Eu já li quatro obras de
Shakespeare: Romeu e Julieta, a mais
fraca delas; O Rei Lear; Otelo; e aquela que, junto com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de
Machado de Assis, é a maior que a literatura de ficção já produziu, Hamlet. Até tenho um quinto livro do
escritor inglês nascido no século XVI, mas só acessei o conteúdo por meio do
filme. Por duas vezes – a primeira no cinema e ontem (18) pela TV – assisti
a Macbeth: ambição e guerra (2015), dirigido
por Justin Kurzel, cujas atuações destacáveis ficam a cargo de Michael Fassbender e
Marion Cotillard.
O enredo traz aspectos
importantes da bibliografia shakespeariana, em sua faceta trágica: conspiração, culpa, traição e morte.
Macbeth (Fassbender) é general do exército escocês. Influenciado pela esposa,
Lady Macbeth (Cotillard), personagem forte, densa e igualmente assombrada pela morte precoce do filho, assassina o rei. Único a testemunhar o crime, Malcolm (Jack Reynor), o herdeiro do trono, é forçado a fugir. Macbeth e sua cúmplice, agora, são os únicos a ter ciência completa dos fatos. A condição de monarca cai no colo do conspirador do reino.
[Fonte: www.wicaonline.org]
A partir daí, a sensação de
culpa, nos moldes de Crime e Castigo,
de Dostoiévski, toma conta de Macbeth, que, justamente por isso, surta. A
fragilidade do agora rei fica escancarada na sua incapacidade de lidar com as
traições e mortes das quais fora autor ou mandante. A esposa, vendo a fraqueza
do marido se transformar em tirania, tira a própria vida, talvez por perceber que
despertou em Macbeth o lado mais obscuro da vida: o receio de acontecer consigo
aquilo que ele causou aos outros.
Há que se destacar alguns pontos
da produção cinematográfica: a atuação do casal protagonista é brilhante. A
expressividade dos gestos, o texto bem fiel à redação de Shakespeare e a carga
dramática, com pertinência, que Cotillard e Fassbender deram aos seus
personagens, quase que compondo uma peça de teatro filmada, mostram que o filme
não se preocupou em popularizar a obra literária. A ambientação e a fotografia
dão uma carga ainda mais pesada à narrativa. Do contrário, talvez surgiria um
conteúdo mais acessível ao público, porém infiel à obra canônica.
Deixando de lado as sempre
injustas comparações entre livro e filme, Macbeth:
ambição e guerra contém 105 minutos de entretenimento consistente e
desafiador. Mas não é necessário se limitar à ficção. É quase inevitável não
buscar paralelo com a nossa realidade política em curso. Se a história é sofisticada
e o texto de difícil entendimento, não será trabalhoso ao espectador
identificar que a tragédia brasileira tem o seu Macbeth.
O vento que soprava na varanda arejou o ar abafado de janeiro e pôs a balançar o candeeiro que alumiava em movimento o lado de fora da casa. Quando uma rajada se engrandeceu, o fogo apagou, e o brilho da luz que outrora contemplava uma conversa não presenciou o beijo apaixonado de duas mulheres que ali estavam há algum tempo. Elas não se amavam, nunca haviam se visto até então. Se contentaram com a nudez em meio à sombra por entenderem que o prazer dispensa protocolos.
RECOMEÇO
Vinha de longe, cambaleando, um pedaço miúdo de gente. As pernas – fofas, arqueadas e diminutas deveras – zanzavam, com os pés a tatearem o chão sem firmeza. Parou, fez-se do corpo um pêndulo e caiu. Não chorou. Com sabedoria inata, supunha que a vida era de tombos também, e preferiu se agarrar a um objeto qualquer para se colocar de pé e começar tudo outra vez.
PARAÍSO
Havia algo de fascinante no céu daquela noite: a lua, encoberta por espessas nuvens, não deixava a escuridão tomar conta de tudo. Em derredor, relâmpagos relatavam a chuva recente ou anunciavam uma outra vindoura e que, agora, caía forte nas imediações. Ali, numa rua pouco habitada e quase sem movimento, restou ao casal uma brisa boa, daquelas que encorajam transgressões e perturbam os bons modos. E entre um gole e outro de cerveja, dois corpos desavergonhados e em enlace.
MISTÉRIO
De tanto pensar no sentido da vida, morreu. E sem poder falar o que descobrira – pois morto já estava –, guardou segredo e legou a quem ficou a angústia de viver sem saber ao certo por quê.
FÉ
A vida lhe havia dado mais uma pancada. Caído e imerso numa fragilidade soturna, não sorriu, nem chorou. Sabia que o momento era de coragem, com parcimônia. E antes de se levantar e prosseguir, alinhou os joelhos no chão, cerrou os olhos e, abrindo os braços com as palmas pra cima, bradou em silêncio: “meu Deus!”.
[Fonte: www.observenigeria.com]
IGNORÂNCIA
O professor, convicto de que estava ali só para ensinar, perdeu oportunidade de aprender com os alunos, que aprendiam e ensinavam todos os dias que ensino e aprendizagem não são monopólios de quem quer que seja.
AUSÊNCIA
Acordou feliz do sonho que acabara de ter. De imediato, amuou-se: a pessoa só lhe era presente nas brevidades do sono. Lembrou, então, que a vida não brinca de sonhar e que o sonho, irrealizável, caíra-lhe como um lembrete: contenta-te com a saudade.
DILEMA
Com receio de sofrer por amor, preferiu não amar. E como não amou e nem sofreu, deixou de provar o gosto doce de amar e ser mais feliz do que foi sem sofrer.
AMPULHETA
Quando se deu conta, a vida lhe passara. Enquanto via as feridas do passado cicatrizarem, outras se abriam em virtude do futuro não vivido. E concluiu resignadamente: o tempo é o melhor e o pior dos remédios.
AVESSO
Ao avistar algo estranho, parou. Estava diante de uma situação que jamais vivera. E quando menos esperava, o amor passou por ela como um mar em ressaca que arrasta tudo sem gentilezas. Ao recuo das águas, a calmaria fazia-lhe a emanação de uma outra vida, arrebatada pelo sentimento do qual ela não mais queria abrir mão.
[1] Com Aécio em vias de ser preso [Fachin, por ora, livra o mineiro do xilindró],
Cunha já condenado e Temer chegado a uma propina [os três sabotadores da
República em 2015 e 2016, correto?], está mais do que claro: Dilma Rousseff sofreu golpe.
[2] Numa tacada só, Aécio é pego
planejando assassinato e Temer sendo benevolente com pagamento de propina. Que
dia terrível para a direita brasileira!
[3] Cada vez mais, frases como
“somos milhões de Cunhas” e “A culpa não é minha. Eu votei no Aécio” ficam risíveis e entram para os anais da história.
[4] Lembro da tucanalha questionando os petralhas porque, em 2014, estes preferiram Dilma a Aécio [pasmem! Numa democracia a gente pode escolher]. Hoje, Dilma tá andando de bicicleta e tirando selfie com o povo em Porto Alegre. Aécio, escorraçado do senado, é quase um foragido.
[5] Temer é produto de dois
movimentos opostos: do PT, que cretinamente o permitiu na vice-presidência, e dos
reaças brasileiros [grande mídia, empresários e parte do judiciário, parlamento e da sociedade civil], que o tiraram da sua legitimidade como vice e o
transformaram num presidente usurpador do poder.
[6] Os petistas sempre tentaram
se desvencilhar totalmente de Michel, sem atentar que o princípio de tudo
deveu-se ao fisiologismo do partido em nome da manutenção do poder. A direita,
capitaneada pelo PSDB, faz o mesmo, mas se aliou a Temer quando lhe foi
conveniente. Não que os seguidores de Alexandre Frota e Kim Kataguiri curtissem o esposo de Marcela, mas como era "tudo culpa do PT", agarraram-se a Temer. Agora naufragam.
[Fonte: Folha/UOL]
[7] Repito o que já falei sobre Lula: é mais sujo que o banheiro do boteco que frequento às sextas [saudades, arcanjo!]. Cabe a Moro prendê-lo, algo que o juiz e o MP de Curitiba tentam há mais de três anos [sem provas, só com convicções, fica difícil]. Mas não botem Luiz Inácio e Michel Temer na mesma prateleira. Lula não é nada. Temer é o presidente da República Federativa do Brasil.
[8] Temer reclamar de conspiração é o mesmo que imaginar Hitler se queixando de mau tratamento num campo de concentração. Provar do próprio veneno parece indigesto.
[9] Aquele conto de fadas, de que
o PT monopolizava o mercado da corrupção, ruiu ontem. Agora o senso comum vocifera: “nenhum salva, tudo farinha do mesmo saco” [o que, diga-se, é outro equívoco dos fundamentalistas de
plantão]. A 'santíssima trindade' da política brasileira [PSDB/PMDB/PT] está na lama, mas profetizar terra arrasada é típico do fascismo.
[10] O estado democrático de
direito é fascinante por vários motivos. Um deles: não há o diz-que-me-diz-que. Há
a lei. Temer, Dória, Moro, Lula, você e eu devemos obediência a ela. Se a lei é
ruim – e muitas são –, a nossa luta é válida para alterá-la, não burlá-la. O
parágrafo primeiro do Artigo 81 da Constituição Federal é claro: no caso de
vacância dos cargos de presidente e vice, a menos de dois anos do término do
mandato, são realizadas eleições [indiretas] pelo
Congresso Nacional, em até 30 dias. Sim, os parlamentares, a maioria deles representando a fina
flor da canalha, devem escolher presidente e vice que terminarão o mandato vigente até
31/dez/2018. Qualquer coisa fora disso, só por Emenda Constitucional, algo que demandaria tempo para passar pelas comissões e pelos plenários da câmara e do senado em dois turnos, com 3/5 de aprovação em cada uma das quatro votações.
[11] O que eu acho: eleições
diretas resolveriam um problema iniciado por Dilma em janeiro de 2015 [estelionato eleitoral] e
aprofundado em 2016 [golpe de Estado]: um novo pacto seria estabelecido. A celebração
quase sagrada entre representação e sociedade só pode se dar pelo voto. E que quem sair derrotado das urnas saiba entender que é legítimo o
outro governar, ao contrário do papelão protagonizado pelos tucanos, que no dia
seguinte à eleição de Dilma em 2014 começaram a choramingar o impeachment.
[12] Num cenário de devastação
total – ainda não é o nosso caso, embora quase –, os bons recusam a política, abrindo espaço para o surgimento de personagens reacionários. A tendência é
aparecer gente pior [Bolsonaro tá esfregando as mãos e lambendo os beiços; Dória, o farsante, vai continuar se vestindo de gari, demagogo que é]. A despeito da história provar isso, que se desmantele esse
grande esquema em que se transformaram os corredores do nosso poder. São dois processos distintos: um é punir a corrupção; o outro são as escolhas que faremos a partir daí.
Há alguns anos, eu não
parabenizava as mulheres por julgar o 08/03 uma idiotice. O idiota era eu.
Hoje, eu continuo a não dirigir à mulher o já batido “parabéns pelo seu dia”. A
data está longe de ser uma tolice como eu mesmo julgava, mas a forma como o Dia
Internacional da Mulher é encarado, de um modo geral, quase sempre resvala em
afirmações do tipo “o que seria de nós sem vocês” ou nos inúmeros estereótipos desastrosos
que Michel Temer conseguiu incluir ontem em menos de um minuto de fala. Deu
saudade dos discursos de Dilma. Se fosse uma gafe – eufemismo que os
preconceituosos dão para justificar suas discriminações –, já teria sido uma
aparição desprezível. Mas não foi um deslize: aquele é o exato pensamento do
“presidente”, lamentavelmente em concordância com uma imensidão de brasileiras
e brasileiros.
Mas a data, em vez de servir para
dar esmolas às mulheres e colocá-las no protagonismo que não se vê nos outros
364 dias do ano, é de muita reflexão e coragem – não só por parte da mulher, diga-se.
Reflexão para entender as conquistas das últimas décadas, cenário que obriga o
homem a se reinventar também. A mulher continua fazendo o que sempre fez, e nos
espaços que passou a ocupar trouxe virtudes desconhecidas até então. Para quem
pensou na “beleza” como melhor recurso oferecido pela mulher, um aviso: rosto
ou corpo bonito não tem a menor importância no caldeirão de avanços que o mundo
teve com a incursão da mulher aqui e ali. Lembremos: as melhorias não foram
benevolências concedidas pelos homens. Vieram à custa de muita mulher na rua.
Logo, cabe ao homem fazer o
mesmo: empenhar-se em melhorar os seus atributos nos espaços que agora divide –
mesmo porque ganha um salário bem maior que a mulher no mercado de trabalho, ainda
que em cargos similares – e desempenhar
obrigações que, hoje, não são mais exclusivas da mulher – ou não deveriam ser. Já
passou da hora do homem dividir os afazeres domésticos, contribuir não só
financeiramente para o bom andamento do lar, participar ativamente da educação
dos filhos e, óbvio, entender que a roupa do dia, o lugar aonde ir, em
companhia ou solitária, a hora de ir e vir, o que vai falar, beber e comer, o
jeito de dançar, em que cama e com quem irá dormir são decisões que competem a
ela, e a ninguém mais.
O incêndio na Triangle Shirtwaist Company, em 25 de março de 1911 (Nova Iorque/EUA),é um marco para as manifestações feministas no século XX. Foram 146 mortes, dentre elas 125 mulheres. A partir de então, foi comum ver protestos exigindo melhores condições de trabalho, redução da jornada diária, equiparação salarial e melhor tratamento no ambiente das fábricas. Porém, as primeiras mobilizações feministas nasceram no final do século XIX. (Foto: Wikepédia)
Foi-se o tempo em que o homem
saía para trabalhar e a esposa – sempre bela, recatada e do lar – ficava em
casa providenciando as refeições, limpando a casa, lavando e passando roupa,
cuidando dos filhos, à espera da volta triunfal do marido. É isso que Michel
Temer ainda não entendeu (e possivelmente nunca entenderá). O mérito da mulher
não está cravado no território doméstico. Está na autonomia de fazer o que bem
entender de si mesma, algo que antes lhe era negligenciado pelos homens. Sem aceitarem
a igualdade, apelam ao machismo, ancorados em mentalidades arcaicas que só
servem para atentar contra direitos fundamentais.
E é por isso que o 08/03 é também
dia de coragem. Coragem porque muita mulher é ridicularizada no trabalho,
apanha em casa, é estuprada nas ruas. Coragem porque é senso comum não
distinguir a morte de um homem da de uma mulher em casos de violência. A
mulher, em larga porcentagem, é morta por ser mulher (o mesmo acontece com
negros e homossexuais). Há uma diferença que precisa ser estabelecida, e não
fazer isso é fomentar o preconceito.
Reflexão e coragem são exercícios
de todas e todos. Parece-me que numa sociedade democrática e republicana, não
cabe só à mulher lutar contra as opressões que lhe são impostas, a despeito de
ser mais do que pertinente a sua liderança em um movimento dessa natureza.
Defendo isso não por julgar a mulher incapaz de resistir isoladamente (tantas
já fizeram isso um sem número de vezes), mas por entender que o homem é parte
do todo, e seria muito cômodo simplesmente lavar as mãos diante de preconceito
tão evidente. Entretanto, se alguma mulher um dia disser que não quer a minha
militância ao lado dela, só me caberá acatar e torcer à distância para que ela
triunfe.
Amanhã (13) está prevista no Senado a votação em 2º turno da PEC 51 (antiga PEC 241, quando tramitou na Câmara), que estabelece o teto
para os gastos públicos até 2036. No último dia 30, a Proposta de Emenda à Constituição foi aprovada em 1º turno com 61 votos favoráveis e 14 contrários. Como já passou pela Câmara, caso tenha nova adesão superior a 3/5 da casa, a PEC fica aprovada, sem a necessidade de sanção presidencial. O objetivo de Michel Temer é que toda a tramitação
ocorra este ano para que, em 2017, as regras passem a valer. Saúde e Educação
entram na contenção em 2018.
Os
repasses serão feitos com base na quantia empenhada no ano anterior, corrigida
pela inflação dos últimos 12 meses. Botando na ponta do lápis, o principal
pecado dessa política fiscal é não proporcionar aumentos reais aos investimentos,
congelando-os no parâmetro da inflação, além de viabilizar perdas ao longo de
20 anos, no comparativo com os índices atualmente despendidos. As medidas valem
por duas décadas, mas daqui a dez anos o presidente em exercício poderá
revê-las. Antes disso, só por meio de outra PEC.
Mas
a PEC 55 acaba por falhar também no diagnóstico. Um déficit fiscal pode ser gerado
por dois problemas: muito gasto ou pouca receita. Temer quer atacar o primeiro,
quando o déficit do Brasil está, fundamentalmente, no segundo. O país não gasta
mais do que deveria. Basta ir a uma escola ou hospital público para entender
isso. Então, se a receita cai, é preciso encontrar formas de reavê-la. Em nota,
o Conselho Federal de Economia (Cofecon) rechaçou a PEC e explicou os motivos
do seu posicionamento. No vídeo abaixo, Laura Carvalho, professora da Faculdade
de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, fala sobre a Proposta,
seus erros e exageros e em que caminho deveria seguir a política fiscal
brasileira.
Que
o país precisa reequilibrar as suas contas, isso é inegável. Culpa de Dilma,
que deveria ter revogado, em 2013 (e não dois anos depois), a política de desoneração
fiscal e concessão de créditos, que foi tacada certeira de Lula em 2008 para
amenizar os efeitos do epicentro da crise: a quebra do mercado imobiliário dos
EUA. A bancarrota norte-americana, aliada à decisão tardia de Dilma de
reformular a política econômica (por interesse eleitoreiro), pôs o Brasil na
conjuntura atual: desemprego em alta, déficit no orçamento e recessão. Pior: as
conquistas inéditas de doze anos de gestão do PT (2003-14) – avanços que nenhum
outro governo ousou gerar – sofrem retração.
Mas
uma coisa é tomar medidas pontuais, proporcionais ao problema vigente. Outra é
o que Temer quer fazer. Se a estimativa é que o país volte a crescer no próximo
ano ou no mais tardar em 2018, por que estipular um teto de gastos públicos
para as próximas duas décadas? É verdade que um PIB positivo não implica
orçamento no azul. É provável que o déficit perdurará por mais de dois anos.
Mas exagero achar que levará duas décadas para sair do vermelho. Como já dito,
cortar despesas é importante, mas não pode ficar na afirmação vazia e genérica.
É preciso pontuar que áreas sofrerão cortes (maiores e menores) e quais, por
questões de necessidade básica, ficarão de fora. O resto é neoliberalismo vazio.
Alguns
gastos são fundamentais, dentre os quais estão saúde e educação. Se com os
investimentos atuais escolas e hospitais deixam a desejar, engessar o orçamento
voltado às duas áreas é decretar a falência de ambas. Sendo assim, o mais
coerente seria tirar saúde e educação do contingenciamento e, para o resto,
regular os gastos. Numa comparação com o ambiente doméstico – Temer adora esse
tipo de paralelo! –, é como se eu tivesse a necessidade de cortar gastos por
estar desempregado. O que faço, então? Duas listas: uma com as necessidades elementares
e outra, com as supérfluas. Não posso deixar de comprar alimentos básicos e
água. Aí entra a segunda lista: cortar a TV a cabo, sair menos aos finais de
semana, deixar de fazer uma viagem programada, comprar menos roupas, calçados,
objetos para a casa.
A PEC e os bilhões de
reais em perdas
Segundo
a Nota Técnica nº 28, de Fabiola Sulpino Vieira
e Rodrigo Benevides, publicada em setembro pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), órgão vinculado ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento
e Gestão, em 20 anos de gastos congelados a Saúde pode perder até R$ 1 trilhão
em investimentos. O pretexto do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, de que
o montante atual é suficiente, não condiz com a realidade. Em 2013, o Brasil investiu
em saúde, por habitante, um total de US$ 591. A Argentina, no mesmo ano, colocou
o dobro: US$ 1.167. Se comparado ao gasto dos EUA com cada cidadão, a
disparidade é ainda maior: os norte-americanos investiram, per capita, US$ 4.307,
sete vezes mais que o Brasil.
Se fosse aplicada há 20 anos, a PEC só não teria sido prejudicial em 2003 [Fonte: Fabiola Sulpino Vieira e Rodrigo Benevides/Ipea]
Ainda
de acordo com o estudo, outro problema a que a PEC 55 parece não atentar é o
envelhecimento da população brasileira. Com mais idosos, a demanda do SUS vai
aumentar, algo incompatível com a medida tomada por Temer. Isso prova duas
coisas: os governos do PT não conseguiram solucionar esse gargalo do país e o
problema do Brasil não é só a alocação dos gastos, como argumenta Meirelles. Segundo
os autores do estudo, o problema é de gestão e investimento. Enfim, falta
gastar melhor, como afirma o ministro, mas falta dinheiro também, e ele será
ainda mais escasso na vigência da Proposta.
Outra
área de relevância social que sofrerá com a contenção de investimentos é a
assistência. Em outro estudo do Ipea, intitulado “O novo regime fiscal e suas
implicações para a política de Assistência Social no Brasil”, de Andrea Barreto
de Paiva, Ana Claudia Cleusa Serra Mesquita, Luciana Jaccoud e Luana Passos,
investimentos em programas como o Bolsa Família cairão quase pela metade em 20
anos: de 1,26% do PIB, em 2015, para 0,7% daqui a duas décadas. Em valores, as
perdas podem chegar a R$ 868 bilhões até 2036 (Fonte: Folha de S. Paulo).
Na
educação, se vigorar pelos próximos 20 anos, a PEC irá gerar perdas na ordem de
R$ 480 bilhões, segundo dados da Consultoria de Orçamento e Fiscalização
Financeira da Câmara apresentados na coluna de Jânio de Freitas, no
último dia 16, também na Folha de S. Paulo. O argumento de que a população
brasileira vai envelhecer e, com isso, o número de crianças e jovens irá
diminuir, reduzindo também a demanda por escola, seria sólido, não fosse o
déficit atual entre o que é investido em educação e o que é preciso fazer para
torná-la um lugar melhor. Em resumo, é impensável diminuir o orçamento da área.
Quanto maior for o crescimento do PIB, menor será o percentual de investimento em saúde
[Fonte: Fabiola Sulpino Vieira e Rodrigo Benevides/Ipea]
Por
outro lado, os programas que oferecem subsídios e desoneram tributos do setor
produtivo, a chamada “bolsa empresário”, não sofrerão cortes, como apresentou matéria da Folha de S. Paulo. O
custo disso em 2017: R$ 224 bilhões a menos nos cofres da União, ou seja, 3,4%
do Produto Interno Bruto. Em valores correntes, a política fiscal para o ramo
garante uma fatia do orçamento sete vezes maior que a destinada para o Bolsa
Família (R$ 29,7 bi), bem acima também dos investimentos em saúde (R$ 94,9 bi)
e educação (R$ 33,7 bi). Aliás, os valores postos em saúde e educação somados,
excetuando gastos com pessoal, atingem pouco mais da metade do que o governo
deixa de arrecadar junto ao setor de produção.
O pano de fundo da crise e
as reais motivações de Temer
A
partir daí, algumas constatações: é falacioso o argumento de que os encargos
trabalhistas impedem mais contratações: se de um lado as empresas e indústrias
arcam com custos elevados, por outro o Estado assopra a ferida. Segundo:
importante que o setor produtivo não perca força por ser gerador de emprego,
mas não entrar no contingenciamento, ainda que mínimo, comprova que o objetivo
de Temer não é equilibrar as contas, e sim implementar o projeto denominado “Uma ponte
para o futuro”, que, segundo ele, não foi aderido por Dilma. Justamente por
isso – e não porque Dilma cometera crime de responsabilidade – houve a troca da
presidente pelo vice no Planalto, segundo o próprio beneficiário do processo,
Michel Temer.
Isso
demonstra que Temer e sua equipe econômica parecem não entender de... economia,
mesmo mal que acometia a ex-presidente e seu time. O capitalismo é um modo de
produção cuja característica principal é o trajeto em uma linha curva. Trocando
em miúdos – e quem tem mais de 30 anos como eu já pôde perceber –, a economia
capitalista é oscilante: ela progride e o momento mais próspero é sucedido por
uma crise, a partir da qual é preciso se reorganizar para voltar a crescer.
Pois bem. Se o capitalismo é cíclico, por que estabelecer uma medida que será
válida por 20 anos? Ela é apropriada para um período de recessão, mas o Brasil,
como já dito, irá se recuperar antes de 2036. Aliás, é provável que o país
passe por pelo menos outras duas crises econômicas até lá. Na fase superavitária,
não há motivo para manter o investimento vinculado à inflação. Neste caso,
recorrer à receita líquida volta a ser a melhor alternativa. Em suma, é uma
medida muito duradoura e austera para um cenário que não será o mesmo ao longo
duas décadas.
O papel da dívida pública
no orçamento da União
Quando
se discute o orçamento, alguns pontos como saúde, educação, cultura, programas
sociais, infraestrutura, salário mínimo e previdência sempre estão em voga, na
mira dos cortes, justamente os parâmetros que fazem a diferença para ampla
porção da sociedade brasileira. Mas a maior fatia do orçamento da União é
destinada a pagar a dívida pública e os seus juros.
Essa
dívida é composta por três componentes: dívida interna em mercado, dívida
externa e encargos no Banco Central. Somados, eles atingiram em 2015, segundo relatório anual do Tesouro Nacional, um
montante bruto de R$ 778,1 bilhões. O orçamento reservou R$ 162,2 bilhões para
saldar a dívida. E os R$ 615,9 bi restantes? São liquidados pela União: o governo emite títulos da dívida e os põe à
venda para sanar o déficit do orçamento com o dinheiro arrecadado. Os títulos são
comprados no mercado por investidores – convenhamos, o trabalhador que vive com
um salário mínimo por mês não participa da brincadeira. Esse jogo só aceita
grandes fortunas. Quem adquire títulos passa a ser credor do Estado, pois, em
troca, quer ser ressarcido com o pagamento de juros. Este percentual pode estar
vinculado ao câmbio, à taxa Selic e à inflação.
Isso
significa que os credores, além dos bancos, ganham – e muito! – com inflação,
dólar e taxa básica de juros altos. Não é difícil entender por que índices que
seriam melhores à população estando baixos tendem a permanecer altos,
especialmente a Selic. O Bradesco, em 2015, isto é, com o país já em crise,
teve lucro de R$ 17,1 bilhões, aumento de 14% em relação a 2014 (Fonte: G1). Na hora de sangrar o
orçamento, a dívida e os seus juros não “entram na faca”. Em setembro deste
ano, ela atingiu, em valores correntes, R$ 3 trilhões (dívida + juros). De
acordo com o Plano Anual de Financiamento, a dívida pode chegar, ao final de
2016, a R$ 3,3 trilhões, o equivalente a mais da metade (55,9%) do PIB
registrado no ano passado (R$ 5,9 trilhões) (Fonte: G1). O vídeo a seguir explica o que é a dívida pública, para
que serve e como é usada.
O discurso, a prática e as
alternativas
Se
Temer estivesse preocupado em cortar gastos para a recuperação da economia
brasileira, poderia tomar outras medidas: diminuir cargoscomissionados,
taxar as grandes fortunas, conter as regalias do Executivo, Legislativo e
Judiciário, cortar gastos com propaganda oficial – da qual o novo “presidente”
tem abusado bastante. Entre manter privilégios ou direitos, a PEC 55 preserva os primeiros. Poderia
também, em tempos austeros, não oferecer coquetel e jantar para mais de 400
convidados, cujo cardápio foi risoto, massa, vinho importado e salmão. Banquete
pago com o nosso dinheiro e que Temer, republicano que não é, recusou-se a
divulgar. A estratégia? Agradar a base aliada nos dias que antecederam a votação
da PEC em primeiro e segundo turnos na Câmara. Claro que o valor não faria
diferença para fechar o orçamento, mas se a ordem é conter gastos, é prudente
evitar jantares pomposos.
Outra
máxima do discurso do governo é o caos. A PEC é pregada como a salvação da
lavoura. Sem ela, o país quebra. Rodrigo Maia, presidente da Câmara, vislumbrou
a catástrofe, afirmando que sem o teto dos gastos o Brasil vira o Haiti. Conclusão
tão exagerada quanto falsa. Mas a receita é antiga, conhecida e habitual em regimes
políticos com feições de tirania: o governo planta o medo na população e ele
mesmo – e só ele – oferece o remédio para combater o problema. Contando com
apoio irredutível do povo, temeroso por momentos difíceis, qualquer ação
governamental está legitimada. Foi assim que Bush tocou o terror no mundo em
praticamente toda a primeira década do século XXI.
Em
tempos de polarização política, maniqueísmos e ódio, é importante não misturar
alguns conceitos: o fato de se ter feito oposição a Dilma não implica abanar o
rabo para tudo o que o sucessor faz. Por incrível que possa parecer, assim como
a ex-presidente, Temer comete erros e age por interesse próprio e de quem o
colocou na presidência. Independentemente do partido e da pessoa que se
encontram no poder, é preciso discernir a doença do remédio, o problema real da
aparente boa intenção em saná-lo, para que daqui a alguns anos a história não
nos impute a vergonha.
O
texto pode soar doutrinário, mas a minha intenção não é legar à humanidade um
modo universal de lecionar. Mesmo porque não atingi o que proponho aqui e,
quando o fizer – se é que o farei –, será hora de repensar outros parâmetros,
ampliar as fronteiras, uma vez que o passar do tempo se incumbe de gerar novas
ansiedades em quem chega à escola. Naturalmente, isso impõe a quem nela já está
a necessidade de atualizar-se.
Aqui,
hoje, em comemoração ao Dia do Professor, apenas constarão a maneira como
enxergo a escola e qual entendo ser a atuação do docente e, não menos
importante, do estudante no processo de ensino-aprendizagem. É só uma forma de refletir
sobre a profissão e homenagear todas e todos que se dedicam à sala de aula – e outros
espaços de escolarização – com compromisso celibatário.
[Foto: www.blog.andi.org.br]
Ser
professor é ter o domínio da epistemologia referente à disciplina da qual está
à frente. Estar alheio ao conhecimento produzido na área seria determinar a
morte prematura do estudante. O ambiente escolar pressupõe, claro, as
sedimentações da história, mas também as novas demandas do mundo. O pensamento
produzido pela ciência, desde que encarado de modo crítico, contribui para a
formação do acadêmico. A teoria pressupõe atualização de conceitos e o percurso
histórico das investigações científicas. Sabê-los é compreender a evolução da
área e o contexto que redundou no momento atual. No caso do Jornalismo, minha
área de atuação, é imprescindível apresentar as primeiras publicações impressas
e as circunstâncias em que se estabeleceram. Porém é preciso discutir,
igualmente, de que forma jornais e revistas podem sobreviver em um cenário
dominado pela tecnologia. Essa é apenas uma dentre tantas discussões que o
curso pode fazer.
Mas
para ser professor não basta isso. Porque sem didática – ou seja, os recursos
de exposição do conteúdo e dinâmicas de atividades para fazer a teoria ser
compreendida pelo estudante –, o docente é como um livro fechado: o conteúdo
está lá, mas se não chega a quem de fato importa, de que adianta? Conhecer as
teorias é o ponto de largada. No entanto, sem a didática o competidor não cruza
a linha de chegada. Se a escola não se presta a realizar o aprendizado do
estudante – e isso só se dá na transformação da teoria em conhecimento,
justamente por meio da didática do professor –, melhor seria o docente ficar em
casa, ruminando o que sabe na solidão de sua própria companhia. Dependendo da
didática, o professor transforma o estudante em aluno, mero espectador de um
monólogo. Dependendo da didática, o estudante atua, produz, provoca o docente,
desafiando-o a sair das caixas do positivismo, do pragmatismo e de tantos outros
“ismos” que ainda atormentam a academia.
Trecho do livro "Extensão ou Comunicação?", de Paulo Freire, publicado em 1968. [Foto: Thiago Cury Luiz]
Para
fechar o tripé, o lado humano não é carta fora do baralho. Parece óbvio, mas
não custa lembrar: o professor não é alguém que, na intimidade do seu trabalho,
aperta parafusos. A companhia do docente é o estudante, a sua razão de ser, o
pedaço que falta para sentir-se inteiro. O discente é quem dá sentido ao
professor, a fazer deste alguém ainda admirado, com algum reconhecimento. Ao
professor, ter o entendimento de que a escola não pode reproduzir as relações
de opressão de que a sociedade já está repleta é fundamental para que a sala de
aula cumpra o seu papel de fomentar a cidadania, um dentre diversos princípios
democráticos que precisam ser postos em diálogo nos espaços de
ensino-aprendizagem. A escola, definitivamente, não deve se limitar ao mero tecnicismo
da transmissão de conteúdo, tal como transferimos arquivos de uma pasta para o
outra no computador.
Um saravá às professoras e professores que fazem do ofício uma proposta de vida; aos docentes que tanto me ensinaram; aos colegas e companheiras, sem deixarmos de refletir acerca do que podemos fazer para melhorar o que aí está, peitando os retrocessos que as políticas governamentais tentam nos impor com PECs e "escola sem partido"; e aos estudantes, a outra metade da nossa existência, os que nos fazem voltar no dia seguinte com a esperança de que é possível fazer diferente e melhor.
Quando
eu vim, só havia metade de mim. A outra, assim, respondeu ao chamado de Deus: “sim”.
E tal como a gota da torneira, incessante, que faz barulho no copo cheio d’água,
as duas palavras teimam em atormentar meu pensamento: “nunca mais...”, “nunca
mais...”, “nunca mais!”. “Nunca mais” de tudo aquilo que fizemos aos montes e
do que deixei pra depois, e não faremos.
Faltou o
netinho, faltou assistir a uma aula minha, faltou conhecer o apartamento novo
em que projetei expectativas de quando fosse me ver. Não deu. Faltou um beijo a
mais, um “te amo” a mais, um olhar que deliberei desviar, protelando tudo para “a
próxima vez”, na arrogância de achar que sempre haverá uma próxima vez. “Nunca mais!”.
Mas de
tudo o que faz falta, um dói mais: o abraço que eu quis dar, mas resisti. A mais,
agora, o lugar à mesa, no sofá, na varanda, no carro, o silêncio transbordante,
ferida que machuca, saudade que aperta, vazio no peito incontido. "Nunca mais!".
A mulher que ia ao aeroporto se despedir de mim nunca mais irá encostar na grade e me acenar. A viagem dela, ao contrário das minhas, é sem volta. Quando eu voltar depois, e depois, e depois, ela não estará lá pra me sorrir com um abraço. “Nunca
mais!”.
Quando ela
foi, levou junto de si um preenchimento de mim. E o vazio, que em circunstâncias
normais é nada e, por isso, desprezível, agora vira grandeza palpável e
intimidadora, pois é tudo o que há em mim, algo a ocupar a existência de ponta
a ponta, sem intervalos ou sossego. “Nunca mais!”.
[Foto: www.compranotamil.com.br]
O sofrimento
é um direito, neste momento, do qual não abro mão. Remoer os arrependimentos,
digerir a ausência, rememorar as vivências são lidas árduas, diárias e
protocolares nesses tempos de introspecção. Com o olhar no lugar vago, porque
só assim o pensamento e o inconsciente visitam a dor sem medo. “Nunca mais!”.
Ela, a
dor, é tamanha, a ponto de se impor, a priori, sobre o tempo. Ele, habituado a
passar depressa, se encolhe, tira o pé do acelerador, como se fosse intenção
sua colocar quem sofre num moedor de carne que funciona em velocidade mínima. É imperativo ter paciência. O
arranhão que fere a alma, definitivamente, não cicatriza de uma hora pra outra.
“Nunca mais!”.
Nesses quase 20
dias, cabisbaixo, fui capaz de desejar o que escapa à razão: imaginei que, ao
buscá-la nos espaços da casa que mais a identificavam, por um motivo
extra-ordem, ela pudesse estar lá. Levantava a cabeça e... nada. “Nunca mais!”.
A mulher
que deitou ao meu lado quando tive medo da escuridão noturna, que me vestiu pra
ir à escola, que brigou comigo quando fiz arte, que vibrou junto de mim as
minhas alegrias e que me ensinou que as tempestades da vida a gente enfrenta
sem reclamar foi lá pra cima e virou estrela. Eu, que não sou bobo nem nada,
nas noites de angústia e aborrecimento, vou olhar pro céu, escolher o brilho
mais bonito e gritar em silêncio: mamãe. E vou pra cama dormir e sonhar, pra
nunca mais, nunca mais, nunca mais te esquecer.
Se
um homem bebe o suficiente para não conseguir manter a lucidez... Se um homem
sai com quantidade de roupa a esconder pouco o seu corpo... Se um homem anda sozinho
até altas horas na rua ou vai a um baile funk, nada disso servirá de base para
justificar um estupro. Motivo: o homem, em geral, não é alvo desse tipo de atentado.
Quando apenas a mulher é vitima e só ela corre o risco de ser violentada
sexualmente, temos estabelecida uma cultura, um hábito, um costume que virou
rotina e, portanto, é aceito. É cultural considerar a mulher como objeto
sexual, a saciar o desejo do homem quando este deseja. Por se colocar como
superior, é legitimado socialmente ao homem infringir a vontade feminina. Ainda
que sem consentimento, a mulher deve se contentar com o seu papel de submissa. Historicamente,
à mulher não é dado o direito ao prazer, ao gozo, sensação que só o homem pode
ter. Eis a cultura que temos em voga, que, por ser nociva, é necessário
combatê-la.
Em
Kant, desejo e vontade são colocados como dimensões distintas e até opostas. O desejo, proveniente do instinto e das
emoções, deve ser rechaçado pela vontade,
fruto da inteligência e do pensamento racional. Só que o desejo não se
controla, justamente porque as contenções comportamentais são acionadas apenas
pelas nossas faculdades intelectivas. O que é instintivo simplesmente
desabrocha, sem qualquer capacidade de censura, de uma coerção premeditada. Mas
entre a excitação e o ato, ou seja, a materialização do anseio no corpo de
outra pessoa, há uma distância considerável. Não há moralidade ou imoralidade
no desejo, mas na vontade, sim, pois esta é deliberada ou pode ser evitada. De
modo que cabe a nós, seres pensantes, propormos o descolamento entre um e
outra. Um cachorro, por exemplo, não é capaz de dissociar o desejo de transar da transa, e, assim, o cão é um bicho
amoral [a sua conduta não é moral, nem imoral].
No Brasil acontece um caso de estupro a cada 11 minutos [Foto: www.amarujala.com]
Nietzsche,
pensador que faz oposição a Kant, coloca uma ideia que, contextualizada, irá
concordar com a de seu conterrâneo. A violência é intrínseca ao homem,
característica que o condiciona. Os macacos já eram violentos, ensejando a
espécie que iria sucedê-los. Como exemplo, a violência imputada como castigo,
segundo Nietzsche, não serve para reparar ou compensar um erro, mas é, antes de
tudo, prazerosa. A agressão é excitante e tem como princípio o poder sobre
outra pessoa. O estupro, em síntese, é isso: um homem invade, a contragosto da
mulher, a sua intimidade. E ele o faz não porque está excitado. Ele o faz
porque quer demonstrar poder, de igual modo que o senhor fazia com o escravo:
açoitava-o não como punição ou método reparador, mas como instância de poder e
prazer. Se o problema fosse a excitação, caberia ao homem se masturbar, e a
questão estaria resolvida.
A diferença entre o
estuprador e quem discursa botando a culpa na vítima quase inexiste. O agressor
caminha por aí porque encontra conforto na impunidade, que, por sua vez, se
aconchega no pouco caso que a sociedade ainda dá à violência contra a mulher.
Naturalizada que está, o preconceito de gênero legitima tudo, transformando uma
aberração como o estupro em coisa normal, parte da cultura que não é aniquilada.
Resignar-se aí é ter as mãos manchadas nos atentados que as mulheres ainda
sofrem todos os dias. O disparate é tamanho, que até filósofos de opiniões
conflituosas como Kant e Nietzsche chegam a concordar em ao menos um ponto.
. Resignar-se aí é ter as
mãos manchadas nos atentados que as mulheres ainda sofrem todos os dias. O
disparate é tamanho, que até filósofos de opiniões conflituosas como Kant e
Nietzsche chegam a concordar em ao menos um ponto.
Em nome de Deus, dos meus filhos, das
minhas netas, do coronel Ustra, pelas forças armadas, pela paz em Jerusalém, o
meu voto é ‘sim’.
Houve de tudo no histórico domingo, 17
de abril. Quase nada sobre crimes de responsabilidade, os únicos, segundo a lei, a destituírem
uma presidente do seu cargo. Estranho, uma vez que Dilma Rousseff, eleita em
pleito direto, está como ré de um processo de impeachment. Este é, de fato, um
dispositivo constitucional e, portanto, democrático e republicano. Mas se não
se menciona crime quando a ocasião é propícia, crime não há. E se o argumento
pelo “sim” não carrega no seu núcleo a denúncia de um desvio, o processo não é
de impeachment: é de golpe.
Dilma botou o dedo em Furnas. Cunha emburrou e ficou de mal da presidente. [Foto: www.blogs.oglobo.globo.com]
O que determina a instauração, o
andamento e o julgamento final não são decisões equivocadas de uma gestão –
ainda que delas devam surgir cobranças e indignações. A Constituição
[Art. 85 e 86] e a Leinº 1079/50 são claras quanto a relacionarem o
impedimento a crimes de responsabilidade. O desemprego, o corte de
investimentos na educação, a inflação e todas as demais deficiências de ordem
socioeconômicas são preocupantes, mas não caracterizam crimes. A gestão de
Dilma é questionável. O seu mandato, não.
Mas o congresso deu tudo de ombros. Nada
que surpreendesse. O mais reacionário dos nossos últimos parlamentos, a geração
mais criminosa que tomou as bancadas legislativas agiu como dela se espera: com
o deboche e a hipocrisia
que lhe são peculiares. No domingo [17], uma deputada, ao votar “sim”, vociferou
moralismos e usou o nome do marido como exemplo de político. Na segunda [18],
quase antes que o galo cantasse, viu o nobre esposo, prefeito de Montes Claros
[MG], ser
preso. Outra vez, nada fora da curva. Foi
sempre dessa forma que a nossa classe dominante se comportou, criminalizando a
mulher, os homossexuais, os negros, os pobres, mesmo tendo o próprio quintal
imundo. Com raras exceções, o que se viu ali foi o reduto do machismo, da
homofobia, do racismo. Fico a pensar: um congresso tão monstruoso surge de uma
política carente de reforma ou temos ali o retrato perfeito do que é a sociedade
brasileira hoje?
O meu marido deve ser preso porque é corrupto? "Sim, sim, sim, sim, sim, sim!"
Um congresso que teima em botar o nome
de Deus em meio às decisões políticas sugere não saber a sua devida finalidade
– nem a do congresso, nem a de Deus. O que carece aos representantes que assim
o fazem é o trivial: entender que a laicidade fundamenta o Estado, que a polis
é deliberada pelas condutas racionais, e não místicas, míticas, alegóricas,
fantasiosas. Os espaços de cultos e rituais devem ser assegurados com base nas
liberdades religiosas consagradas no Art. 5º, Inciso VI da Constituição. Todavia,
Deus, Cristo, Maomé, Alá, Buda ou qualquer outro personagem religioso, ao menos
numa República, não ditam os rumos da coletividade. A fé compete à intimidade
de cada um. Inclusive é dado, a quem desejar, o direito de rechaçá-la. Num país
de crenças diversas como o nosso, eleger uma como oficial é o riscar do fósforo
para fazer do Estado um perseguidor, um inquisidor. Nos dias que correm, o
exemplo do vínculo entre fé e política é o Estado Islâmico [EI]. Parece-me
ponto pacífico que o EI não traz qualquer contribuição à vida de quem quer que
seja. A maioria entre os próprios muçulmanos atesta isso.
Não é tão difícil ver o que se passa.
Tarefa árdua é um golpista aceitar. Porque o golpista sabe que Eduardo Cunha [PMDB/RJ], presidente da Câmara, está em maus lençóis. Ele sabe disso. Mas o golpista é, por excelência, um
pragmático, maquiavélico: em benefício de um fim, tomado pelo ódio ideológico,
ele é capaz de qualquer artimanha. “Dilma deve sair do poder. O PT deve ser
extirpado”. Para isso, vale ter Cunha no jogo, o primeiro e único, entre a
gente graúda de foro privilegiado, a ser réu na Lava Jato. Não, ele não é um
mero suspeito ou investigado. Ele será julgado no STF e, provavelmente,
enquadrado. O golpista olha Cunha no centro da mesa diretora da Câmara, fazendo
a bola rolar numa das maiores decisões que pode haver no regime republicano e
democrático, e está convencido de que ali há um contraventor. O golpista tem noção
de tudo isso. Mas, pra ele, golpista, assim como o deputado que legitima, vale
tudo pela meta.
O golpista sabe que Temer é traidor e sabotador. Ele sabe que, se o partido rompeu com
o Planalto, o seu compromisso moral deveria ser o mesmo: sair da
vice-presidência. Não é ilícito permanecer, mas é de uma incoerência abissal. Da
cadeira de vice, já projeta o governo que cairá no seu colo. Porém exigir
coerência de Temer, do PMDB e de um golpista, é pedir demais. Fiquemos no que é
superficial, no degrau raso e baixo que o golpista consegue pisar. Do segundo
andar pra cima, tudo fica turvo.
"Nada é impossível de mudar". Poema do teatrólogo alemão Bertolt Brecht, narrado por Antonio Abujanra
O golpista sabe: o movimento que tanto
apoia e do qual é manifestante nasceu maculado, e isso implica a contaminação
de tudo o que está por vir. Ainda que Dilma não sofra cassação no senado, o
golpista estará com o “G” do ferrete cravado na testa, já que defendeu um
processo pelos esgotos das vias legais. O resultado pode ser um ou outro, mas
se a concepção está envenenada, envenenado o resto estará. O golpista é sabedor
de que tudo isso está posto. Ele só não está habilitado a compreender, numa
reflexão mais ampla, a mediania entre o que se critica e os caminhos do combate
ao que não está bom.
Mas o golpista planta a sua
reivindicação numa terra, cujo adubo é a ignorância, a alienação, o ufanismo.
Na sua conta, só cabe o “fora, Dilma. E leve o PT junto”. Slogan dos
oposicionistas nas eleições de 2014, está aí a comprovação de que o que ocorreu
anteontem foi, de fato, o 3º turno. O PSDB, habituado às derrotas na disputa
honesta, conseguiu vencer da única maneira que lhe era viável: no tapetão, na
mão grande, nas tramoias subterrâneas em conluio com os conspiradores do PMDB.
O movimento, liderado por Temer e Aécio, tem em Eduardo Cunha o seu testa de
ferro. O presidente da Câmara é um gângster. Mas há que se admitir: ao contrário
do vice traidor e do mineiro mal perdedor, nunca escondeu quem é.
O golpista tem noção de que o governo
corre riscos em várias frentes. O TSE está em vias de comprovar que a chapa
Dilma-Temer, assim como a de Aécio-Aloysio, recebeu verba proveniente de obras
superfaturadas da Petrobrás. E isso seria inapelável. Neste caso, a presidente
e o vice decorativo seriam cassados e, em acontecendo neste 2016, novas
eleições são convocadas. Se a anulação vier em 2017, eleições indiretas, pela
voz do congresso combalido, infinitamente mais criminoso que Dilma, sobre a
qual, é importante sempre lembrar, não paira qualquer crime. O golpista tem
isso em mente, mas não importa. Se é o túnel mais curto que o leva ao outro
lado da montanha, é por ali que tudo deve ocorrer, ainda que o túnel seja de
areia, e, frágil que é, um dia verá escancarado o seu pecado original. Mas o
golpista é assim: pensamento tacanho, visão de baixo alcance, o tipo que acha que
o amor é monopólio das relações heterossexuais.
O golpista, vencedor de um jogo impuro,
se veste com o uniforme da CBF. Simbólico! O time que, também em 2014, foi humilhado
por 7x1, tem no golpista o seu maior torcedor. No germe do golpe, materializado
pelo seu porta-bandeira, está a derrota, tudo em plena sintonia num movimento
que tem no conservadorismo, no retrocesso e no reacionarismo os seus alicerces.
Combater a podridão no reino da Dinamarca com estratégias fétidas não dignifica
a causa. Pelo contrário: contamina a ideia no nascedouro.
Patinho feio na última Copa, a seleção brasileira protagonizou o maior vexame da história do futebol [Foto: www.jcrs.uol.com.br]
O golpista tem em Sérgio Moro o seu
baluarte. Antes dele, outros tantos: Aécio, Cunha, o japonês da PF. O adepto do
impeachment suspeito é consciente de que o juiz admitiu grampos feitos além do
horário autorizado por ele mesmo, tomando-os como provas. Mais que isso,
desprezou a legislação e botou no balaio da justiça de 1ª instância gente que
não compete a ela. E veio a cartada final: liberou à imprensa peça de alto
interesse jurídico – e, assim, sigiloso –, horas depois de interceptada. Pelo
puro espetáculo, Moro jogou pra galera. Preferiu incriminar alguém cometendo
uma sucessão de delitos. Duas semanas depois, pediu “respeitosas escusas” ao STF e fez o
que deveria ter feito no início: enviou os áudios envolvendo personagens de
foro privilegiado à Suprema Corte. O juiz, por uma daquelas ironias do destino,
assinou o atestado de réu confesso. O golpista viu tudo isso, no fundo sabe que
Moro fez uso de expedientes de exceção, mas a obra messiânica de livrar o
Brasil do comunismo não deve ser interrompida. Afinal, o país não pode se
transformar numa nova Venezuela, Cuba ou Bolívia.
O golpista sabe que a TV Globo e a
revista Veja são seus porta-vozes. Ele não tem a menor dúvida de que a grande
imprensa faz o trabalho sujo no âmbito simbólico e percebe que, às portas da
saída da presidente, o noticiário sobre a Lava Jato – não sem conveniências –
já vai minguando. Ele não é suficientemente alienado para não perceber que o
governo, em verdade, está até a tampa de movimentações reprováveis, entretanto é
sabedor de que o jornalismo de maior projeção fez um trabalho seletivo, a ponto
de ignorar o que de positivo o governo executou e os vícios da oposição. Por
parte desta, da mídia e do golpista não há indignação contra a corrupção. O
problema, definitivamente, é o PT. E o golpista, de intelecto limitado, bate o
pé no chão, faz birrinha, chia. Tal como a criança que tira a bola do jogo
porque não foi escolhida por nenhum dos dois times e vai embora aos prantos
chorar as mágoas no colo da mamãe, o golpista faz escarcéu por Lula e Dilma...
e mais ninguém.
Ouvi e li que os professores de
História terão dificuldade de explicar, lá na frente, tudo o que está
acontecendo. Não terão. É tudo muito simples, claro e, por isso, deslavado, sem
qualquer pudor. De igual modo, é papel dos cursos de Jornalismo entender e detalhar
para os postulantes a profissionais da imprensa como se deu – ora oculto, ora
escancarado – o trabalho da mídia em dias de marcha à ré. A psiquiatria não
encontrará empecilhos para traduzir a esquizofrenia de se falar em Deus no
âmbito da polis, de se ter um criminoso como chefe do julgamento. A dramaturgia
não se furtará em esmiuçar a farsa. A ciência política saberá facilmente
detalhar as mancomunações de Temer e Aécio, a desfaçatez de Cunha, a
obsolescência de Bolsonaro e Feliciano, todos capitaneando, com vozes
impolutas, uma ação desavergonhada.
Quando alguém, a discordar de isso
tudo, perguntar-se “devo
seguir o enjoo?”, mesmo em tarefa árdua, a despeito de
ser feia, sem pétalas, sem cor, a flor é capaz de furar o asfalto, o tédio, o
nojo, o ódio. No chão duro e estéril, da improbabilidade de se ter vida, um
regalo de esperança que faz a roda não emperrar.
O nojo e a esperança de Drummond
A democracia está tombada. Mas ela sabe
se reinventar, é capaz de agregar personagens que fortalecem a causa e pode,
como é do seu feitio, resistir às aberrações que aqui e acolá tentam conduzir o
Brasil “ao que não tem decência, nem nunca terá; ao que não tem vergonha, nem
nunca terá”. Porque quando a roda-viva
chegar e carregar o destino, a viola e a saudade pra lá, haverá sempre alguém,
com viola na rua, a cantar: “a gente vai contra a corrente até não poder
resistir e quem inventou a tristeza terá de ter a fineza de desinventar”. E depois que tudo passar e que der a sensação de que a onda retrógrada triunfou, de que os democratas estão alijados, à margem da ciência sobre o que de fato acontece, os dados ainda estarão a rolar, porque o tempo, as coisas e as gentes estão aí, diligentes e engajados, em prontidão para redimir a história.