A cultura é
uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo em que ela torna um grupo diferente do
resto, fazendo com que os outros o identifiquem por uma determinada
característica, pode encalacrar, numa longa convivência, os valores mais
perversos.
Tanto em uma
como em outra situação, o Brasil é país de casos diversos. Samba e futebol, por
exemplo, são elementos da nossa cultura. Sempre que se pergunta a um estrangeiro
sobre a terra brasilis, logo vêm à
mente a ginga, o batuque e a bola no pé. A prática de tudo isso é tão antiga e
marcante, que o costume passou a ser sinônimo do país. Cultura é, basicamente,
hábito praticado durante extenso período de tempo, tornando-se elemento
indissociável do meio.
Mas o traço
cultural, por sua vez, pode revelar a face mais deprimente de um povo. Para
ficar no exemplo do Brasil, a escravidão gerou um ranço que parece não se
desvincular da sociedade, ainda que todos nós, sem exceção, não tenhamos vivido
um momento sequer daqueles quase 400 anos. Oficialmente, o trabalho escravo
terminou em 1888, e não me parece haver, hoje, algum sobrevivente do período
que seja o responsável por alimentar o ódio.
O que
explica, então, os atos de racismo na atualidade? Sim, porque na última
quinta-feira, dia 28, foram dois casos divulgados pela imprensa: o da garota de 20 anos, negra, que postou foto com
o namorado branco em uma rede social, e recebeu
as ofensas mais abjetas. No mesmo dia, só que à noite, o goleiro do Santos, Aranha, foi ofendido por
alguns torcedores gremistas, na vitória
do Peixe sobre o Tricolor gaúcho por 2x0, em jogo válido pela Copa
Sul-americana. As imagens da TV mostraram uma torcedora xingando o
arqueiro de "macaco", enquanto outros gremistas imitavam o som do
bicho a cada vez que Aranha estava com a bola. Ao final do jogo, o juiz não
registrou em súmula o ocorrido. Na sexta, fez um adendo mencionando o fato –
não por convicção, mas pela comoção que o fato gerou. O Grêmio deve ser punido
com perdas de mando de campo, o que nem de perto resolve um problema que é
social, não esportivo.
Algumas
coisas, além da conduta em si, espantam nos dois casos. Primeiro, vemos ali
jovens protagonizando o preconceito, algo que sempre foi comum nas pessoas de
mais idade. Por tradição, o jovem é aquele que rompe com o contexto vigente na
busca por avanços, e não quem aprofunda os nossos atrasos mais evidentes. Temo
pela quantidade de adultos reacionários que teremos daqui a 20 ou 30 anos e o
que isso pode provocar na nossa democracia.
Segundo, as
imagens (de foto ou vídeo) são muito claras. Como existe a possibilidade de
identificar o criminoso, basta prendê-lo - sim, o combate ao racismo é previsto
em Constituição [Art. 3] e no Código Penal [Art. 149]. Em 2012, um anteprojeto
do novo Código Penal traçou o preconceito de raça como crime hediondo. A
proposta precisava passar pelo Congresso, só que as discussões emperraram. É
que a questão cultural - ou seja, do hábito, do costume, de ser algo normal - é
tão enraizada, que muita gente torce o nariz quando alguma coisa é feita.
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O Código Penal segue a mesma tendência |
Terceiro, esses são casos que ganharam repercussão na imprensa e passam a ser discutidos. E as ofensas veladas? E os acintes escancarados que não vêm para a ordem do dia? Não dá pra cravar se o preconceito tem aumentado ou não. O que dá pra afirmar é que ele está mais descarado que alguns anos atrás e deveria ser bem menor do que é. Não só por resgatar algo tão antigo e canalha da nossa história, mas também por ser incompatível com a formação da sociedade brasileira, que, por essência, é miscigenada, tendo o negro como uma das matrizes fundamentais.
Com tudo
isso, eu poderia propor um minuto de silêncio em consternação a essas
aberrações. Mas, não. É preferível gritar.
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