Logo, algo pensa em mim". [Foto: www.espacoetica.com.br]
Nesse
sentido, mais absurdo do que culpar um gay por ser gay, é querer que ele deixe
de sê-lo. É como exigir que um negro tenha menos melanina. É como cobrar de um
japonês que não tenha o olho ‘puxado’. É ditar que o sorriso de uma criança não
seja inocente. Impossível. O que os fundamentalistas precisam entender é que a
orientação sexual transcende o querer: é uma força maior agindo sobre o
indivíduo, que o instrui em busca do amor e da felicidade. Qualquer coisa que
vá de encontro a isso, é ceifar a possibilidade de amar e ser feliz,
prerrogativa de qualquer indivíduo, bondade que um cristão, por essência,
deveria alimentar.
Confuso
de entender? Bastante. Agora, imagine todos esses conflitos na cabeça de um
homossexual ou transexual. Pelo menos de cara, há sofrimento. E, por isso, como
se não bastasse toda a angústia existencial por que passa, receber dos
heterossexuais uma dose cavalar de preconceito e intolerância é uma canalhice
da qual a sociedade pode abri mão sem hesitar. Não há culpa. E se não há culpa,
o julgamento dos homens e dos deuses é sem fundamento. Só falta a nós o
entendimento de que o organismo humano é complexo e os mistérios entre o céu e
a terra, intermináveis.
Como
a resistência por parte da maioria afeta a liberdade de ir e vir de um
determinado grupo, a luta dos homo e transexuais tem bases políticas. O que
significa dizer que esses grupos minoritários buscam resguardar o seu espaço na
polis, nas dimensões públicas. Sendo assim, numa discussão política, livros
sagrados e religiões não contribuem, não oferecem parâmetros racionais e
pertinentes para a boa convivência numa sociedade permeada por identidades
distintas e, por vezes, conflitantes. Outro fator importante: o Estado,
gerenciado pela política, é laico, e, pelo menos no caso do Brasil, desamarrado
da religião desde 1889, início da República por essas bandas.
No final deste texto ou ao término de
uma conversa, alguém continuará bradando a frase que dá um tapa com luva de
pelica em gays, lésbicas e transexuais: “eu respeito, mas não concordo”. O fato
é que não cabe concordar ou discordar. Independente disso, com a anuência ou
não dos reacionários, vai continuar tendo beijo gay, sim. Tanto na novela, como
na vida.
“O amor é cego”. Esse é o mote que me
leva a escrever sobre tema tão espinhoso e, igualmente, saboroso. Porque o amor
é bem isso: a afeição de valores opostos, contradições que se assimilam, um
caldeirão de parâmetros que, em tese, não se misturam. Mas, como já dito, o
assunto em voga é o amor, e tudo lhe é lícito. Enfim, amar é uma ação que
representa todas as variáveis da nossa existência em permanente conflito,
especialistas em botar no divã a nossa identidade, tornando expostas as crises
e fragilidades que fazem do ser humano um habitante forte deste mundo, mas também
titubeante, pois amor e sofrimento são indissociáveis. De igual modo, o
sentimento amoroso é nada, porque tudo teima em ser muito incerto e passível de
reviravoltas.
Sim, o amor pode acabar. Ainda que o
término seja fator improvável no auge da relação, tudo pode ruir. Aliás,
escrevi, em 2012, que os relacionamentos
tendem ao fracasso, tamanhos são os desafios pelos quais ambos passam a
cada dia, seja no contato de um com o outro, seja na interação de cada um com o
mundo. Os meandros da convivência humana são inúmeros, e a todo momento a forma
como encaramos a companhia muda, pelo simples fato de que o mundo nos molda
segundo a segundo. Porém, importante frisar: o ponto final é uma probabilidade,
não uma certeza. Mesmo porque as certezas em relação ao amor, assim como a
respeito das questões metafísicas, são traiçoeiras.
As saliências por que passa o amor
dependem muito do comportamento de cada um. À medida que o sentimento traz
sossego às partes, a generosidade ganha campo, e ambos conseguem ter espaço
para vivenciar suas vidas. A despeito do contato estreito, é importante que os
indivíduos continuem a ter suas rotinas, algo que desprenda o casal como
combate à monotonia. Desde que a liberdade de cada um não aborreça o que é pertinente
aos dois [ou às duas], vida que segue. Em contrapartida, o egoísmo se mostra
prejudicial à relação e ao próprio amor, uma vez que negar independência ao
outro, além de não ser pertinente ao amor, é flertar com o fim. Ser egoísta não
é amar, é ser possessivo. E querer a posse da companhia não denota apenas
arrogância, como dá as mãos à paixão, valor oposto ao amor.
[Fonte: www.vivirbienesunplacer.com]
Então, se não há garantias de que o
relacionamento dará certo, o que fazemos? A gente caga e anda pras perspectivas
nebulosas, e cai de cabeça naquilo que nos chama. Lembre-se: há boas chances de
não dar certo, mas vai que dá! Ainda que não dê, ponto pra ambos, que, até o segundo
derradeiro, viveram a intensidade que a vida nos exige. Na hipótese de dar
errado – e se isso ocorrer, você estará na fossa, certamente –, o maior desafio
não é apagar da memória as boas conversas, a troca de olhares, as risadas, os
acolhimentos. Não. A tarefa, que por vezes ganha feições de monstro, posto que
nos faz pequenos, é o inverso: tirar da cabeça tudo aquilo que se vislumbrou
para o futuro. O foda da história não é o beijo que já foi dado, mas sim os que
não mais serão consumados. É trabalho árduo reprogramar os sentimentos:
enquanto a razão quer se recuperar, o coração é esperançoso, e briga contra as
imposições da inteligência.
Com exceção do fim – ou da iminência
dele –, o amor está escorado nas condutas racionais [claro que uma pitada ou
dose de paixão, de transgressão, faz um bem danado para o sentimento se
renovar, ganhar força e resistir aos altos e baixos pertinentes à vida. Mas
isso é assunto pra logo mais]. É justamente a característica racional do amor que
me traz a crença de que amar não tem nada a ver com cegueira. Ao contrário, o
amor vê. E por quê? Porque ele é a construção, passo a passo, de uma história,
cujo elemento fundador não é a tensão, a pressa, o ímpeto. Mas a paciência, o
entendimento de que situações adversas virão e a capacidade de dialogar. Assim,
o amor não só não é cego, como tem visão microscópica, capaz de despertar o bom
pensamento em proveito de uma relação gostosa, pacífica e generosa.
Por essas e outras é que, assim como “o
amor é cego”, abomino também a expressão “amor à primeira vista”. Ninguém ama
ninguém ao visualizar a pessoa uma única vez. O que surge daí é a atração, a
surpresa, talvez tesão. Ou seja, tudo vinculado às nossas aptidões sensíveis,
aquelas que fazem o nosso corpo sentir as sensações da primeira impressão. Mas
tudo isso pode ser – e normalmente é – demasiado enganoso. Ou pode não ser, e a
relação se constituir adiante e provar-se forte. Mas isso irá acontecer porque,
conscientemente, ambos chegaram a essa conclusão, observando, tentando, mudando,
gostando. A tão propalada “primeira vista” nos leva a quebrar a cara, e, pelo
menos comigo, só deu certo uma vez.
[Fonte: www.blogsdagazetaweb.com.br]
Os equívocos da primeira troca de
olhares se encaixam naquilo que entendemos sobre o amor idealizado ou platônico
[justiça seja feita, Platão se refere às idealizações, vinculando-as a todos os
nossos afetos. A ideia de relacionar o amor platônico especificamente às
pendengas dos relacionamentos é uma adaptação nossa]. De todo modo, quando a
adolescente se apaixona pelo ator, por exemplo, ela não se afeiçoa ao homem,
mas à ideia que ela constrói do homem. Isso ocorre devido ao fato da nossa
capacidade de imaginar ser muito superior à materialidade das coisas e das
gentes. Tudo em nós é limitado, menos o nosso potencial de fantasiar a vida.
Por isso, é comum a gente sentir
atração – não amor – por alguém, com base no que vemos. No entanto, a partir do
momento que se estabelece o diálogo, a ilha da fantasia pode explodir, e daí vêm
a frustração e o desengano. Por isso é que Platão ficou marcado por ser um
filósofo dualista, pois dividiu a nossa existência entre corpo e alma. O corpo
pode ser apreendido pelos nossos sentidos e é perecível. A alma, por sua vez, representada
pelo pensamento, foge às nossas aptidões sensíveis e é infinita. Como, então,
tomamos ciência da alma, já que não a vemos, tocamos, cheiramos? Conversando,
trocando ideia, isto é, racionalizando a relação. Perceba que a inteligência não
é mera coadjuvante nessas coisas do amor.
Mas nessas coisas do amor também é
necessário tempero. Não há aqui contradições. Continuo defendendo que o
alicerce do amor está na razão, já que a sua concepção se dá no pensamento e no
conhecimento por quem se tem afeto. Mas a razão, amiga íntima da ciência, é
fria, cheia de pressupostos e sem aventura. E o amor precisa de uns sacolejos
de vez em quando pra botar a gente pra cima: uma viagem não premeditada, um
presente fora de data, um bombom de supetão, qualquer bobagem dita pra mera
troca de sorrisos, um beijo desinteressado.
[Fonte: www.petcomufam.com.br]
Ah, o beijo. Uma das portas de entrada do
amor, o tapete vermelho para o sexo, porque um beijo sem graça é capaz de melar
qualquer pretensão mais carnal ou lúcida. Uma transa sem química, também.
Falamos aqui do beijo e do sexo, duas práticas do homem que permitem à espécie
as melhores delícias da vida. O beijo, delicado ou com vontade, umidifica a
alma, nos provoca sensação de calmaria e desejo e realiza a troca de prazeres
adquiridos até aquele instante de vida.
Já o sexo é daquelas coisas que a
evolução não nos tirou. Aliás, se teve uma coisa entre a transição do bicho pro
homem que não se perdeu, pode cravar: foi o sexo. Por mais delicado que seja o
ato – e, certamente por isso, sem graça ao extremo – o ato sexual é provido de
brutalidade, da intensidade que está habilitada a apimentar o amor, por
essência racional. O nível de intimidade da cópula não se compara a nada: os
corpos nus, mãos a desvendar os mistérios de cada curva, lábios que passeiam
por aqui e ali, calor que brota da pele de dois seres que, pelo menos ali,
naquela fração de tempo, se bastam, se completam, se querem. Sexo e amor, amor
e sexo. De todas as parcerias, a mais bem sucedida. Como é bom amar e transar!
Talvez você me pergunte: “Thiago, tem
certeza de que o amor é tudo isso mesmo?”. Não. É nisso que creio, hoje.
Amanhã, pode ser que mude. O fato é que o amor está por aí, à solta, pegando na
nossa mão, fazendo um carinho no rosto, tocando os lábios meus e seus. Com
razão, paixão ou ambos, que amemos até o último segundo de vida. Se os afetos
reais nos dão força, aprimoram a nossa existência e fazem a gente sofrer, os
relacionamentos idealizados são ricos em fantasia, o que, convenhamos, é deveras
bem-vinda num mundo, por vezes, tão pra baixo.
Por isso, nos dias de calor, de chuva
ou de frio, na noite estrelada ou nebulosa, nos momentos de maior tensão ou
contentamento, seja você quem eu realmente penso, seja você só uma idealização
minha, saiba, sem medo de me arrepender ou de sangrar, certo de que a
possibilidade de ser feliz existe, que eu amo você.
Na
última terça [17], depois de muito tempo, fui ao cinema. Aproveitei o feriado
de carnaval para fazer o que mais gosto: não pular carnaval. E para tirar o
atraso, já vi logo dois filmes, um na cola do outro: O Jogo da Imitação e Caminhos
da Floresta. Enquanto o primeiro conta a história de Alan Turning,
matemático idealizador de uma máquina que decodificava as estratégias dos
submarinos nazistas, o segundo reuniu alguns contos de fadas bem conhecidos do
público. O texto de hoje é sobre este.
Mais
do que retomar histórias importantes do imaginário infantil, como Rapunzel,
Cinderela e Chapeuzinho Vermelho, mais do que satirizar as histórias lúdicas
que nos habituamos a ouvir desde pequenos, Caminhos
da Floresta é um filme sobre Ética.
Tendo
no elenco artistas do porte de Maryl Streep e Johnny Depp, o longa discute
justamente a definição de Ética: a reflexão sobre a melhor maneira de agir,
cuja finalidade é a boa convivência.
[Foto: www.cinemacomrapadura.com.br]
O
ponto-chave do filme é apresentado logo no início: um padeiro [Corden] e sua
companheira [Blunt] vivem num vilarejo, onde interagem com personagens famosos
de contos de fadas, e tentam – sem sucesso – ter um filho. E a boa convivência,
elemento importante das relações éticas, será abalada pela escolha, outro fator
crucial no campo da Ética, feita pelo casal.
A
insistência – em vão – por parte de ambos de gerar um filho é esclarecida pela
Bruxa [Streep]: a infertilidade é resultado de um feitiço imposto pela vilã por
um erro cometido, outrora, pelo pai do padeiro. E, como sempre, havia uma
possibilidade do mau agouro ser desfeito. Para isso, bastava ao casal cumprir
as quatro exigências da Bruxa: levar a ela “um
capuz vermelho como sangue, cabelo amarelo como espiga de milho, um sapato
dourado como ouro e um cavalo branco como o leite”. A união de todos esses
objetos permitiria ao marido voltar a ser fértil e daria a Bruxa as suas
feições originais.
O problema ético que o enredo nos coloca está na aceitação
das condições impostas pela vilã. E, nesse sentido, o padeiro e sua esposa vão
aderir a uma das correntes éticas com as quais a Filosofia trabalha: o Pragmatismo.
Tendo como principal expoente o italiano Nicolau Maquiavel, a vertente em questão
prima pelo resultado final. Ou seja, a partir do momento em que se estipula um
objetivo, ele deve ser cumprido, seja de que maneira for. Temos a
materialização da mentalidade “os fins justificam os meios”.
Admite-se, então, fazer qualquer coisa para se atingir a meta,
até as piores atitudes, aquelas que infringem a liberdade e o bem-estar de
outro indivíduo, que passa a sofrer os prejuízos da ação. Mais do que isso: o
afetado enfrenta dificuldades a contragosto, de modo a vivenciar para si uma
realidade gerada por outra pessoa.
No filme, a mentira [meio] é o principal recurso para
conquistar um filho [fim], provando que o casal não está preocupado com as
estratégias de que fará uso para conseguir o que quer. A única relevância é
conseguir o que quer. Ponto. Por isso é que se atribui aos praticantes desse pensamento
filosófico o termo “pragmático”, uma vez que irá atuar, tal como um robô, em
função do anseio.
O pragmatismo, então, é egoísta por natureza, porque exclui
qualquer preocupação com o próximo, só resguardando os interesses de quem age.
Fazendo uma analogia, é como se um político, para atingir o seu objetivo máximo
– manter-se no poder sem ser incomodado –, lançasse mão de medidas questionáveis:
censura à imprensa, intimidação de funcionários públicos, chantagem moral,
violência psicológica e uso da condição de dirigente máximo como fator que o
diferencie dos demais.
Nicolau Maquiavel, italiano, viveu entre 1469 e 1527.
Fundou o pensamento político moderno e a sua principal obra é O Príncipe. [Foto: www.clickeaprenda.uol.com.br]
Enfim, nota-se que no pragmatismo não há méritos na ação.
Existe, sim, o interesse em cumprir uma meta estipulada, que, como se
fundamenta num interesse individual, invariavelmente passará como um trator pelos
anseios coletivos. E quando falamos em política, ainda mais num contexto de
democracia que vigora na cidade, isto é, na polis (termo que dá origem à palavra
“política”), a vertente pragmática é dispensável, porque não contempla as
demandas de todos, nem da maioria, mas sim de poucos, ou até de um, apenas.
Como
se vê, os contos de fadas nos apresentam histórias fantasiosas para escancarar
verdades. Impossível não mencionar Chaplin: “Se você tivesse acreditado na
minha brincadeira de dizer verdades, teria ouvido verdades que teimo em dizer
brincando”. É exatamente esse o legado de Caminhos
da Floresta. Ao aceitar atropelar a integridade moral de outras pessoas
para ter um filho, o casal conquista o que desejava, mas sem o mérito, aquele
parâmetro que dá o gosto doce dos grandes êxitos. De quebra, como a punição
tarda, mas não falha, a esposa morre, justamente porque ‘aliar-se ao diabo’ costuma
dar nisso. É como um castelo de areia: belo, pomposo, porém cedo ou tarde tende
a ruir.
Sim,
os contos de fadas são histórias sobre o que vivemos todos os dias. Eles falam,
com beleza, das aberrações que praticamos e de que somos vítimas.
Como uma mulher de 23 anos
e equipes de voluntários agem para evitar a metástase
[Foto: www.zoomnews.es]
“Eu
sempre tive uma infância normal. Aos dez anos, fui ao hospital aqui em Getulina
e o médico me encaminhou para Promissão. O começo foi a fase mais difícil. Logo
em seguida à cirurgia, meu rosto inchou muito. Depois eu fui me acostumando aos
remédios e exames. Como eu tinha pouca idade, a noção sobre a gravidade da
doença era pequena”.
A
lembrança de Suzana Maria Garcia, hoje com 23 anos, é de quando ela tinha
apenas dez. A doença à que se refere é um câncer na tireoide. A benignidade do
tumor foi constatada em fevereiro de 2002, quando o resultado da biopsia foi
emitido pelo laboratório e lido pelo médico responsável.
Só
que a saga da menina Suzana havia começado um ano antes: aos nove anos de
idade, ao passar a mão no pescoço, sentiu o dedo encontrar um caroço. Naquele
tempo, ela já tinha os cabelos lisos e pretos, a pele parda, os olhos de jabuticaba.
Hoje, é possível perceber a timidez no jeito de olhar, na fala curta, calma e
baixa e cicatrizes na região da garganta. A vaidade pagou preço alto. A
sobrevivência, definitivamente, vale qualquer sacrifício.
O
combate da pequena moça contra a doença começou com sessões de radioterapia e
aplicações de injeção de iodo, já em 2002, no Hospital Amaral Carvalho [HAC], em Jaú,
referência no centro-oeste paulista no tratamento do câncer. Justo ela, a
caçula da prole de oito irmãos, passando por um dos testes mais ingratos da
vida. Mas é como se o enfrentamento fosse uma vocação. E ela, claro, encarou.
Foram
duas cirurgias: 2002 e 2005, para extrair caroços na região do pescoço. Era uma
semana de recuperação no hospital, em que não se permite a ingestão de sólidos.
Após esse período, aos poucos a alimentação foi sendo retomada. “No início, só
pode consumir líquido. Depois de uma semana internada, voltei para casa. São
mais 60 dias em recuperação”, recorda Suzana.
A cidade em que ela
escolheu viver
Embora
ela tenha nascido em Marília-SP e morado em Sabino-SP e Nova Andradina-MS,
quando Suzana fala em “casa”, ela se refere a Getulina, município do interior
paulista situado a 458 km da capital do Estado e que é apelidada por seus
moradores e por quem a visita de “Cidade Sorriso”. Devido à população
carcerária de mais de 1.600 detentos, Getulina ultrapassa a marca de 10 mil
habitantes. Para ser mais exato, são 10.675 pessoas espalhadas por quase 679
km² de área, o que faz do território [área urbana + zona rural] o 101º maior de
São Paulo, num total de 645 municípios, tudo segundo dados do IBGE [Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística].
A
modesta Getulina, fundada como povoado em 1917 e emancipada 18 anos mais tarde,
fica próxima ao entroncamento de duas rodovias importantes para o Estado e o país:
a Marechal Rondon [SP-300], que liga, a leste, parte do interior à capital e,
no sentido oposto, permite o deslocamento para Mato Grosso do Sul, entrando por
Três Lagoas; além da Transbrasiliana [BR-153], estrada que nasce em Aceguá, na
fronteira do Rio Grande com o Uruguai, e morre em Marabá, importante cidade
paraense, e permite aos moradores daqui a chegada ao triângulo mineiro,
Goiânia, Brasília e ao interior dos Estados do Sul.
Para
se ter uma ideia mais exata da sua localização, em um raio de 120 km é possível
chegar a São José do Rio Preto, Bauru, Marília, Araçatuba e Lins, as maiores
cidades do seu entorno. É para esses lugares que os getulinenses vão quando
querem comprar algo mais sofisticado ou precisam de um médico especialista ou
quando querem uma diversão que ainda não tenha virado tédio. Por aqui não há
semáforo, boates, shopping, prédio com mais de dois andares. Mas há botecos,
gente feliz, receptiva e conversadeira, que não se constrange em especular a vida
alheia ou dar “bom dia” a um desconhecido.
A
cidade está cravada num buraco, razão pela qual se avistam as casas e,
especialmente, a igreja católica – a maior – de longe. Outro sintoma da baixa
altitude é o forte calor e a ausência de vento em algumas épocas do ano,
especialmente no verão. É comum o forasteiro sentir repulsa do suor que vai
brotando da pele e escorrendo pelo corpo. É justamente esse clima quente e o
agronegócio que fazem Getulina estar envolta por campos verdejantes: a
monocultura de cana-de-açúcar substituiu os pés de café de outrora, e agora é
ela quem dá as cartas por aqui.
Aristides Mercês, para homenagear a esposa que se chamava Getúlia, deu ao novo povoado o nome de Getulina [Foto: Thiago Cury Luiz]
A
“Cidade Sorriso”, que já foi quatro vezes mais povoada durante o período áureo
da economia cafeeira, guarda da época próspera só as ruas de paralelepípedo,
cujas lajotas são milimetricamente quadradas, a arquitetura externa de algumas
casas, com portões baixos, escada que dá acesso a uma pequena varanda, encimada
por arcos, e portas e janelas de madeira. A rua principal [como os moradores se
referem à Rua Dr. Carlos de Campos, em que se concentra boa parte dos
estabelecimentos comerciais daqui] é mais uma herança de uma época que prometia
muito, mas muito pouco se concretizou.
Apesar de pouco aquecido, o comércio getulinense costuma fazer doações ao Grupo [Foto: Thiago Cury Luiz]
Inevitável
também não falar da praça central, único lugar de encontro da moçada aos sábados
à noite. Nela foi construído um dos primeiros prédios da cidade, a Igreja
Matriz, católica, cartão postal do município. Como foi do feitio de muitas
cidades do Brasil, calcado na tradição cristã, ao se fundar um município,
construíam-se a sede do governo e o templo de orações. Getulina, claro, seguiu
a cartilha.
A Igreja Matriz, católica, erguida na Praça 9 de Julho, marco central da cidade [Foto: Thiago Cury Luiz]
Em Getulina, assim como
Suzana, os voluntários não arredam o pé da luta
É
bem no centro da cidade, nas cercanias da Igreja Matriz e da Praça 9 de Julho,
que está o Grupo Getulinense de Combate ao Câncer, o refúgio inicial de Suzana
ao descobrir a doença. Ela foi a primeira paciente encaminhada a Jaú e uma das
primeiras assistidas pelos voluntários.
Fundado
em 28 de janeiro de 2002, o Grupo presta atendimento a 69 pessoas de Getulina e
Guaimbê, fornecendo remédios, exames, cestas e, se necessário, alguns objetos
específicos, como sonda gástrica, próteses e bolsas de colostomia [em caso de cirurgia
intestinal]. “O nosso trabalho vai além da doença. A nossa preocupação é dar
assistência ao paciente enquanto o seu tratamento é feito”, conta Jucelen
Penachio de Carvalho, uma das 39 voluntárias do Grupo.
A partir da relação com a população local, os voluntários dão assistência a pacientes e familiares.
É o que se chama de comunidade participativa. [Foto: Thiago Cury Luiz]
Após
um início difícil, com a equipe mal tendo um espaço adequado para atender os
pacientes e planejar as atividades, hoje o Grupo está estabelecido em uma casa
antiga alugada, daquelas que os cômodos dão na sala, o piso externo é de ladrilho
pintado e o forro é amadeirado. É ali, na esquina da Praça com a Dom Pedro II,
que os integrantes recebem doações e vendem produtos novos e usados doados pela
comunidade ou produzidos pelos próprios voluntários e colaboradores. Além
disso, uma vez por ano, são organizados eventos para arrecadar fundos, como o Pedágio,
Bazar do Artesanato, Chá Beneficente, a Noite Italiana e a Barraca do Pastel.
Porém,
como se trata de uma doença cujos custos são elevados, é necessário planejar
outras formas de receitas. O Leilão de Gado, promovido todos os anos pela
Igreja Matriz, viabiliza o cumprimento das metas. Porque a doença, além de
judiar do corpo e do espírito, exige do bolso um preço com o qual muitos não
conseguem arcar. Fora isso, outras instituições religiosas também contribuem
doando vestuários. Supermercados, demais comerciantes e empresários da cidade oferecem
contribuições em dinheiro.
“Cada
vez que o paciente passa pelo procedimento quimioterápico, ele precisa fazer um
exame de sangue. Pelo SUS [Sistema Único de Saúde] costuma levar um mês para
sair o resultado. Em casos de doença, precisa demorar no máximo dois dias. Para
agilizar o processo, nós custeamos esse exame, já que o paciente não pode
esperar. Além disso, nós arcamos com exames de diagnóstico e biópsia”, explica Jucelen.
A despeito da medicação, exames, roupas
e comida, os donativos também abrangem outros equipamentos e objetos, como
colchões, andadores, muletas e bengalas. Para quem está limitado em virtude da
doença ou da cirurgia, são providenciadas e emprestadas cadeiras específicas.
Nesse aspecto, outra conquista do Grupo
ocorreu em 2013. Após a elaboração do Projeto
Sobrevida Maior e Melhor, os voluntários entraram com pedido junto à Vara
Judicial da Comarca de Getulina para receber os valores das penas aplicadas aos
condenados. O edital público também contemplou outras entidades do município
que se interessaram e se enquadraram nas exigências legais, como o Berçário
Creche “Cel. Joaquim Barbosa de Moraes” e o Núcleo de Apoio à Criança e ao
Adolescente de Getulina [Projeto de Educação Ambiental “Recicle-se”].
Com base na primeira versão do Projeto,
foi possível adquirir duas cadeiras de rodas, duas cadeiras de banho, dois
andadores e um suporte de alimentação e soro. Na segunda versão, os voluntários
compraram quatro caldeirões de 50 litros, um fogão industrial, um liquidificador,
dez jarras e 20 bandejas.
Mas para viabilizar o repasse judicial,
os trâmites são rigorosos: foi preciso juntar documentação exigida pela
Resolução nº 154⁄12 do Conselho Nacional de Justiça [CNJ] e pelo Provimento nº
01⁄13 da Corregedoria Geral de Justiça, além de obter parecer favorável do
Ministério Público. Após a compra dos materiais, o Poder Judiciário exige uma
prestação de contas, para certificar se o dinheiro solicitado e repassado foi
investido devidamente.
Mas
um grupo de combate ao câncer não se faz só de... combate ao câncer. O trabalho
de assistência desenvolvido junto ao paciente é um dos pilares da entidade. É
um trabalho de fundo que exige dedicação dos que se propuseram a ajudar e que,
por isso, tem papel importante no dia a dia do paciente. É como se a maratona
de tratamento necessitasse de um auxílio, que transcende a ingestão de
medicamentos.
Jucelen,
mulher a quem a média dos brasileiros precisa olhar para cima de tão alta e de fala
cadenciada que adquiriu nos tempos de educadora e gestora de escola, cita como
funciona essa atuação mais secundária, porém não sem relevância. “Nós doamos 21
cestas básicas [uma vez por mês] e 37 caixas contendo legumes, frutas e
verduras [a cada 15 dias]. Cada uma delas é destinada para a família que tem um
ente com câncer. No total, envolvendo cestas, frutas, verduras, exames e
medicamentos, são 69 pessoas beneficiadas pelo trabalho do Grupo Getulinense de
Combate ao Câncer”.
Se
é nos braços da família e no conforto de um lar que o paciente encontra o seu
maior refúgio, o Grupo também se incumbe de auxiliá-lo quando falta um teto a
quem mais precisa: alguém sem casa e doente. “A nossa equipe já ajudou a
construir casa para uma paciente. Ela era arrimo de família e, com a doença,
não tinha condições financeiras para reformar a sua casa que estava em péssimo
estado. Nós fizemos um mutirão para auxiliar a família nesse sentido”, lembra a
voluntária.
Os dados do câncer no
Brasil
O
câncer se trata de um conjunto de mais de 100 doenças, cujo elemento comum é o
crescimento desordenado de células que ocupam o espaço de tecidos e órgãos.
Essa multiplicação celular dá origem aos tumores malignos, que têm uma alta
probabilidade de se espalhar pelo corpo. Quando isso ocorre, atribui-se ao
paciente o estágio mais avançado do câncer, que é a metástase. Os casos
benignos dificilmente levam risco ao doente, pois não têm como característica
se alastrar pelo organismo.
As
causas do câncer podem ser internas, externas ou inter-relacionadas. As
externas têm a ver com o ambiente em que se vive e hábitos ou costumes
socioculturais. Já as internas são, majoritariamente, heranças genéticas, sendo
já pré-determinado o modo como o corpo se defende das ações externas. São raros
os tumores provocados, exclusivamente, por questões de hereditariedade.
Para
se ter uma ideia, mais de 80% dos casos de câncer têm origem no meio ambiente,
ou seja, os fatores de risco são provenientes de toda a realidade externa que
nos cerca: rua, casa, trabalho e os produtos que consumimos e com os quais
interagimos. Por exemplo, os pulmões expostos à fumaça do cigarro podem desenvolver
câncer, bem como a pele colocada ao sol sem os devidos cuidados.
Dentre
os fatores que podem trazer prejuízos à saúde estão o tabagismo, a radiação
solar, o alcoolismo, fatores ocupacionais [especialmente os que afetam os
trabalhadores que atuam em condições insalubres – forte exposição a produtos
químicos e nocivos], hábitos alimentares [de acordo com a Organização Mundial
da Saúde, é recomendado consumir cinco gramas de sal por dia – o equivalente a
uma tampa de caneta cheia – e evitar o cozimento em altas temperaturas, como é
o caso da fritura], hábitos sexuais [privilegiar relação higiênica e com preservativo]
e medicamentos [clornafazina, melfalan, fenacetina, entre outros].
De
forma geral, são definidos 23 tipos de câncer: anal, bexiga, boca, colorretal,
colo do útero, esôfago, estômago, fígado, infantil, laringe, leucemia, linfoma
de Hodgkin, linfoma não-Hodgkin, mama, ovário, pâncreas, pele melanoma, pele
não melanoma, pênis, próstata, pulmão, testículo, tumores de Ewing. O
tratamento de todas as modalidades de câncer, basicamente, varia entre quatro
alternativas: cirurgia, radioterapia, quimioterapia e transplante de medula
óssea. Em suma, as melhores formas de combater o câncer ainda são a prevenção e
a detecção precoce.
Em agosto de 2013, o Jornal Nacional reproduziu uma série de reportagens sobre o câncer.
Acima, a primeira das seis matérias veiculadas.
[Fonte: www.youtube.com]
Segundo
dados do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva [INCA], no
ano de 1979, quando os índices começaram a ser medidos, morreram 301.491
mulheres no Brasil, sendo que 25.376 foram vítimas de câncer [8,4% do total de
óbitos]. Em 2012, último ano tabulado, o país apresentou 509.885 mortes de
mulheres, das quais 86.040 perderam a vida por causa do câncer [16,8%]. Já do
lado dos homens, 409.085 deles morreram em 1979, sendo que 30.794 entraram para
as estatísticas de vítimas fatais do câncer [7,5%]. Há três anos, os dados
registraram 670.743 mortes masculinas no país, sendo o câncer responsável por
98.033 dos falecimentos [14,6%].
Entre
1979 e 2012, o tipo de câncer que mais matou mulheres no país foi o de mama,
com 257.617 mortes registradas. A anomalia nos brônquios e pulmões fez 140.651
vítimas. O câncer de estômago vitimou mais de 124 mil mulheres nesse intervalo
de 34 anos. Entre os homens, no período de 1979 a 2012, o câncer de brônquios e
pulmões foi o que mais interrompeu vidas: 311.039. A patologia no estômago
vitimou mais de 240 mil homens no mesmo intervalo de tempo. Já a próstata é
responsável por mais de 225 mil homens mortos nessas mais de três décadas.
Levando-se
em conta o último ano de medição [2012], nota-se equilíbrio entre número de
mortos por câncer nos brônquios e pulmões e próstata, os dois que mais
interrompem vidas masculinas: 14.214 e 13.354, respectivamente. O dado denota
que a preocupação com a próstata deve aumentar. Dentre os diversos fatores que
contribuem para o crescimento desse tipo de câncer, o preconceito em fazer o
exame preventivo, certamente, encabeça a lista. Nas mulheres, tendo como
referência o ano de 2012, o câncer que mais matou foi o de mama, com 13.591
vítimas. A doença nos brônquios e pulmões vitimou mais de nove mil mulheres em
2012.
No
fim de novembro de 2014, o INCA e o Ministério da Saúde divulgaram documento
mensurando as estimativas para o ano que terminou há pouco, já que os dados
concretos só sairão adiante. Para 2014, a tendência é que se registrem 576 mil
novos casos, número que deve se repetir em 2015. O que mais preocupa pela maior
incidência é o câncer de pele do tipo não melanoma [182 mil]. Em seguida, vêm
os tumores de próstata [69 mil], mama feminina [57 mil], cólon e reto [33 mil],
pulmão [27 mil], estômago [20 mil] e colo do útero [15 mil].
O
câncer de tireoide, o mesmo de Suzana, é mais comum em mulheres. Para 2014, a
probabilidade de incidência na mulher, em estimativa, é oito vezes mais do que
em homens. Enquanto para cada 100 mil homens, surge apenas um novo caso, com as
mulheres oito de cada 100 mil apresentam novas aparições desse tipo da doença.
De todo modo, a ocorrência é baixa, fazendo com que o câncer de tireoide seja
considerado raro, inclusive em níveis mundiais.
Para
dar atendimento a todos os pacientes, o Ministério da Saúde investiu R$ 2,1
bilhões, em 2013, superando em 26% o montante de 2010. Em números previstos
para 2014, essa quantia deve chegar a R$ 4,5 bilhões. Todo esse investimento
está diluído nos 277 hospitais habilitados a realizar diagnóstico e tratamento
do câncer no país.
*Todos os dados são encontrados no site oficial
do INCA: www.inca.gov.br
As Ligas de Voluntários
do Hospital Amaral Carvalho
Se
hoje Suzana conta a sua história e o Grupo Getulinense de Combate ao Câncer
atua com efetividade é porque uma estrutura bem maior e complexa foi projetada.
Como o câncer envolve paciência e persistência, pois o tratamento normalmente é
longo, é inevitável que a engrenagem para atender pacientes e familiares seja,
igualmente, enorme. Aqui entra José Eduardo Nadalet.
José
Eduardo trabalha há 36 anos no Hospital Amaral Carvalho de Jaú, uma das
referências brasileiras no tratamento contra o câncer. Nos últimos 19 anos,
dedica-se à Coordenação das Ligas de Combate ao Câncer, tudo vinculado ao
Hospital. O trabalho dele não é coisa pouca: levantar e manter 105 núcleos
espalhados pelos Estados de São Paulo [102: Jaú + 101 cidades], Mato Grosso do
Sul [2: Bataguassu e Brasilândia] e Minas Gerais [1: Muzambinho]. Considerando
todos os Grupos, são 4.500 voluntários que dão assistência a 25 mil pacientes.
Evidentemente, o atendimento do Amaral Carvalho ultrapassou essa marca no
último ano: 2.100 funcionários trataram de, aproximadamente, 90 mil pessoas. O
fluxo diário chegou a dois mil pacientes.
O
princípio dessa história toda, antes da constituição das Ligas, teve planejamento
e muita gente prestativa. “Em 1993, algumas mulheres, esposas de médicos aqui
de Jaú, resolveram criar a entidade Anna Marcelina, primeiro grupo de
voluntários, para auxiliar as pessoas que estavam em tratamento no Hospital
Amaral Carvalho, independente da cidade de origem. Vimos que foi muito
interessante o trabalho das voluntárias, e resolvemos, então, em 1996, expandir
essa atuação para as demais cidades que encaminham seus pacientes para Jaú. A
diretoria me chamou e pediu para que eu montasse e treinasse essas voluntárias,
formando a maior rede voluntária de combate ao câncer do Brasil”, recorda José
Eduardo, com voz de locutor de rádio e empolgação de quem faz o que gosta há
quase duas décadas.
A
partir daí, a atuação dos mais de 100 núcleos, treinados e orientados pela base
instalada no Amaral Carvalho, é padronizada e dividida em quatro frentes, que,
se cumpridas, são capazes de assistir os pacientes com eficiência: 1]Medicamento. Se o Posto de
Saúde oferece o remédio, a aquisição é gratuita. No entanto, acontecem casos em
que é necessário comprar a medicação. É nessa hora que os Grupos de Voluntários
atuam, comprando em uma farmácia o que o médico prescreveu; 2]Alimentação. De acordo com a carência e o número de
integrantes da família do paciente, os voluntários auxiliam com cestas básicas
e complementares. Nos casos de câncer de boca, laringe ou língua, o processo de
alimentação é específico, e o Grupo passa a prestar auxílio especial; 3] Social. Os voluntários também
trabalham no fornecimento de colchões especiais, para casos em que o paciente
precisa ficar muito tempo deitado; encaminhamento a consultas odontológicas;
recolocação do convalescente no mercado de trabalho; e fornecimento de roupas,
calçados, escovas de dente; 4] Visita
Domiciliar. A ida dos voluntários às casas dos pacientes tem duas
finalidades: a primeira é de ordem prática, se a casa precisa de uma reforma,
da construção de banheiro, ou seja, se a residência carece de qualquer reparo; a
segunda é de caráter mais subjetivo, oferecendo uma palavra de apoio ao
paciente e à família.
Matéria veiculada no Tem Notícias, da TV Tem, afiliada da Rede Globo, em novembro de 2014,
sobre o trabalho das Ligas de Voluntários do HAC
[Fonte: www.youtube.com]
Todo
esse esquema, disseminado por várias cidades e que é complexo por se tratar de
doença tão agressiva, é gerenciado pelo próprio José Eduardo: duas vezes ao ano,
ele e sua equipe passam por todos os Núcleos. Além disso, há os cursos e
palestras ministrados em Jaú ou nas cidades que possuem um Grupo constituído. Há
também os Encontros Regionais e o Dia do Voluntário, momento em que todos os
Núcleos se encontram em Jaú para confraternização. No mais, a Coordenação das
Ligas produz um informativo e há o contato diário por telefone e e-mail.
A
amplitude do trabalho e o sentido de utilidade fazem José Eduardo ter boas
perspectivas. “Nós sabemos que, hoje, muitos pacientes de Getulina estão vivos
graças à atuação dos voluntários, mas não dá para precisar esse número. É certo
que quando a equipe ajuda com medicamento, alimentação, apoio e carinho, a
condição do paciente mais carente se iguala à do rico. O que sabemos é que a
qualidade de vida e as chances de cura aumentam”.
O
panorama atual é positivo, mas nada que não possa ser melhorado e expandido. A
meta é colocar os Núcleos em regiões de São Paulo que não têm centros de excelência
no tratamento do câncer, cujos pacientes se descolam para se tratar em Jaú.
“Além das 105 cidades, eu cheguei a ir a outras 23, mas o projeto não
prosperou. São poucas as cidades que precisam ter uma Liga. A região norte do
Estado tem três centros importantes: Ribeirão Preto, São José do Rio Preto e
Barretos. Na região leste, têm Sorocaba, Campinas, Piracicaba, São Paulo e
Santos. Quem vem pra cá é o pessoal das regiões central, oeste, noroeste e sul.
Eu vou voltar às 23 cidades que não deram certo e tentar em mais 10 ou 15
municípios. O ideal seria algo em torno de 150 no total. Nós chegaríamos, com
isso, perto de 40 mil pacientes atendidos pelas Ligas, quase a metade do que o
Hospital Amaral Carvalho atende”, calcula José Eduardo.
O Hospital Amaral Carvalho recebe doações a partir de R$ 10.
Para tanto, os interessados devem fornecer dados cadastrais pelo site, e-mail ou telefone. [Foto: www.blogdabah.com]
O Amaral Carvalho em números
A instituição que, hoje, é chamada de
Amaral Carvalho, nasceu com o nome de Maternidade do Jahu. Domingos Pereira de
Carvalho e Anna Marcelina doaram, em 1915, o terreno e uma quantia em dinheiro
para a construção do empreendimento. No entanto, ele só foi inaugurado 21 anos
mais tarde. O nome que vigora hoje passou a figurar em 1954, quando a
Maternidade se tornou hospital geral.
Mais um pouco sobre as áreas de atuação do HAC
[Fonte: www.youtube.com]
Outro marco histórico foi o fato de ter
se tornado, em 1970, o primeiro centro hospitalar do interior de São Paulo
especializado no tratamento do câncer, algo que só se fazia com mais segurança
na capital.
Como o Amaral Carvalho concentra
inúmeras atividades, como maternidade, atendimento a pacientes com câncer,
hemonúcleo regional, clínicas e cirurgia, em 1980 é criada a Fundação Amaral
Carvalho, que concatena todos os campos de atuação.
Entre 2002 e 2010, o Hospital foi
eleito pelos usuários do SUS (Sistema Único de Saúde), em três oportunidades,
um dos dez melhores do país. Contribuiu muito para essa posição a realização,
em 2004, do primeiro transplante de medula óssea com células-tronco de cordão
umbilical no Brasil. Em 2013, a instituição chegou a dois mil transplantes de
medula óssea.
O trabalho executado faz com que o Hospital
atenda pacientes de 500 municípios do Estado de São Paulo, além de quase 600 do
restante do país. Em 2013, foram mais de 74 mil pacientes atendidos e 983.408
procedimentos feitos. Quanto às especialidades, o Amaral Carvalho as divide em
quatro: Cirúrgicas, Diagnósticos por imagem e laboratórios; Multidisciplinar;
Oncologia Clínica. Cada uma delas apresenta diversas especificidades.
Outra característica do Hospital é a
dedicação ao ensino e à pesquisa. Como a instituição trata de seis mil novos
casos de câncer todos os anos, é necessário contar com equipe numerosa e de
qualidade. Por isso, desde 1995 o Amaral Carvalho abre vagas para a Residência
Médica mediante concurso público. No campo da ciência, há o Centro de Pesquisas
Clínicas. Do ano 2000 até hoje foram concluídos 95 estudos.
A tecnologia em prol da humanização no tratamento de crianças com câncer
[Fonte: www.youtube.com]
*Todas as informações são encontradas no site oficial do
Hospital Amaral Carvalho: www.amaralcarvalho.org.br
Suzana, os voluntários
getulinenses e as Ligas formam uma ciranda
Entre
2007 e 2010, o INCA, órgão vinculado ao Ministério da Saúde, fez um
levantamento junto ao Hospital Amaral Carvalho, e foi constatado que nas
cidades onde há o apoio dos voluntários o índice de cura é 12,4% maior em
relação a um município que não conta com esse tipo de atividade. E mais: de
acordo com números calculados pelo Hospital, o índice de desistência do
tratamento nas cidades que possuem um Núcleo de Combate é quase zero. Nos
locais em que não há Grupos, mais de 10% dos pacientes abandonam os cuidados
médicos. Esses números interferem em chances maiores ou menores de cura.
Jucelen se apega às probabilidades para
continuar o trabalho como voluntária e incentivar a equipe no mesmo sentido. “A
família deposita muita confiança na nossa equipe. Muitos chegam desesperados e
encontram em nós um apoio. A gente vê que pode atender o paciente naquilo que
ele precisa. O nosso acompanhamento é constante. Sempre ligamos para perguntar
como o paciente está, se está fazendo o tratamento corretamente”.
Já Suzana continua resistindo. No meio
disso tudo, além da luta contra o câncer, ela passou por transplantes das duas
córneas por causa de uma doença degenerativa que a levaria à cegueira, retirou
pedras da vesícula e teve uma gestação interrompida no 9º mês. Ao que parece, a
menina que se deparou com um caroço no pescoço aos nove anos tem resistido bem
às intermitências da vida. Resta a ela acompanhamento médico e remédios para
controle, procedimento a ser feito durante toda a vida. Enquanto continua a
subjugar o câncer, é tempo de ver Kêmelly, de 3 anos, e Francisco, de 2,
crescerem, os dois frutos do seu matrimônio com Wilson que já dura dez anos.