Foi-se o tempo em que as falas evasivas, as narrativas forjadas e flambadas na mentira despudorada e o alerta ao inimigo imaginário davam conta da sede de riso. O apelo ao ridículo, aos subterfúgios toscos e às frases de mau gosto - quando não ofensivas a mulheres, homossexuais e negros -, já desgastado, agrada bem menos que outrora. Venerar ideias tortas como terraplanismo, vilipendiar a educação, vomitar impropérios contra a cultura e desdenhar do meio ambiente só afagam a sanha dos fanáticos, que, por natureza, não têm a menor noção do que seja o processo político e a sua manifestação mais louvável, a democracia. Os cães raivosos ainda ladram, é verdade, mas vão minguando. O extremismo temperado no ódio tem prazo de validade curto: a conta começa a chegar. Não adianta espernear: quem tem credenciais de miliciano jamais será estadista.
A encalacrada em que nos metemos ainda viverá os seus dias mais tristes. Sim, o pior está por vir, e o ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, que despontava até ontem (17) como a fagulha de lucidez em meio a um bando de idiotas - cujo chefe dispensa apresentações -, já declinou. O único integrante do governo que valoriza a capacidade de pensar parece ter se rendido às frituras promovidas pelo "gabinete do ódio", um antro de disseminação de fake news que não perdoa os que fogem do script. A depender do presidente, criatura destemperada, despreparada e corrupta, o Brasil estará em maus lençóis. Façamos nós o trabalho que as lideranças se recusam a cumprir e evitemos enviesar a discussão: a Covid-19 não tem viés ideológico e acomete, indistintamente, liberais, conservadores e reacionários.
Não será fazendo arminha com as mãos, à base de conversa fiada ou com postura irresponsável, colocando em risco vidas alheias, que o Brasil irá superar o cenário preocupante imposto pelo coronavírus. Pode apostar: a bravata, o culto à ignorância e a retórica de "histerias" e "fantasias" não vão impedir que idosos sofram em demasia. As mortes já começam a surgir. É imperativo proteger as pessoas de idade. Rezar é ato bem-vindo aos que creem, mas, ante a gravidade da conjuntura, é preciso ir além.
Sem aptidão para manusear uma máscara, Bolsonaro escancara o seu despreparo durante coletiva de imprensa concedida hoje (18) [Fonte: Twitter] |
Sugiro dois movimentos: inteligência e empatia. Empatia para ter a consciência, mesmo sem a opressão da lei, de que é importante evitar aglomerações, pois ainda que não apresentando sintomas do vírus, é possível portá-lo e transmiti-lo a outras pessoas, aquelas dos grupos de risco (idosos, hipertensos, diabéticos, asmáticos). Empatia também para ter muito cuidado, mas não pânico: estocar alimento e outros produtos em excesso só vai deixar ainda mais vulneráveis as pessoas em condições socioeconômicas desfavoráveis. Se o problema é coletivo, atos de individualismo tendem a aprofundar a crise.
O outro vetor é inteligência. Inteligência para pensar táticas e propor investimentos que mobilizem o nosso aparato científico e tecnológico a dar respostas à propagação do vírus. Inteligência, igualmente, para articular as universidades públicas, centros de pesquisa e agentes de saúde em torno de um projeto que preze por ações concretas, não sem antes reconhecer que o panorama é grave, mas possível de ser revertido. Não se enfrenta e vence um desafio dessa amplitude fomentando idiotices e discursos desconectados do drama humano que vivenciamos. Em contextos como o atual, a incapacidade de liderar salta aos olhos, posto que se comportar como um sujeito caricato é dramaticamente insuficiente em tempos de fragilidades.
Outras crises dessa natureza vieram e foram superadas. China, país populoso e epicentro inicial do vírus, e Taiwan, nação vizinha e de tamanho menor, por exemplo, vão tendo êxito. Não à toa: investimento maciço em recursos que confrontam o problema em âmbito local, algo que só pode ocorrer se, a priori, houver um corpo de pessoas - do governo e da sociedade civil - que esteja disposto a refletir acerca das alternativas para virar o jogo, e agir. Mas é necessário que alguém dê a bandeirada indicativa de um caminho, função esta reservada ao principal representante da nação, em que pese o fato da cadeira da Presidência da República ser ocupada por um arremedo de gente.
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