Digamos que Amarildo de Souza, o “Boi” (como poucos, ele conseguia
carregar, nos ombros, dois sacos de cimento numa única corrida, fazendo jus ao
codinome), fosse traficante ou tivesse qualquer tipo de relação com o crime
organizado na Comunidade da Rocinha. Digamos que Amarildo não fosse o ajudante
de pedreiro que era, cujos contra-cheques comprovam a sua atuação como tal. Digamos
que, mesmo envolvido no poder paralelo da maior favela brasileira, Amarildo
preferia – só pra não chamar a atenção – morar numa casa de 18m² (provavelmente um espaço menor que a sala da sua casa), único cômodo,
sem rede de esgoto, com a esposa e seis filhos.
A despeito de todas essas hipóteses, que cada vez mais são
derrubadas, Amarildo não merecia o fim que teve. Ninguém merece. Não só porque o “Boi” era
inocente. É que não é digno, nem do pior bandido, morrer da forma que foi, pelas
mãos do Estado a desfechar o caso com tamanha frieza, como se ele, o Estado,
fosse um... criminoso, o mais desprezível entre todos. Porque, em sã
consciência, pouca gente é capaz de contradizer o óbvio: a PM do Rio, alocada
na UPP, um dia depois da operação “Paz Armada”, chefiada pelo Major Edson
Santos, torturou e executou “Boi”. É para isso que as investigações da polícia civil apontam.
Embora lamentável, não é uma prática pouco recorrente,
especialmente em regiões carentes. É o velho ranço da escravidão, que ainda
responde pela afinidade entre negritude e pobreza. Tal como naquela época, o
zelo pela vida do miserável quase inexiste. No fim, quem se importa com um
favelado morto? Razão pela qual, em situações como esta, cai em voga o
comentário: “e quem garante que ele não era bandido?”. Eis a pergunta
mesquinha, pois nem perto de justificar qualquer agressão, quanto mais a morte.
Para quem ainda não percebeu, o Brasil é um Estado Democrático de Direito, e,
diante de qualquer suspeita, o procedimento correto requer indícios, evidências, provas, além de
julgamento com ampla defesa do acusado e, se for o caso, prisão sem pena de
morte.
A ação, como já analisou este blogueiro (http://semcensor.blogspot.com.br/2013/08/o-povo-nas-ruas-pm-e-o-jn-conheceram.html),
está mais relacionada à PM e menos aos profissionais em si. Claro que há o policial
corrupto, como há em qualquer profissão. É bem verdade também que a diferença
entre um PM corrupto e, por exemplo, um advogado corrupto é enorme: o primeiro
trabalha armado, e uma ação sua indevida pode ceifar uma vida. Até por isso, é
justo que o fardado receba um salário melhor que o atual, condições mais
apropriadas de trabalho (armamentos e equipamento sofisticados), mais treinamentos. Enfim, é fundamental que a
corporação esteja escorada num sistema de inteligência que faça o PM se expor o
menos possível, seja para o bem ou para o mal.
Além disso, é necessário arrancar da polícia militar o DNA
que a acompanha desde a sua origem. Quando assume a posição de defender o poder
de quem o ameaça, ou seja, o povo, acaba por agir como no “caso Amarildo”. Para
a polícia, se o povo é uma ameaça que deve ser extirpada, imagine, então, a
porção pobre da massa. Amarildo é vítima dessa sistemática, que tem governos e
polícias no centro da discussão, porém sem cometer as atrocidades sozinhos: a
sociedade, que abre mão de ter esses acontecimentos como prioridade, é parte
culpada também.
O “Boi” foi vítima da PM aristocrata que temos, tão ultrapassada
quanto violenta, e da sociedade que negligencia questões desse tipo. O que
aconteceu a Amarildo – e a tantos outros pobres e pretos como ele – retrata
pouco ou muito um Brasil ainda enraizado no que de pior esse país já teve. A morte
desse ajudante de pedreiro, pai de seis filhos, não pode ser em vão. Porque ela
joga luz sobre uma PM que age feito aqueles que nos despertam os maiores medos. Se a
sociedade acha tudo isso normal, ela também tortura e mata um pobre da Rocinha.
Muito boa argumentação Thiago. O pior que essas raízes de preconceito parece que são muito difíceis de abandonarem a nossa sociedade. “E quem garante que ele não era bandido? Essa é sem sombra de dúvidas a pergunta mais imbecil que alguém pode fazer sobre o caso Amarildo. É a velha máxima do preto pobre que deve ser no máximo além disso um preto pobre bandido. Enquanto isso aplaudimos ações desesperadas de invasões em favelas que são reflexo do "desinvestimento" em educação/habitação/segurança pública, agora provam medidas desesperadas de tapar o sol com a peneira.
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