quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

CULTO À VIDA: o jogo duro contra o câncer

Como uma mulher de 23 anos e equipes de voluntários agem para evitar a metástase

[Foto: www.zoomnews.es]

“Eu sempre tive uma infância normal. Aos dez anos, fui ao hospital aqui em Getulina e o médico me encaminhou para Promissão. O começo foi a fase mais difícil. Logo em seguida à cirurgia, meu rosto inchou muito. Depois eu fui me acostumando aos remédios e exames. Como eu tinha pouca idade, a noção sobre a gravidade da doença era pequena”.

A lembrança de Suzana Maria Garcia, hoje com 23 anos, é de quando ela tinha apenas dez. A doença à que se refere é um câncer na tireoide. A benignidade do tumor foi constatada em fevereiro de 2002, quando o resultado da biopsia foi emitido pelo laboratório e lido pelo médico responsável.

Só que a saga da menina Suzana havia começado um ano antes: aos nove anos de idade, ao passar a mão no pescoço, sentiu o dedo encontrar um caroço. Naquele tempo, ela já tinha os cabelos lisos e pretos, a pele parda, os olhos de jabuticaba. Hoje, é possível perceber a timidez no jeito de olhar, na fala curta, calma e baixa e cicatrizes na região da garganta. A vaidade pagou preço alto. A sobrevivência, definitivamente, vale qualquer sacrifício.

O combate da pequena moça contra a doença começou com sessões de radioterapia e aplicações de injeção de iodo, já em 2002, no Hospital Amaral Carvalho [HAC], em Jaú, referência no centro-oeste paulista no tratamento do câncer. Justo ela, a caçula da prole de oito irmãos, passando por um dos testes mais ingratos da vida. Mas é como se o enfrentamento fosse uma vocação. E ela, claro, encarou.

Foram duas cirurgias: 2002 e 2005, para extrair caroços na região do pescoço. Era uma semana de recuperação no hospital, em que não se permite a ingestão de sólidos. Após esse período, aos poucos a alimentação foi sendo retomada. “No início, só pode consumir líquido. Depois de uma semana internada, voltei para casa. São mais 60 dias em recuperação”, recorda Suzana.

A cidade em que ela escolheu viver
Embora ela tenha nascido em Marília-SP e morado em Sabino-SP e Nova Andradina-MS, quando Suzana fala em “casa”, ela se refere a Getulina, município do interior paulista situado a 458 km da capital do Estado e que é apelidada por seus moradores e por quem a visita de “Cidade Sorriso”. Devido à população carcerária de mais de 1.600 detentos, Getulina ultrapassa a marca de 10 mil habitantes. Para ser mais exato, são 10.675 pessoas espalhadas por quase 679 km² de área, o que faz do território [área urbana + zona rural] o 101º maior de São Paulo, num total de 645 municípios, tudo segundo dados do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística].

A modesta Getulina, fundada como povoado em 1917 e emancipada 18 anos mais tarde, fica próxima ao entroncamento de duas rodovias importantes para o Estado e o país: a Marechal Rondon [SP-300], que liga, a leste, parte do interior à capital e, no sentido oposto, permite o deslocamento para Mato Grosso do Sul, entrando por Três Lagoas; além da Transbrasiliana [BR-153], estrada que nasce em Aceguá, na fronteira do Rio Grande com o Uruguai, e morre em Marabá, importante cidade paraense, e permite aos moradores daqui a chegada ao triângulo mineiro, Goiânia, Brasília e ao interior dos Estados do Sul.

Para se ter uma ideia mais exata da sua localização, em um raio de 120 km é possível chegar a São José do Rio Preto, Bauru, Marília, Araçatuba e Lins, as maiores cidades do seu entorno. É para esses lugares que os getulinenses vão quando querem comprar algo mais sofisticado ou precisam de um médico especialista ou quando querem uma diversão que ainda não tenha virado tédio. Por aqui não há semáforo, boates, shopping, prédio com mais de dois andares. Mas há botecos, gente feliz, receptiva e conversadeira, que não se constrange em especular a vida alheia ou dar “bom dia” a um desconhecido.

A cidade está cravada num buraco, razão pela qual se avistam as casas e, especialmente, a igreja católica – a maior – de longe. Outro sintoma da baixa altitude é o forte calor e a ausência de vento em algumas épocas do ano, especialmente no verão. É comum o forasteiro sentir repulsa do suor que vai brotando da pele e escorrendo pelo corpo. É justamente esse clima quente e o agronegócio que fazem Getulina estar envolta por campos verdejantes: a monocultura de cana-de-açúcar substituiu os pés de café de outrora, e agora é ela quem dá as cartas por aqui.

Aristides Mercês, para homenagear a esposa que se chamava Getúlia, deu ao novo povoado o nome de Getulina
[Foto: Thiago Cury Luiz]

A “Cidade Sorriso”, que já foi quatro vezes mais povoada durante o período áureo da economia cafeeira, guarda da época próspera só as ruas de paralelepípedo, cujas lajotas são milimetricamente quadradas, a arquitetura externa de algumas casas, com portões baixos, escada que dá acesso a uma pequena varanda, encimada por arcos, e portas e janelas de madeira. A rua principal [como os moradores se referem à Rua Dr. Carlos de Campos, em que se concentra boa parte dos estabelecimentos comerciais daqui] é mais uma herança de uma época que prometia muito, mas muito pouco se concretizou.

Apesar de pouco aquecido, o comércio getulinense costuma fazer doações ao Grupo
[Foto: Thiago Cury Luiz]

Inevitável também não falar da praça central, único lugar de encontro da moçada aos sábados à noite. Nela foi construído um dos primeiros prédios da cidade, a Igreja Matriz, católica, cartão postal do município. Como foi do feitio de muitas cidades do Brasil, calcado na tradição cristã, ao se fundar um município, construíam-se a sede do governo e o templo de orações. Getulina, claro, seguiu a cartilha.

A Igreja Matriz, católica, erguida na Praça 9 de Julho, marco central da cidade
[Foto: Thiago Cury Luiz]

Em Getulina, assim como Suzana, os voluntários não arredam o pé da luta
É bem no centro da cidade, nas cercanias da Igreja Matriz e da Praça 9 de Julho, que está o Grupo Getulinense de Combate ao Câncer, o refúgio inicial de Suzana ao descobrir a doença. Ela foi a primeira paciente encaminhada a Jaú e uma das primeiras assistidas pelos voluntários.

Fundado em 28 de janeiro de 2002, o Grupo presta atendimento a 69 pessoas de Getulina e Guaimbê, fornecendo remédios, exames, cestas e, se necessário, alguns objetos específicos, como sonda gástrica, próteses e bolsas de colostomia [em caso de cirurgia intestinal]. “O nosso trabalho vai além da doença. A nossa preocupação é dar assistência ao paciente enquanto o seu tratamento é feito”, conta Jucelen Penachio de Carvalho, uma das 39 voluntárias do Grupo.

A partir da relação com a população local, os voluntários dão assistência a pacientes e familiares.
É o que se chama de comunidade participativa.
[Foto: Thiago Cury Luiz]

Após um início difícil, com a equipe mal tendo um espaço adequado para atender os pacientes e planejar as atividades, hoje o Grupo está estabelecido em uma casa antiga alugada, daquelas que os cômodos dão na sala, o piso externo é de ladrilho pintado e o forro é amadeirado. É ali, na esquina da Praça com a Dom Pedro II, que os integrantes recebem doações e vendem produtos novos e usados doados pela comunidade ou produzidos pelos próprios voluntários e colaboradores. Além disso, uma vez por ano, são organizados eventos para arrecadar fundos, como o Pedágio, Bazar do Artesanato, Chá Beneficente, a Noite Italiana e a Barraca do Pastel.

Porém, como se trata de uma doença cujos custos são elevados, é necessário planejar outras formas de receitas. O Leilão de Gado, promovido todos os anos pela Igreja Matriz, viabiliza o cumprimento das metas. Porque a doença, além de judiar do corpo e do espírito, exige do bolso um preço com o qual muitos não conseguem arcar. Fora isso, outras instituições religiosas também contribuem doando vestuários. Supermercados, demais comerciantes e empresários da cidade oferecem contribuições em dinheiro.

“Cada vez que o paciente passa pelo procedimento quimioterápico, ele precisa fazer um exame de sangue. Pelo SUS [Sistema Único de Saúde] costuma levar um mês para sair o resultado. Em casos de doença, precisa demorar no máximo dois dias. Para agilizar o processo, nós custeamos esse exame, já que o paciente não pode esperar. Além disso, nós arcamos com exames de diagnóstico e biópsia”, explica Jucelen.

A despeito da medicação, exames, roupas e comida, os donativos também abrangem outros equipamentos e objetos, como colchões, andadores, muletas e bengalas. Para quem está limitado em virtude da doença ou da cirurgia, são providenciadas e emprestadas cadeiras específicas.

Nesse aspecto, outra conquista do Grupo ocorreu em 2013. Após a elaboração do Projeto Sobrevida Maior e Melhor, os voluntários entraram com pedido junto à Vara Judicial da Comarca de Getulina para receber os valores das penas aplicadas aos condenados. O edital público também contemplou outras entidades do município que se interessaram e se enquadraram nas exigências legais, como o Berçário Creche “Cel. Joaquim Barbosa de Moraes” e o Núcleo de Apoio à Criança e ao Adolescente de Getulina [Projeto de Educação Ambiental “Recicle-se”].

Com base na primeira versão do Projeto, foi possível adquirir duas cadeiras de rodas, duas cadeiras de banho, dois andadores e um suporte de alimentação e soro. Na segunda versão, os voluntários compraram quatro caldeirões de 50 litros, um fogão industrial, um liquidificador, dez jarras e 20 bandejas.

Mas para viabilizar o repasse judicial, os trâmites são rigorosos: foi preciso juntar documentação exigida pela Resolução nº 154⁄12 do Conselho Nacional de Justiça [CNJ] e pelo Provimento nº 01⁄13 da Corregedoria Geral de Justiça, além de obter parecer favorável do Ministério Público. Após a compra dos materiais, o Poder Judiciário exige uma prestação de contas, para certificar se o dinheiro solicitado e repassado foi investido devidamente.

Mas um grupo de combate ao câncer não se faz só de... combate ao câncer. O trabalho de assistência desenvolvido junto ao paciente é um dos pilares da entidade. É um trabalho de fundo que exige dedicação dos que se propuseram a ajudar e que, por isso, tem papel importante no dia a dia do paciente. É como se a maratona de tratamento necessitasse de um auxílio, que transcende a ingestão de medicamentos.

Jucelen, mulher a quem a média dos brasileiros precisa olhar para cima de tão alta e de fala cadenciada que adquiriu nos tempos de educadora e gestora de escola, cita como funciona essa atuação mais secundária, porém não sem relevância. “Nós doamos 21 cestas básicas [uma vez por mês] e 37 caixas contendo legumes, frutas e verduras [a cada 15 dias]. Cada uma delas é destinada para a família que tem um ente com câncer. No total, envolvendo cestas, frutas, verduras, exames e medicamentos, são 69 pessoas beneficiadas pelo trabalho do Grupo Getulinense de Combate ao Câncer”.

Se é nos braços da família e no conforto de um lar que o paciente encontra o seu maior refúgio, o Grupo também se incumbe de auxiliá-lo quando falta um teto a quem mais precisa: alguém sem casa e doente. “A nossa equipe já ajudou a construir casa para uma paciente. Ela era arrimo de família e, com a doença, não tinha condições financeiras para reformar a sua casa que estava em péssimo estado. Nós fizemos um mutirão para auxiliar a família nesse sentido”, lembra a voluntária.

Os dados do câncer no Brasil
O câncer se trata de um conjunto de mais de 100 doenças, cujo elemento comum é o crescimento desordenado de células que ocupam o espaço de tecidos e órgãos. Essa multiplicação celular dá origem aos tumores malignos, que têm uma alta probabilidade de se espalhar pelo corpo. Quando isso ocorre, atribui-se ao paciente o estágio mais avançado do câncer, que é a metástase. Os casos benignos dificilmente levam risco ao doente, pois não têm como característica se alastrar pelo organismo.

As causas do câncer podem ser internas, externas ou inter-relacionadas. As externas têm a ver com o ambiente em que se vive e hábitos ou costumes socioculturais. Já as internas são, majoritariamente, heranças genéticas, sendo já pré-determinado o modo como o corpo se defende das ações externas. São raros os tumores provocados, exclusivamente, por questões de hereditariedade.

Para se ter uma ideia, mais de 80% dos casos de câncer têm origem no meio ambiente, ou seja, os fatores de risco são provenientes de toda a realidade externa que nos cerca: rua, casa, trabalho e os produtos que consumimos e com os quais interagimos. Por exemplo, os pulmões expostos à fumaça do cigarro podem desenvolver câncer, bem como a pele colocada ao sol sem os devidos cuidados.

Dentre os fatores que podem trazer prejuízos à saúde estão o tabagismo, a radiação solar, o alcoolismo, fatores ocupacionais [especialmente os que afetam os trabalhadores que atuam em condições insalubres – forte exposição a produtos químicos e nocivos], hábitos alimentares [de acordo com a Organização Mundial da Saúde, é recomendado consumir cinco gramas de sal por dia – o equivalente a uma tampa de caneta cheia – e evitar o cozimento em altas temperaturas, como é o caso da fritura], hábitos sexuais [privilegiar relação higiênica e com preservativo] e medicamentos [clornafazina, melfalan, fenacetina, entre outros].

De forma geral, são definidos 23 tipos de câncer: anal, bexiga, boca, colorretal, colo do útero, esôfago, estômago, fígado, infantil, laringe, leucemia, linfoma de Hodgkin, linfoma não-Hodgkin, mama, ovário, pâncreas, pele melanoma, pele não melanoma, pênis, próstata, pulmão, testículo, tumores de Ewing. O tratamento de todas as modalidades de câncer, basicamente, varia entre quatro alternativas: cirurgia, radioterapia, quimioterapia e transplante de medula óssea. Em suma, as melhores formas de combater o câncer ainda são a prevenção e a detecção precoce.


Em agosto de 2013, o Jornal Nacional reproduziu uma série de reportagens sobre o câncer. 
Acima, a primeira das seis matérias veiculadas.
[Fonte: www.youtube.com]

Segundo dados do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva [INCA], no ano de 1979, quando os índices começaram a ser medidos, morreram 301.491 mulheres no Brasil, sendo que 25.376 foram vítimas de câncer [8,4% do total de óbitos]. Em 2012, último ano tabulado, o país apresentou 509.885 mortes de mulheres, das quais 86.040 perderam a vida por causa do câncer [16,8%]. Já do lado dos homens, 409.085 deles morreram em 1979, sendo que 30.794 entraram para as estatísticas de vítimas fatais do câncer [7,5%]. Há três anos, os dados registraram 670.743 mortes masculinas no país, sendo o câncer responsável por 98.033 dos falecimentos [14,6%].

Entre 1979 e 2012, o tipo de câncer que mais matou mulheres no país foi o de mama, com 257.617 mortes registradas. A anomalia nos brônquios e pulmões fez 140.651 vítimas. O câncer de estômago vitimou mais de 124 mil mulheres nesse intervalo de 34 anos. Entre os homens, no período de 1979 a 2012, o câncer de brônquios e pulmões foi o que mais interrompeu vidas: 311.039. A patologia no estômago vitimou mais de 240 mil homens no mesmo intervalo de tempo. Já a próstata é responsável por mais de 225 mil homens mortos nessas mais de três décadas.

Levando-se em conta o último ano de medição [2012], nota-se equilíbrio entre número de mortos por câncer nos brônquios e pulmões e próstata, os dois que mais interrompem vidas masculinas: 14.214 e 13.354, respectivamente. O dado denota que a preocupação com a próstata deve aumentar. Dentre os diversos fatores que contribuem para o crescimento desse tipo de câncer, o preconceito em fazer o exame preventivo, certamente, encabeça a lista. Nas mulheres, tendo como referência o ano de 2012, o câncer que mais matou foi o de mama, com 13.591 vítimas. A doença nos brônquios e pulmões vitimou mais de nove mil mulheres em 2012.

No fim de novembro de 2014, o INCA e o Ministério da Saúde divulgaram documento mensurando as estimativas para o ano que terminou há pouco, já que os dados concretos só sairão adiante. Para 2014, a tendência é que se registrem 576 mil novos casos, número que deve se repetir em 2015. O que mais preocupa pela maior incidência é o câncer de pele do tipo não melanoma [182 mil]. Em seguida, vêm os tumores de próstata [69 mil], mama feminina [57 mil], cólon e reto [33 mil], pulmão [27 mil], estômago [20 mil] e colo do útero [15 mil].

O câncer de tireoide, o mesmo de Suzana, é mais comum em mulheres. Para 2014, a probabilidade de incidência na mulher, em estimativa, é oito vezes mais do que em homens. Enquanto para cada 100 mil homens, surge apenas um novo caso, com as mulheres oito de cada 100 mil apresentam novas aparições desse tipo da doença. De todo modo, a ocorrência é baixa, fazendo com que o câncer de tireoide seja considerado raro, inclusive em níveis mundiais.

Para dar atendimento a todos os pacientes, o Ministério da Saúde investiu R$ 2,1 bilhões, em 2013, superando em 26% o montante de 2010. Em números previstos para 2014, essa quantia deve chegar a R$ 4,5 bilhões. Todo esse investimento está diluído nos 277 hospitais habilitados a realizar diagnóstico e tratamento do câncer no país.

*Todos os dados são encontrados no site oficial do INCA: www.inca.gov.br

As Ligas de Voluntários do Hospital Amaral Carvalho
Se hoje Suzana conta a sua história e o Grupo Getulinense de Combate ao Câncer atua com efetividade é porque uma estrutura bem maior e complexa foi projetada. Como o câncer envolve paciência e persistência, pois o tratamento normalmente é longo, é inevitável que a engrenagem para atender pacientes e familiares seja, igualmente, enorme. Aqui entra José Eduardo Nadalet.

José Eduardo trabalha há 36 anos no Hospital Amaral Carvalho de Jaú, uma das referências brasileiras no tratamento contra o câncer. Nos últimos 19 anos, dedica-se à Coordenação das Ligas de Combate ao Câncer, tudo vinculado ao Hospital. O trabalho dele não é coisa pouca: levantar e manter 105 núcleos espalhados pelos Estados de São Paulo [102: Jaú + 101 cidades], Mato Grosso do Sul [2: Bataguassu e Brasilândia] e Minas Gerais [1: Muzambinho]. Considerando todos os Grupos, são 4.500 voluntários que dão assistência a 25 mil pacientes. Evidentemente, o atendimento do Amaral Carvalho ultrapassou essa marca no último ano: 2.100 funcionários trataram de, aproximadamente, 90 mil pessoas. O fluxo diário chegou a dois mil pacientes.

O princípio dessa história toda, antes da constituição das Ligas, teve planejamento e muita gente prestativa. “Em 1993, algumas mulheres, esposas de médicos aqui de Jaú, resolveram criar a entidade Anna Marcelina, primeiro grupo de voluntários, para auxiliar as pessoas que estavam em tratamento no Hospital Amaral Carvalho, independente da cidade de origem. Vimos que foi muito interessante o trabalho das voluntárias, e resolvemos, então, em 1996, expandir essa atuação para as demais cidades que encaminham seus pacientes para Jaú. A diretoria me chamou e pediu para que eu montasse e treinasse essas voluntárias, formando a maior rede voluntária de combate ao câncer do Brasil”, recorda José Eduardo, com voz de locutor de rádio e empolgação de quem faz o que gosta há quase duas décadas.

A partir daí, a atuação dos mais de 100 núcleos, treinados e orientados pela base instalada no Amaral Carvalho, é padronizada e dividida em quatro frentes, que, se cumpridas, são capazes de assistir os pacientes com eficiência: 1] Medicamento. Se o Posto de Saúde oferece o remédio, a aquisição é gratuita. No entanto, acontecem casos em que é necessário comprar a medicação. É nessa hora que os Grupos de Voluntários atuam, comprando em uma farmácia o que o médico prescreveu; 2] Alimentação.  De acordo com a carência e o número de integrantes da família do paciente, os voluntários auxiliam com cestas básicas e complementares. Nos casos de câncer de boca, laringe ou língua, o processo de alimentação é específico, e o Grupo passa a prestar auxílio especial; 3] Social. Os voluntários também trabalham no fornecimento de colchões especiais, para casos em que o paciente precisa ficar muito tempo deitado; encaminhamento a consultas odontológicas; recolocação do convalescente no mercado de trabalho; e fornecimento de roupas, calçados, escovas de dente; 4] Visita Domiciliar. A ida dos voluntários às casas dos pacientes tem duas finalidades: a primeira é de ordem prática, se a casa precisa de uma reforma, da construção de banheiro, ou seja, se a residência carece de qualquer reparo; a segunda é de caráter mais subjetivo, oferecendo uma palavra de apoio ao paciente e à família.


Matéria veiculada no Tem Notícias, da TV Tem, afiliada da Rede Globo, em novembro de 2014, 
sobre o trabalho das Ligas de Voluntários do HAC
[Fonte: www.youtube.com]

Todo esse esquema, disseminado por várias cidades e que é complexo por se tratar de doença tão agressiva, é gerenciado pelo próprio José Eduardo: duas vezes ao ano, ele e sua equipe passam por todos os Núcleos. Além disso, há os cursos e palestras ministrados em Jaú ou nas cidades que possuem um Grupo constituído. Há também os Encontros Regionais e o Dia do Voluntário, momento em que todos os Núcleos se encontram em Jaú para confraternização. No mais, a Coordenação das Ligas produz um informativo e há o contato diário por telefone e e-mail.

A amplitude do trabalho e o sentido de utilidade fazem José Eduardo ter boas perspectivas. “Nós sabemos que, hoje, muitos pacientes de Getulina estão vivos graças à atuação dos voluntários, mas não dá para precisar esse número. É certo que quando a equipe ajuda com medicamento, alimentação, apoio e carinho, a condição do paciente mais carente se iguala à do rico. O que sabemos é que a qualidade de vida e as chances de cura aumentam”.

O panorama atual é positivo, mas nada que não possa ser melhorado e expandido. A meta é colocar os Núcleos em regiões de São Paulo que não têm centros de excelência no tratamento do câncer, cujos pacientes se descolam para se tratar em Jaú. “Além das 105 cidades, eu cheguei a ir a outras 23, mas o projeto não prosperou. São poucas as cidades que precisam ter uma Liga. A região norte do Estado tem três centros importantes: Ribeirão Preto, São José do Rio Preto e Barretos. Na região leste, têm Sorocaba, Campinas, Piracicaba, São Paulo e Santos. Quem vem pra cá é o pessoal das regiões central, oeste, noroeste e sul. Eu vou voltar às 23 cidades que não deram certo e tentar em mais 10 ou 15 municípios. O ideal seria algo em torno de 150 no total. Nós chegaríamos, com isso, perto de 40 mil pacientes atendidos pelas Ligas, quase a metade do que o Hospital Amaral Carvalho atende”, calcula José Eduardo.

O Hospital Amaral Carvalho recebe doações a partir de R$ 10.
Para tanto, os interessados devem fornecer dados cadastrais pelo site, e-mail ou telefone.
[Foto: www.blogdabah.com]

O Amaral Carvalho em números
A instituição que, hoje, é chamada de Amaral Carvalho, nasceu com o nome de Maternidade do Jahu. Domingos Pereira de Carvalho e Anna Marcelina doaram, em 1915, o terreno e uma quantia em dinheiro para a construção do empreendimento. No entanto, ele só foi inaugurado 21 anos mais tarde. O nome que vigora hoje passou a figurar em 1954, quando a Maternidade se tornou hospital geral.

         
Mais um pouco sobre as áreas de atuação do HAC
[Fonte: www.youtube.com]

Outro marco histórico foi o fato de ter se tornado, em 1970, o primeiro centro hospitalar do interior de São Paulo especializado no tratamento do câncer, algo que só se fazia com mais segurança na capital.

Como o Amaral Carvalho concentra inúmeras atividades, como maternidade, atendimento a pacientes com câncer, hemonúcleo regional, clínicas e cirurgia, em 1980 é criada a Fundação Amaral Carvalho, que concatena todos os campos de atuação.

Entre 2002 e 2010, o Hospital foi eleito pelos usuários do SUS (Sistema Único de Saúde), em três oportunidades, um dos dez melhores do país. Contribuiu muito para essa posição a realização, em 2004, do primeiro transplante de medula óssea com células-tronco de cordão umbilical no Brasil. Em 2013, a instituição chegou a dois mil transplantes de medula óssea.

O trabalho executado faz com que o Hospital atenda pacientes de 500 municípios do Estado de São Paulo, além de quase 600 do restante do país. Em 2013, foram mais de 74 mil pacientes atendidos e 983.408 procedimentos feitos. Quanto às especialidades, o Amaral Carvalho as divide em quatro: Cirúrgicas, Diagnósticos por imagem e laboratórios; Multidisciplinar; Oncologia Clínica. Cada uma delas apresenta diversas especificidades.

Outra característica do Hospital é a dedicação ao ensino e à pesquisa. Como a instituição trata de seis mil novos casos de câncer todos os anos, é necessário contar com equipe numerosa e de qualidade. Por isso, desde 1995 o Amaral Carvalho abre vagas para a Residência Médica mediante concurso público. No campo da ciência, há o Centro de Pesquisas Clínicas. Do ano 2000 até hoje foram concluídos 95 estudos.

A tecnologia em prol da humanização no tratamento de crianças com câncer
[Fonte: www.youtube.com]

*Todas as informações são encontradas no site oficial do Hospital Amaral Carvalho: www.amaralcarvalho.org.br

Suzana, os voluntários getulinenses e as Ligas formam uma ciranda
Entre 2007 e 2010, o INCA, órgão vinculado ao Ministério da Saúde, fez um levantamento junto ao Hospital Amaral Carvalho, e foi constatado que nas cidades onde há o apoio dos voluntários o índice de cura é 12,4% maior em relação a um município que não conta com esse tipo de atividade. E mais: de acordo com números calculados pelo Hospital, o índice de desistência do tratamento nas cidades que possuem um Núcleo de Combate é quase zero. Nos locais em que não há Grupos, mais de 10% dos pacientes abandonam os cuidados médicos. Esses números interferem em chances maiores ou menores de cura.

Jucelen se apega às probabilidades para continuar o trabalho como voluntária e incentivar a equipe no mesmo sentido. “A família deposita muita confiança na nossa equipe. Muitos chegam desesperados e encontram em nós um apoio. A gente vê que pode atender o paciente naquilo que ele precisa. O nosso acompanhamento é constante. Sempre ligamos para perguntar como o paciente está, se está fazendo o tratamento corretamente”.

Já Suzana continua resistindo. No meio disso tudo, além da luta contra o câncer, ela passou por transplantes das duas córneas por causa de uma doença degenerativa que a levaria à cegueira, retirou pedras da vesícula e teve uma gestação interrompida no 9º mês. Ao que parece, a menina que se deparou com um caroço no pescoço aos nove anos tem resistido bem às intermitências da vida. Resta a ela acompanhamento médico e remédios para controle, procedimento a ser feito durante toda a vida. Enquanto continua a subjugar o câncer, é tempo de ver Kêmelly, de 3 anos, e Francisco, de 2, crescerem, os dois frutos do seu matrimônio com Wilson que já dura dez anos.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

QUADRILHAS

Sarney apoia Dilma, que combateu a ditadura, que tinha em Sarney uma das figuras de maior destaque.
Maluf apoia Dilma, que foi torturada pelos militares, que estimavam Maluf.
Collor apoia o PT, que abomina a eleição de 89, vencida sujamente pelo alagoano.


Marina apoia Aécio, que flerta com o agronegócio, que Marina tanto odeia.
Malafaia e Feliciano apoiam Aécio, que é dum partido democrata, que despreza o fundamentalismo religioso.
Fidelix e Everaldo apoiam Aécio, que é da social-democracia, que não vê com bons olhos os reaças.

Luciana Genro não apoia ninguém. E como ninguém é politizado, todo mundo despreza Lulu, pra apoiar Dilma e Aécio.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

NÓS, OS PAULISTAS, SOMOS UMA CHOLDRA IGNÓBIL

Dos meus 30 anos, cinco deles vivi em Mato Grosso, divididos em dois períodos: o primeiro, de 2009 a 2012; o segundo, atual, desde maio. Ou seja, assim como muitos brasileiros, seja dentro do próprio país, seja em outras nações, sou um forasteiro.

Em nenhum momento, nessa meia década vivendo próximo ao Pantanal, alguém esboçou qualquer intenção de dizer “vá embora” ou “você não é daqui” ou “volte pro lugar de onde veio, seu paulista filho da puta”. Não. Nem perto disso. O que presenciei foi sempre a palavra carinhosa, a recepção calorosa, a alegria das pessoas daqui em compartilhar a terra em que nasceram ou escolheram viver. Tudo isso gerou em mim o respeito por essa gente, uma gratidão que pretendo levar até o último dia que meu corpo decidir respirar.

É triste saber que pessoas do meu estado fazem exatamente o oposto, especialmente com o nordestino. Justo com o migrante dos sertões, que saiu de casa a contragosto, viajou muito, pra tentar prosperar na cidade grande. Até a década de 90, era difícil viver no Nordeste brasileiro, especialmente nos rincões de lá. O nordestino pagou um preço alto por isso: além do preconceito, precisou habitar as favelas paulistanas, pois sempre fora um excluído.

Qual o problema do nordestino, em boa parte, votar no PT?
De repente o partido teve a capacidade de viabilizar benefícios à região.

E, justamente por isso, deixou de ser vítima para se transformar em vilão. O nordestino passou a ter culpa pela existência das favelas. As favelas passaram a ter culpa pelo aumento da criminalidade. As elites e a velha classe média? Lavaram as mãos. Ou melhor, agiram, exigindo sempre que a PM fizesse o serviço sujo de “limpar os desgraçados daqui”.

Conheço bem a elite paulista. Ela é herdeira dos bandeirantes e barões de café. Nas mãos dela há sangue do escravo açoitado, do índio caçado, do trabalhador mal tratado. Ela – e seus asseclas – se intitula “uma raça ariana”, acha viver no “maior estado da nação”, mas faz aquilo que lhe é típico: ofende quem foi peça fundamental no desenvolvimento de São Paulo, especialmente da capital. Sim, porque o nordestino labutou arduamente para fazer da metrópole a fortaleza que é hoje.

Atualmente, ocorre o caminho inverso. Muita gente do sul-sudeste sai de casa para tentar oportunidade nos locais em que a mão-de-obra qualificada ainda é escassa. Como eu, paulistas buscam no Centro-Oeste, Norte e Nordeste a chance de emprego que não veio em São Paulo. Não me parece haver nessas três regiões do Brasil a ojeriza pelo outro que se vê nos centros de maior poder econômico.

Historicamente, o paulista - e pessoas naturais de outros Estados do Sul-Sudeste - procurou espaço em outras regiões.
A tendência é que esse panorama se acentue ainda mais, desfazendo o mito de que só nordestino sai de casa.

O voto desqualificado não é exclusividade do nordestino. Você, paulista, também escolhe mal. Do contrário, não teria reeleito Geraldo Alckmin, ainda em 1º turno, pela terceira vez e nem optado por Russomano, Tiririca, Marco Feliciano, Maluf, Paulinho da Força, Andrés Sanchez, Orlando Silva e representantes da bancada da bala para o congresso nacional.

Continuarei em Mato Grosso, no que depender de mim, por um bom tempo. É pena – e crime – uma parcela do povo paulista não ter a generosidade do caboclo daqui.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

O GOVERNO DO PT NÃO É DITADOR

A imagem abaixo circulou aos montes nas redes sociais durante o 1º turno das eleições. Ela faz um paralelo entre Tancredo Neves, político de oposição à ditadura, e Aécio Neves, seu neto, que hoje concorre à presidência pelo PSDB.


A montagem seria ótima, não fosse uma mentira evidente: caso Aécio vença, ele não acabará com ditadura alguma, e por um motivo muito simples: não há ditadura no Brasil.

O que os tucanos fazem – até de forma histérica – é atribuir ao PT uma característica que não é dele. Porque as gestões de Lula e Dilma tiveram problemas - que podem até justificar uma derrota da atual presidenta -, mas usar de leviandade nessa altura do campeonato é um desserviço que a democracia dispensa.

Não há qualquer indício de autoritarismo petista: você vota. O simples fato de poder escolher seus representantes faz do regime atual algo oposto à ditadura.


Não há qualquer indício de autoritarismo petista: a imprensa é livre. Empresas jornalísticas usam e abusam da liberdade pra denunciar – muitas vezes sem provas – mal feitos do atual governo. Num regime de ditadura, a imprensa é censurada, algo que está bem longe de acontecer aqui. O governo fala, sim, na necessidade de um marco regulatório, justamente para democratizar a mídia. Os brutamontes da comunicação, claro, não curtem o papo.

Não há qualquer indício de autoritarismo petista: as pessoas se manifestam livremente. Vejo muitos baixarem o nível, xingarem a presidenta, se posicionarem publicamente nas redes sociais ou nas ruas contra o governo. O que acontece? Nada. Num regime ditatorial, não se admitem ofensas à autoridade máxima do país, e a polícia acaba por abafar qualquer manifestação contrária ao chefe do executivo. Algo muito próximo do que acontece, aí sim atualmente, num certo estado do Brasil governado há 20 anos pelo... PSDB. No caso de São Paulo, a PM defende o poder contra as revoltas populares. As manifestações do ano passado ilustraram bem isso.

O eleitorado tucano, particularmente de São Paulo, se julga mais politizado.
Traço marcante do reacionarismo é a intenção de tornar determinados grupos submissos.
Não há qualquer indício de autoritarismo petista: entre 64 e 85, as forças armadas perseguiam, prendiam, torturavam e executavam gente da oposição. Os chamados “subversivos”, como os milicos, cretinamente, se referiam a quem contestava politicamente o cenário da época, ação que é legítima no estado democrático de direito. E por quê? Porque a lei não atende a interesses de quem está no poder. Quem está lá é, como qualquer outro, submetido pelos parâmetros legais. A maior prova disso foi o mensalão. Gente do alto escalão do PT, partido que detém o poder há 12 anos, foi julgada e condenada. Em uma ditadura, os políticos que controlam o país estão isentos de cumprir a lei. Os militares deram aula nesse quesito. FHC, já na democracia, também mostrou como fazer cagada, sem ser importunado.

O mais engraçado disso tudo: boa parte dos que afirmam que o Brasil vive uma “ditadura petista” vê com bons olhos uma intervenção das forças armadas. Segundo eles, “para acabar com essa pouca vergonha que está aí instalada”. Esse pessoal se refere à ditadura militar como “um período que não era tão ruim assim”.

As opiniões contrárias são saudáveis. Os 12 anos de gestão petista têm falhas, especialmente o mandato de Dilma. Há, sim, argumentos para não escolher o PT. Mas uma colher a mais de coerência e uma pitada a menos de canalhice fariam um bem danado.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

ELITE E RALÉ: a força de Cuiabá está na rua, não no castelo

Hoje faz quatro meses que moro em Cuiabá. Saí do interior de São Paulo para fazer o que deixa meu espírito leve e o coração forte: lecionar. E, como sempre acontece, o lugar estranho desperta a nossa curiosidade pelas coisas que não nos são costumeiras. A capital de Mato Grosso é cheia disso: distinções e diversidade compõem o seu cenário cultural. Nesse ponto, chama a atenção – além do calor impiedoso – como Cuiabá consegue trafegar entre o simples e o luxo, especialmente quando o assunto é gastronomia.

Poucos dias após a minha chegada por essas bandas, fui conhecer a Praça da Mandioca, local muito bem recomendado por um casal de amigos. A praça fica no coração da cidade, típico lugar que serve de reduto ao povo. E ali, cravada perto da Prainha, de acesso por ruas estreitas – bem ao feitio daqui –, está ela com seus bares, gentes, enfeites e música.


Como não poderia ser diferente, naquela noite de sexta, de temperatura propícia para o ar livre, tocava samba. Entre uma cerveja e outra, um petisco e outro, as pessoas conversavam, sorriam e dançavam. Enfim, havia ali simplicidade e alegria, aquelas coisas próprias do brasileiro. Mas não do brasileiro made in algum lugar. Falo do tupiniquim nato, a mistura do índio com a negra, do negro com a branca, do branco com a índia.


Em contraponto, dias depois fui conhecer o outro lado da moeda. Propus-me a ir, agora sozinho, a um restaurante suntuoso, desses que têm comida boa pelo ‘olho da cara’. O local, de fato, era bem apresentável: decoração bonita, mesas lindamente postas, comidas que aumentam a fome pela forma que estão dispostas no prato. Pessoas bem vestidas, mulheres mais velhas curtidas na plástica. Pessoal de fala baixa e desanimadora, pois quase não se ouve risada. Na verdade, quase não se ouve...

Enfim, vive-se à base de convenções, e elas – as convenções – pragmatizam tudo. As relações se tornam artificiais, e a espontaneidade, marca da irreverência brasileira, some. Há protocolos pra pegar garfo e faca [de fora pra dentro, técnica que aprendi em Titanic]. O guardanapo de pano vai sobre a perna. Existe uma ordem no consumo desta e daquela comida. A pré-definição vira rotina. A criatividade, também tão nossa, cadê?

É provável que eu volte aos dois lugares outras vezes. Mas se me perguntarem qual prefiro, se a praça ou o luxo, fico com o samba.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

POR QUE EU NÃO SOU UM PESSIMISTA

Não votei em Lula em 2002, primeira eleição presidencial da qual fui eleitor, com 18 anos. Também não o escolhi em 2006. Na última, não optei por Dilma. Digo isto para não me acusarem de ser petista, pois deixarei claro ao longo e no fim deste texto não o meu partidarismo, mas simpatia em relação ao modo como o PT gere o país há quase 12 anos. Longe também de julgar o modelo perfeito, mas, convenhamos, o Brasil nunca viveu um momento tão bom em sua história como este que se iniciou em 2003. Vejamos por quê.

Na economia, por exemplo. É verdade que FHC, ainda na gestão de Itamar Franco [é impressionante como muita gente alija o mineiro desse processo de avanço do país], botou o Brasil nos trilhos. Com o Plano Real, a economia estabilizou-se e deixou de ter os índices diários de inflação das gestões de Sarney e Collor. Mas quem fez a locomotiva funcionar foi Lula. Com ele, o país manteve a inflação controlada e com um detalhe de extrema relevância: muita gente está consumindo. O país está movimentando dinheiro, e é muito mais complicado controlar a inflação nesse cenário. No período de FHC só uma pequena classe comprava. Os méritos de Lula – e Dilma manteve isso – são inegáveis nesse aspecto. O que a presidente precisa retomar é um crescimento mais significativo da nossa economia, o que seu antecessor soube fazer bem, e também trazer a inflação de volta ao centro da meta (3,5% ao ano).


No campo do emprego, algo que mantém relação direta com a economia, o PT triunfou. As cifras de desemprego são mantidas na faixa dos 6%, um número com o qual o Brasil jamais sonhou. Atrelado a isso, temos o aumento do salário mínimo que, a cada ano, valoriza mais, dando ao brasileiro – especialmente ao mais simples – um poder maior de compra, embora ainda abaixo do piso de outros países, como na Argentina, cujo mínimo é de R$ 1.169,00 (Ver mais em http://exame.abril.com.br/economia/noticias/valorizacao-do-salario-minimo-nao-resultou-em-desemprego?page=1 e http://exame.abril.com.br/economia/noticias/os-10-paises-com-os-maiores-salarios-minimos#12).


Outro avanço dos últimos 12 anos foi na educação. Eu não seria irresponsável de mencionar uma melhoria significativa no ensino público básico. É verdade que os índices de analfabetismo caíram, mas a incompreensão de um texto mínimo ainda é gritante, ao que chamamos de analfabetismo funcional. Outro ponto importante nessa questão: ensinos fundamental e médio, quando não são particulares, estão sob responsabilidade de Estados e municípios, e não do governo federal. Este define as Leis de Diretrizes e Bases e realiza os repasses, mas a operação cabe às cidades ou aos Estados. É do governador ou do prefeito que devemos exigir melhores condições de trabalho e estudo nos dois primeiros graus da nossa educação.

É mais que urgente atribuir a culpa aos responsáveis certos, talento que o brasileiro, nessa onda de pessimismo e terrorismo midiático, não tem praticado. O único nível da educação que é de responsabilidade direta do governo federal é o terceiro grau. Cá pra nós: o acesso às universidades e aos institutos públicos federais, antes sucateados e restritos a poucas pessoas, foi expandido. A infraestrutura melhorou, embora longe de ser a ideal; as cotas foram ampliadas, trazendo mais justiça étnica e social às universidades; o novo ENEM e a adesão das instituições federais são importantes na composição desse novo contexto; além dos programas de incentivos, como Prouni e FIES, existentes nas instituições particulares. Enfim, pessoas que só sonhavam com um curso superior, hoje têm a possibilidade do diploma, de uma profissão, de uma vida melhor.


Não há mal nisso. Não há problemas em ver pessoas migrando de níveis sócio-econômicos, comprando ar condicionado, instalando TV por assinatura, tirando o primeiro carro zero, saindo do aluguel para financiar a sua casa própria, fazendo viagens com a família, frequentando aeroportos, comprando celulares – justiça seja feita, esta uma conquista viabilizada por FHC quando privatizou as telecomunicações - só pra constar, fazer o mesmo com a Vale do Rio Doce foi um crime imperdoável. O que não dá para entender é ver a velha classe média, mais até do que as elites, torcendo o nariz para isso. Porque essa mesma classe média também melhorou de vida nos últimos 12 anos: quem tinha dois automóveis, hoje tem mais e melhores; quem tinha uma casa própria, hoje vive de aluguel; faz viagens mais longas, compra muito mais que d’antes. Mas, incompreensivelmente, não aceita que os emergentes passem a consumir os mesmos produtos e entretenimentos que ela, por simples vaidade e mesquinharia. Não que a vida dos mais abonados tenha piorado nos último 12 anos. Ao contrário. O problema é que eles não querem que a arraia miúda viva melhor. Qual o problema de termos mais gente prosperando?

Nesse sentido, o PT foi capaz de fazer aquilo que o PSDB luta para manter distante: igualdade social. Lula expandiu e criou projetos sociais. O Bolsa Família, que as elites e classes medianas antigas dizem ser esmola e programa de compra de votos, faz o que é responsabilidade de um governo que se preocupa com os mais pobres: dá expectativas melhores aos excluídos. Porque é fácil falar aberrações sobre programas sociais quando se têm todas as refeições do dia à mesa, quando a vida, por sorte e muito trabalho, foi benéfica a si. A maioria, a ampla maioria dos que recebem o auxílio, são pessoas dedicadas, que por motivos diversos não conseguiram deslanchar. À medida que conseguem isso – e os programas assistencialistas são fundamentais nesse processo –, os beneficiados vão abrindo mão do que recebem do governo. (Para saber mais sobre o assunto, acessar http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2014/01/familias-melhoram-de-vida-e-abrem-mao-do-bolsa-familia-no-interior-do-pi.html, http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/05/169-milhao-de-familias-abrem-mao-do-bolsa-familia/ e http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2013/10/13/interna_politica,393094/quase-2-milhoes-de-familias-aumentaram-renda-e-abriram-mao-do-bolsa-familia.shtml).

Com tudo isso, estranhamente, o que tem marcado a cobertura da grande mídia [Globo, Folha e Veja] nesse período eleitoral é o pessimismo atrelado a uma corrente contrária ao PT. E a velha classe média, que é grande e consome todas essas mídias, compra a ideia. Pra situarmos melhor essa tal classe média tradicional, é ela que habita aos montes as redes sociais, especialmente o Facebook, divulgando opiniões contrárias ao PT e a Dilma, na maioria das vezes infundadas. Não há uma oposição em massa ao PT por convicção. O que há é uma corrente desordenada, que julga a Petrobrás ser um total fracasso por causa da compra da usina de Passadena. Vamos com calma... É verdade que não queremos que o país faça maus negócios, mas o mercado é dinâmico, muda a todo momento. O mesmo pode acontecer com qualquer um de nós: podemos comprar uma casa por um preço elevado hoje e, amanhã, ocorrer uma crise no setor imobiliário que fará com que os preços caiam. No fim, você terá cometido um péssimo negócio, mas não por má fé. Simplesmente o mercado o traiu. Com a Petrobrás, até que se prove o contrário, ocorreu o mesmo. É bom que se diga: a Petrobrás deixou de ser uma empresa de fundo de quintal, sucateada pela gestão FHC, para se tornar uma potência no campo da produção de energia. A propósito, a descoberta e exploração do pré-sal não deixam muita dúvida sobre isso.

Curiosamente, o fracasso de Alckmin, em São Paulo, no que tange à distribuição de água, aos escândalos envolvendo o PSDB na questão do metrô e aos problemas na maior universidade do país, a USP, não ganhou a mesma postura da mídia, nem da classe média mais reacionária do Brasil: os paulistas preferem resignar-se e culpar a escassez de chuvas pela deficiência no fornecimento de água. Alckmin demite funcionários do metrô, que exercem o seu direito à greve? Palmas pro governador! A Universidade de São Paulo vai mal das pernas? Privatização na USP! Alckmin já teve três mandatos como chefe maior do Estado mais rico e importante do Brasil, sendo dois deles por meio de eleições. Tem grandes chances de conquistar mais um quadriênio. E é impressionante como São Paulo não enxerga que Geraldo é a própria materialização do fracasso.

O defeito mais estrondoso do PT é fazer uma política de coalizão ampla, abraçando inúmeros partidos que, em essência, possuem ideologias e origens completamente opostas às do Partido dos Trabalhadores. Aliar-se a muita gente é o ovo da serpente da corrupção. A reforma política clama por uma alteração nessas alianças, sujas na maior parte das vezes. Com o PSDB de Fernando Henrique foi assim. Com o PT de Lula e Dilma, do mesmo modo. Os mensalões dos dois partidos foram resultado de uma coalizão quilométrica e da utilização da política como um grande negócio. O PT não é mais corrupto que os demais partidos. O PSDB está longe de pairar sobre o bem e o mal. Cabe a nós, eleitores e cidadãos, o questionamento às corrupções de todos os lados.

Nesse sentido, é bom que lembremos: os corruptos do PT estão na cadeia. Integrantes do mais alto escalão do partido que governa o país há quase 12 anos foram julgados e condenados por crimes que cometeram. Com os tucanos, não aconteceu isso, e não vejo clamores para que o mesmo ocorra. Sobre o caso específico de José Dirceu, membro importante do PT, ele foi julgado e condenado sem provas, embora você possa achar – assim como eu acho – que ele e Lula encabeçaram o esquema todo. Mas nesses assuntos de Justiça não há achismos. Há o que se prova, e a prisão de Dirceu foi autoritária, avalizada por Joaquim Barbosa, o ex-ministro que o Brasil aprendeu a amar sem o menor senso crítico.

No que tange à Copa, assunto em voga no Brasil até pouco tempo, é importante ter prudência antes de jogar todos os atrasos das obras na conta da presidente. O VLT em Cuiabá e Fortaleza não ficaram prontos? Conteste o governo do Estado. A culpa do PT nessa história de mundial foi ter feito política no momento de definir as sedes. Foi um exagero escolher 12. Com oito, faríamos uma ótima Copa. Seriam quatro dores de cabeça a menos. Mas Lula quis agradar os aliados. Voltamos ao problema da extensa coalizão, germe das corrupções mais gigantescas.


Outro pecado do atual governo em relação à Copa foi a aceitação quase que integral das exigências da FIFA. Quem teve acesso à Lei Geral da Copa percebeu que a entidade organizadora do mundial (é sempre bom lembrar, a FIFA não é dona do futebol, que está muito acima dela. A entidade só promove eventos) subverteu leis nacionais em prol de seus interesses. De todas as aberrações, a mais lamentável foram as remoções. Famílias inteiras, que tinham suas casas há anos em determinadas comunidades, foram forçadas a abandonarem seus lares para que as obras dos megaeventos (Copa e Olimpíadas) pudessem botar abaixo o que eles julgam velho e impertinente. Além do pouco diálogo e da truculência policial, vimos materializar o pior tipo de violência: aquela cometida pelo Estado contra o seu próprio povo. Fora os desvios de verba e os atrasos em obras importantes, eis a nossa vergonha maior por ter sediado este mundial. A “Copa das Copas” não foi a nossa. Foi a da Alemanha, em 2006.

Não sei se votarei em Dilma nas eleições de outubro. A certeza que tenho é a de que o país avançou, e a vitória de Aécio representaria o retrocesso de todas as conquistas, principalmente na área social. Marina fez uma campanha e tanto em 2010, apareceu como uma alternativa de destaque, mas tem metido os pés pelas mãos, também no intuito de agradar geral. Aí começa a passar por cima das próprias convicções. E alguém sem convicção, ainda mais um político, é alguém nulo, sem cara.


Nunca fui aquele patriota pachecão, que defende o Brasil só por ser brasileiro. Sempre procurei olhar o país por um viés crítico, entendendo que assim é a melhor forma de melhorar o lugar em que vivo. E o local onde nasci e pretendo morrer tem melhorado, o que não significa que não possa avançar ainda mais, seja com o PT ou com um partido que tenha isso como propósito. Nesse sentido, a função dos políticos é gerir com zelo os bens públicos. A nossa obrigação é politizar-nos, fazer as escolhas corretas e cobrar esse ou aquele representante de maneira devida.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

#somostodosmacacos?

A cultura é uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo em que ela torna um grupo diferente do resto, fazendo com que os outros o identifiquem por uma determinada característica, pode encalacrar, numa longa convivência, os valores mais perversos.

Tanto em uma como em outra situação, o Brasil é país de casos diversos. Samba e futebol, por exemplo, são elementos da nossa cultura. Sempre que se pergunta a um estrangeiro sobre a terra brasilis, logo vêm à mente a ginga, o batuque e a bola no pé. A prática de tudo isso é tão antiga e marcante, que o costume passou a ser sinônimo do país. Cultura é, basicamente, hábito praticado durante extenso período de tempo, tornando-se elemento indissociável do meio.


Mas o traço cultural, por sua vez, pode revelar a face mais deprimente de um povo. Para ficar no exemplo do Brasil, a escravidão gerou um ranço que parece não se desvincular da sociedade, ainda que todos nós, sem exceção, não tenhamos vivido um momento sequer daqueles quase 400 anos. Oficialmente, o trabalho escravo terminou em 1888, e não me parece haver, hoje, algum sobrevivente do período que seja o responsável por alimentar o ódio.


O que explica, então, os atos de racismo na atualidade? Sim, porque na última quinta-feira, dia 28, foram dois casos divulgados pela imprensa: o da garota de 20 anos, negra, que postou foto com o namorado branco em uma rede social, e recebeu as ofensas mais abjetas. No mesmo dia, só que à noite, o goleiro do Santos, Aranha, foi ofendido por alguns torcedores gremistas, na vitória do Peixe sobre o Tricolor gaúcho por 2x0, em jogo válido pela Copa Sul-americana. As imagens da TV mostraram uma torcedora xingando o arqueiro de "macaco", enquanto outros gremistas imitavam o som do bicho a cada vez que Aranha estava com a bola. Ao final do jogo, o juiz não registrou em súmula o ocorrido. Na sexta, fez um adendo mencionando o fato – não por convicção, mas pela comoção que o fato gerou. O Grêmio deve ser punido com perdas de mando de campo, o que nem de perto resolve um problema que é social, não esportivo.

Algumas coisas, além da conduta em si, espantam nos dois casos. Primeiro, vemos ali jovens protagonizando o preconceito, algo que sempre foi comum nas pessoas de mais idade. Por tradição, o jovem é aquele que rompe com o contexto vigente na busca por avanços, e não quem aprofunda os nossos atrasos mais evidentes. Temo pela quantidade de adultos reacionários que teremos daqui a 20 ou 30 anos e o que isso pode provocar na nossa democracia.

Segundo, as imagens (de foto ou vídeo) são muito claras. Como existe a possibilidade de identificar o criminoso, basta prendê-lo - sim, o combate ao racismo é previsto em Constituição [Art. 3] e no Código Penal [Art. 149]. Em 2012, um anteprojeto do novo Código Penal traçou o preconceito de raça como crime hediondo. A proposta precisava passar pelo Congresso, só que as discussões emperraram. É que a questão cultural - ou seja, do hábito, do costume, de ser algo normal - é tão enraizada, que muita gente torce o nariz quando alguma coisa é feita.

Trecho da Constituição que prevê o combate ao racismo







O Código Penal segue a mesma tendência











Terceiro, esses são casos que ganharam repercussão na imprensa e passam a ser discutidos. E as ofensas veladas? E os acintes escancarados que não vêm para a ordem do dia? Não dá pra cravar se o preconceito tem aumentado ou não. O que dá pra afirmar é que ele está mais descarado que alguns anos atrás e deveria ser bem menor do que é. Não só por resgatar algo tão antigo e canalha da nossa história, mas também por ser incompatível com a formação da sociedade brasileira, que, por essência, é miscigenada, tendo o negro como uma das matrizes fundamentais.

Com tudo isso, eu poderia propor um minuto de silêncio em consternação a essas aberrações. Mas, não. É preferível gritar.