A sensação que dominou o final de semana anterior e perdurou até a última terça-feira (24) era de que havia, em uníssono, uma mobilização no país para respeitar o "isolamento horizontal" (só os serviços essenciais funcionam). O governo brasileiro chegou a declarar "estado de calamidade pública" (ainda em vigência) e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, revelou que o Sistema Único de Saúde (SUS) poderia colapsar em abril e a curva de infecção do coronavírus só começaria a declinar em setembro. Como há muito tempo não se via, foi possível detectar um consenso entre os brasileiros. Durou pouco.
A mudança de rumo em parte da opinião pública veio após o pronunciamento, em cadeia nacional de rádio e TV, do presidente Jair Bolsonaro. A tônica da fala priorizou a economia em detrimento da saúde pública e, uma vez mais, minimizou a pandemia de Covid-19. De quebra, orientou a população a voltar à normalidade, com exceção dos idosos, fazendo coro a uma estratégia conhecida como "isolamento vertical" (apenas as pessoas do grupo de risco se isolam), comprovadamente mal sucedida.
Desde quarta-feira (25), portanto, vê-se uma fissura no país: de um lado, muita gente que aderiu à sinalização do presidente; e, de outro, uma multidão que compreende que o isolamento horizontal é a alternativa mais segura para evitar situações como as vividas por China e Itália. Reino Unido, Espanha e Estados Unidos, que haviam aderido ao isolamento vertical em nome da proteção à economia, já reveem seus posicionamentos. O ponto onde nos encontramos: enquanto o presidente brasileiro alimenta uma narrativa, o governo, oficialmente, preserva outra, algo que tem gerado uma série de incompreensões, em efeito cascata, nos estados e municípios.
Entendendo o movimento de Bolsonaro de contrariar o próprio governo
Já está bastante manjado que a arena que satisfaz o presidente é aquela em que o "circo pega fogo". Esse é o ambiente predileto de Bolsonaro, uma vez que nas tomadas de decisões, na ambiência em que se exige racionalidade e capacidade de pensamento, ele falha clamorosamente. Mais fácil, pois, fazer o que se viu na última terça-feira (24): tripudiar à base de uma narrativa irresponsável e que só desinforma a população, para adoçar os podres poderes que o conduziram à Presidência da República: com o rabo preso a uma parte do empresariado e aos megaempreendimentos religiosos, resta ao país a nulidade.
"Enquanto os homens exercem seus podres poderes/Morrer e matar de fome, de raiva e de sede/São tantas vezes gestos naturais", canta Caetano em "Podres poderes"
[Fonte: www.youtube.com]
Ao bolsonarismo não fica outra alternativa, a não ser criar as condições para o confronto. Foi assim que este movimento nasceu e não existe uma segunda forma de sobrevivência, se não for pela cisão. É na sociedade fraturada, recorrendo a todo momento à máxima do "nós contra eles", que a lógica comunicacional de Steve Bannon impera: criam-se dois lados - e não mais do que isso -, pois é o modo mais fácil de dominar um deles. Bingo! Os que vangloriam o presidente estão sob a sua tutela, anestesiados por um maniqueísmo puramente imaginário.
No Brasil, a operação desse esquema de comunicação cabe àquilo que se conhece pelo nome de "Gabinete do Ódio", de onde se disparam fake news, cujos objetivos são assassinar reputações dos que não dançam conforme a música e esgarçar cada vez mais a polarização. O sistema rigidamente articulado encontra seus tentáculos em grupos de WhatsApp e impulsionamentos de mensagens em redes sociais, como Facebook e Twitter. Eis o expediente que tem conflagrado o país, inclusive em tempos de pandemia, justamente a ocasião que pede união em vez de ruptura.
A razão da polarização passa pelo vetor da distopia. O território das redes sociais tem um mérito e um vício: a vantagem é que a produção de conteúdo descentralizou das mídias tradicionais, permitindo uma ampliação na circulação de mensagens por meio de múltiplas vozes. Por outro lado, a quantidade de informações desencontradas e que não condizem com a realidade também aumentou.
No Brasil, a operação desse esquema de comunicação cabe àquilo que se conhece pelo nome de "Gabinete do Ódio", de onde se disparam fake news, cujos objetivos são assassinar reputações dos que não dançam conforme a música e esgarçar cada vez mais a polarização. O sistema rigidamente articulado encontra seus tentáculos em grupos de WhatsApp e impulsionamentos de mensagens em redes sociais, como Facebook e Twitter. Eis o expediente que tem conflagrado o país, inclusive em tempos de pandemia, justamente a ocasião que pede união em vez de ruptura.
Circulou no Facebook, na última quarta-feira (25), esta comparação entre o surto de H1N1, durante o governo Lula, e Covid-19. Embora os números sejam fieis às respectivas realidades, o paralelo não procede por duas razões: 1] os mais de 58 mil casos de H1N1 foram registrados durante um ano e meio de contágio. O surto de coronavírus, pela data da mensagem, tinha menos de um mês; e 2] a letalidade da Covid-19 é superior à da Gripe Suína. [Fonte: Agência Lupa] |
Naturalmente, em um ambiente de informações conflitantes, cria-se uma confusão na mente do internauta, que, na realidade veloz da internet, desgarra-se da realidade e investe em um empreendimento calcado na fé: como não há tempo hábil para verificar o que é certo e errado, escolhe-se uma das vias, aquela que corrobora conceitos já sedimentados. O desenho da realidade deixa de ser um retrato fiel do que acontece no mundo da vida, passando a ser uma criação sustentada em dados e ocorrências falsas. Está criada a bolha, uma espécie de realidade paralela que põe em regozijo não o mundo como ele é, mas aquele que mais lhe apetece.
A charge de Flávio Luiz faz referência a uma cena do filme "O grande ditador", no qual Charles Chaplin interpreta Hitler [Fonte: www.quintacapa.com.br] |
[Fonte: www.quintacapa.com.br] |
Em tempos de democracia frágil, as tentações autoritárias alçam voos. E o pior: com a anuência de quem se beneficiaria de uma democracia fortalecida e consolidada: o povo. É incompatível com o arranjo democrático a adoração à personalidade, a veneração à figura política, seja ela de qualquer espectro ideológico.
Em democracia, é o político que afaga o seu povo, não o contrário. O movimento de catapultar representações políticas à categoria de "mito" é típico das tiranias, dos regimes totalitários, que veem no seu representante o refúgio de "salvador da pátria". Para infelicidade brasileira, a história tem um cardápio vasto de exemplos dessa natureza. Triste trajeto este que o Brasil perfaz.
Em democracia, é o político que afaga o seu povo, não o contrário. O movimento de catapultar representações políticas à categoria de "mito" é típico das tiranias, dos regimes totalitários, que veem no seu representante o refúgio de "salvador da pátria". Para infelicidade brasileira, a história tem um cardápio vasto de exemplos dessa natureza. Triste trajeto este que o Brasil perfaz.
[Fonte: www.quintacapa.com.br] |
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