Se o principal alicerce da economia capitalista é o trabalho, é justo que haja uma preocupação em protegê-lo, especialmente em tempos de crise. E se o trabalho pressupõe a relação entre empregador e empregado, há que se resguardar ambos em período de retração econômica. Assim, já que o emprego é o ponto convergente entre quem concede o campo de trabalho e quem o ocupa, vendendo a sua mão de obra em troca de remuneração, o papel do Estado, na conjuntura atual, é mitigar os danos às partes envolvidas, dando prioridade ao lado mais frágil: o empregado.
O que fez, então, o governo brasileiro? No último domingo (22), na calada da noite, expediu Medida Provisória, que soluciona parte do problema e cria um abacaxi enorme para o lado mais frágil, o do trabalhador. Isto é, na contramão do que fazem outras nações, como Estados Unidos, China e Alemanha, que mobilizam ações para preservar o emprego, e não só o empregador. Razão pela qual o governo foi alvo de questionamentos por parte de diversos segmentos da sociedade civil, em especial relativo ao Artigo 18 da MP 927, motivando um recuo do presidente Jair Bolsonaro. Entendamos por quê.
"Tira isso daí porque estou apanhando muito", disse Bolsonaro a Guedes [Fonte: www.exame.abril.com.br] |
Na prática, como se não bastassem os mais de 40 milhões de trabalhadores na informalidade, arremessados para fora da seguridade social, o governo fragiliza o empregado registrado. Preservar o emprego é condição importante para a retomada econômica posterior à Covid-19. Mas retirar do trabalhador, já em situação de vulnerabilidade, as condições elementares durante a crise cheira à maldade com requintes de crueldade. Trocando em miúdos, a MP da dupla Bolsonaro/Guedes, sob o ponto de vista econômico, é burra. No âmbito social, uma perversidade sem tamanho.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, classificou como "trapalhada", "um erro na redação". Não se deixe enganar: se a medida é dura aos mais pobres, há ali uma perversa pretensão. Vide o socorro do Banco Central (Bacen) aos bancos, um ato de generosidade escasseada à arraia miúda. O próprio presidente, dando sucessivas mostras de dificuldade de liderar a sua equipe e o país, primeiro recorreu ao velho recurso de desacreditar as narrativas contrárias, apontando uma alternativa que não estava expressa no texto da MP 927. Horas depois, recuou. Abaixo, a reprodução das duas postagens de Bolsonaro no Twitter, já na manhã de segunda-feira (23).
Retórica do presidente não guarda relação com o texto da MP. No Estado Democrático de Direito, vale o que está escrito, não o que governantes dizem. |
Quase quatro horas depois de defender a MP, Bolsonaro suspende o artigo mais agressivo à classe trabalhadora. |
Segundo a Medida Provisória, o Art. 18 previa a suspensão do contrato de trabalho por até quatro meses, extinguindo-se a remuneração. Em troca, o governo propunha que o empregador concedesse ao funcionário "curso ou programa de qualificação profissional não presencial" (caput). Em cenário de contaminação em massa, é provável que uma videoaula não seja exatamente o melhor remédio.
A MP é repleta de outras incongruências e regida por uma filosofia que, de forma acachapante, já se mostrou fraudulenta: "empregado e empregador poderão celebrar acordo individual" (Art. 2º). Se a relação entre ambos é assimétrica, a ideia de acordo mascara a letra fria do texto, consagrando o óbvio: em uma assimetria, não há acordos. Outras aberrações ainda contemplam [1] alteração em ritos em segurança e saúde no trabalho e no recolhimento do FGTS (Art. 3º) e [2] brecha para que empregado contaminado pelo coronavírus seja demitido (Art. 29). Essas distorções precisam ser corrigidas pelo congresso nacional.
Entre os erros do governo na condução do país durante a pandemia de coronavírus, o mais grave é preterir os pobres em nome de uma minoria que, sabidamente, apoia o presidente e o receituário neoliberal por razões óbvias. No DNA de Bolsonaro e de sua equipe de governo, há o gene da insensibilidade e de uma hedionda incapacidade de se colocar no lugar de quem sofre, não entendendo (ou se fazendo de bobo) que as benesses de pertencer a uma casta seleta é privilégio apenas da fina flor da canalha.
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