Os meandros do poder são
estratificados, razão pela qual a dinâmica é complexa, mas não impossível de se
entender. Uma velha conhecida nossa, a burocracia, torna o processo político
uma rotina cansativa, aproximando-nos do que se sucede aqui e ali. O caminho
com níveis intermináveis faz as decisões serem mais morosas, e na maior parte
das vezes é o povo, em sua porção mais pobre, que arca com os atrasos dos
resultados que deveriam ser mais prementes.
E é essa burocracia que dá
viabilidade à corrupção, porque demorado é chegar ao centro do ato, ao
mandante, ao maior dos contraventores. As paredes são tantas, que a justiça
alcança até certo ponto, e o ator principal da infração, a peça central do jogo
político, sai imune quase sempre. A própria formatação do sistema molda uma
redoma no alto escalão, e os mistérios só são desvendados na sua totalidade se
o procedimento vier de cima para baixo.
O caso do ex-presidente Lula é o
exemplo mais claro disso. Luiz Inácio desempenhou gestão produtiva, a mais bem
sucedida da era pós-ditadura: embora não tenha melhorado a qualidade
sensivelmente, expandiu o ensino superior, abrindo possibilidades para mais
pessoas cursarem a faculdade e se estabelecerem no mercado de trabalho. Enfim,
de modo geral, o petista elevou o nível sócio-econômico do brasileiro, botou
mais gente com condições dignas de vida. Quando eu tinha 9 ou 10 anos e
participava das excursões da escola para São Paulo, um local sempre visitado
era o aeroporto, tamanho o ineditismo daquele lugar para a maioria de nós, não
só pela baixa idade, mas porque simbolizava um luxo para pouquíssimos. Lula
democratizou o que só uma restrita elite consumia.
Mas o dito cujo, muito
provavelmente, não só sabia do mensalão, como foi articulador central. Por um
único motivo: nada acontece no PT sem passar por Lula. O ex-estadista é quase
um partido à parte, com força superior à sigla que ajudou a criar. Mas a
denúncia proposta pelo Procurador Geral da República só conseguiu chegar a José
Dirceu, então principal ministro do primeiro governo de Lula, ainda assim sem
provas concretas da participação do companheiro no crime. O antigo governante é
fruto e elemento da burocracia, aquela que impossibilita ou tarda o contato com
o mundo real, fazendo das peças humanas quase que objetos virtuais.
E é justamente por isso que o
governante precisa estar atento. A política é composta por níveis, que
distanciam muitas vezes o representante de tudo, seja da corrupção, em que só
os testas de ferro são pegos, seja das realidades que deve cumprir no local em que
governa. E essa condição de intocável, de blindado, pode fazê-lo refém dos
prazeres do cargo. O homem é vulnerável ao que a vaidade pede e a carne não
resiste.
Mesmo sem pensar que o povo pode
tirá-lo de lá ao fim do mandato, ou até antes, ao sentir-se na condição de
ocupante perene da posição à qual foi alçado, mete os pés pelas mãos. Rotineiramente,
passa a crer na sua esquizofrenia, no devaneio de achar-se proprietário daquilo
que, em suma, é momentâneo e nem dele é. E, para agarrar-se à própria ilusão,
começa a protagonizar desatinos, atitudes que contrariam as prerrogativas da
liberdade, porque se desespera ao imaginar-se sem a coroa.
E o político, seja ele quem for,
de onde for, há de saber que é natural este ou aquele discordar de algo e que
isso é parte desse jogo que dura quatro anos. Afinal, se todos são a favor, que
mérito há no trabalho? Por que impedir uma voz dissonante de falar, se o
apontamento indesejado pode conduzir melhoras adiante? Não há motivos para
abominar uma opinião discordante, pois cercear isso é contrapor o próprio viés
democrático que o elegeu, é fazer com que os demais enxerguem no governante uma
característica rechaçada. Bem aventurado o representante que tem o entendimento
dessas saliências, e as aceita.
A política, ou tudo aquilo que
nos conduz ao poder, à evidência, pode atiçar no homem as suas vocações mais
ocultas. Quanto mais o detentor de cargo político fugir das paredes que o
separam da sociedade e aproximar-se dela, dando à mesma a possibilidade de
refutar o que julga incorreto, aumentam as chances de ser agraciado pela
maioria, o requisito que dará ao político, de modo natural, a aprovação
ansiada. Sem intimidar o direito às manifestações, sem tomar decisões
extremadas, sem mostrar para a mesma maioria que a escolha feita nas urnas foi
errada.
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