sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

SENSACIONALISMO: quem tira a foto sabe que alguém quer vê-la

Não vi as fotos, não sei se vieram acompanhadas de texto, tampouco a autoria. Independente disso, meus caros ex-alunos, não botem tal desserviço na conta do jornalismo. Se o autor é formado ou não, a atuação dele não foi condizente com as prerrogativas básicas da imprensa, não podendo, assim, ser definido como um profissional da área. No máximo, executou mal a função que lhe cabia.

Além do mais, essas coisas de ética não se ensinam em sala de aula. Estão contidas na atuação do profissional (e do antiprofissional) as experiências de toda uma vida. A formação do indivíduo como pessoa e a sua concepção de mundo estão em jogo, muito mais do que as aulas semanais da disciplina de Ética e Legislação que o sujeito teve ou deixou de ter ao longo de um mísero semestre da faculdade.

A foto de Kevin Carter rendeu-lhe o Prêmio Pullitzer.
Espetáculo ou informação?
Quando a imagem chocante, seja ela estática ou em movimento, não carrega consigo informação, a sua intenção é meramente a do espetáculo. Crânios desfigurados e corpos esquartejados não informam, só estarrecem. Nessas circunstâncias, o texto necessita dar conta dos requintes de crueldade, e olhe lá. Na maioria dos casos, o indicado é executar o mais simples: “Fulano, 40, médico, morador do centro de São Paulo, sofreu um acidente na rodovia Castelo Branco e não resistiu aos ferimentos, vindo a falecer no caminho para o hospital”.

Registrar imagens e publicá-las são atividades acessíveis a muitos hoje (especificamente a quem tem, no mínimo, um celular com câmera e um pacote de internet móvel). A isso se dá o nome de jornalismo cidadão – expressão que têm o meu total desprezo. Mas o trabalho jornalístico transcende a meras questões mórbidas e de tecnologia. Falamos aqui em apuração, clareza, verossimilhança, interesse público e os limites básicos que qualquer atuação profissional requer.

Já leu a excelente obra de Capote? Sensacionalismo?

Importante destacar que o sensacionalismo não se materializa apenas numa imagem grotesca marcada por destruição e sangue. O sensacionalismo está no discurso apelativo, piegas e mal feito, buscando artificialmente sensibilizar a massa. Está, também, na repetição constante de imagens, ainda que estas não contenham qualquer tipo de tragédia. Enfim, o sensacionalismo é o recurso dos menos capazes, usado quando todas as alternativas já foram implementadas ou quando as mesmas são desconhecidas, pois carece o seu autor do repertório técnico, teórico, ético, científico e filosófico da área. Talvez falte, de igual modo, um tiquinho de sentimento, zelo pela comoção alheia, o que convencionamos chamar de humanidade.

Isso à parte, é desanimador saber que muita gente em meio à sociedade se satisfaz com essas aberrações (lembram-se do efeito catártico?: o sujeito se impressiona com a cena, mas fica inconscientemente aliviado, pois a vítima não foi ele, e sim o outro). O sensacionalismo nada mais é do que a vertente utilitarista do jornalismo: ele faz um trabalho que podemos julgar imoral, mas visa tão somente a maximização da felicidade. Ou seja, se a maioria aprova a ação (e isso, no jornalismo, dá-se com audiência), não importa se ela – a ação – é ou não questionável. O utilitarismo tem como fundamento central o resultado, e não a intenção baseada em princípios racionais. Já o intencionalista age movido pelo pressuposto kantiano de deontologia. Isto é, dane-se o resultado, o objetivo final, os índices de audiência. A bandeira do deontólogo é realizar o dever por amor ao dever.

E a cobertura do sequestro da menina Eloá Pimentel?

Evitemos o processo de execração do autor das fotos e de sua veiculação. Ele irá arcar com o ônus do equívoco cometido e haverá a chance de se redimir na próxima iniciativa. Lembremos: o fato de alguém agir imoralmente não significa que ele seja igualmente abominável, a não ser que a prática passe a ser rotineira.

Por tudo isso, ao me perguntarem qual a utilidade das disciplinas teóricas num curso de jornalismo, ao me deparar com estudantes desprezando as matérias mais pesadas, eis aí uma boa resposta: Filosofia, Sociologia, Antropologia, Economia, Teorias da Comunicação e pastas afins têm como função abordar o campo da comunicação sob a sua dimensão mais crítica. A ideia de faculdade é justamente essa: a de proporcionar uma noção mais horizontal e ampla da realidade, permitindo que se contextualize o fato com os diversos campos de conhecimento. Por isso, os cursos técnicos, no âmbito das ciências humanas e sociais aplicadas, são insuficientes. Saber apertar botão, enquadrar imagem, postar-se diante da câmera, imprimir o tom de voz adequado, construir o lead não bastam para cumprir a tarefa de informar.

4 comentários:

  1. Parabéns pela lucidez do texto, redigido de modo hábil diante da premência com que a repercussão do fato, do desserviço da sua cobertura e depois da indignação dos leitores do mesmo avolumavam-se, tal qual um inevitável sinônimo do que essas redes sociais possui de mais nefasto: o da superexposição pusilânime do sentido de privacidade!

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    1. Law, agradeço o elogio. As novas tecnologias devem nos deixar mais atentos, pois o erro passa a ser mais tentador e iminente. Grande abraço, amigo!

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