terça-feira, 7 de outubro de 2014

O GOVERNO DO PT NÃO É DITADOR

A imagem abaixo circulou aos montes nas redes sociais durante o 1º turno das eleições. Ela faz um paralelo entre Tancredo Neves, político de oposição à ditadura, e Aécio Neves, seu neto, que hoje concorre à presidência pelo PSDB.


A montagem seria ótima, não fosse uma mentira evidente: caso Aécio vença, ele não acabará com ditadura alguma, e por um motivo muito simples: não há ditadura no Brasil.

O que os tucanos fazem – até de forma histérica – é atribuir ao PT uma característica que não é dele. Porque as gestões de Lula e Dilma tiveram problemas - que podem até justificar uma derrota da atual presidenta -, mas usar de leviandade nessa altura do campeonato é um desserviço que a democracia dispensa.

Não há qualquer indício de autoritarismo petista: você vota. O simples fato de poder escolher seus representantes faz do regime atual algo oposto à ditadura.


Não há qualquer indício de autoritarismo petista: a imprensa é livre. Empresas jornalísticas usam e abusam da liberdade pra denunciar – muitas vezes sem provas – mal feitos do atual governo. Num regime de ditadura, a imprensa é censurada, algo que está bem longe de acontecer aqui. O governo fala, sim, na necessidade de um marco regulatório, justamente para democratizar a mídia. Os brutamontes da comunicação, claro, não curtem o papo.

Não há qualquer indício de autoritarismo petista: as pessoas se manifestam livremente. Vejo muitos baixarem o nível, xingarem a presidenta, se posicionarem publicamente nas redes sociais ou nas ruas contra o governo. O que acontece? Nada. Num regime ditatorial, não se admitem ofensas à autoridade máxima do país, e a polícia acaba por abafar qualquer manifestação contrária ao chefe do executivo. Algo muito próximo do que acontece, aí sim atualmente, num certo estado do Brasil governado há 20 anos pelo... PSDB. No caso de São Paulo, a PM defende o poder contra as revoltas populares. As manifestações do ano passado ilustraram bem isso.

O eleitorado tucano, particularmente de São Paulo, se julga mais politizado.
Traço marcante do reacionarismo é a intenção de tornar determinados grupos submissos.
Não há qualquer indício de autoritarismo petista: entre 64 e 85, as forças armadas perseguiam, prendiam, torturavam e executavam gente da oposição. Os chamados “subversivos”, como os milicos, cretinamente, se referiam a quem contestava politicamente o cenário da época, ação que é legítima no estado democrático de direito. E por quê? Porque a lei não atende a interesses de quem está no poder. Quem está lá é, como qualquer outro, submetido pelos parâmetros legais. A maior prova disso foi o mensalão. Gente do alto escalão do PT, partido que detém o poder há 12 anos, foi julgada e condenada. Em uma ditadura, os políticos que controlam o país estão isentos de cumprir a lei. Os militares deram aula nesse quesito. FHC, já na democracia, também mostrou como fazer cagada, sem ser importunado.

O mais engraçado disso tudo: boa parte dos que afirmam que o Brasil vive uma “ditadura petista” vê com bons olhos uma intervenção das forças armadas. Segundo eles, “para acabar com essa pouca vergonha que está aí instalada”. Esse pessoal se refere à ditadura militar como “um período que não era tão ruim assim”.

As opiniões contrárias são saudáveis. Os 12 anos de gestão petista têm falhas, especialmente o mandato de Dilma. Há, sim, argumentos para não escolher o PT. Mas uma colher a mais de coerência e uma pitada a menos de canalhice fariam um bem danado.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

ELITE E RALÉ: a força de Cuiabá está na rua, não no castelo

Hoje faz quatro meses que moro em Cuiabá. Saí do interior de São Paulo para fazer o que deixa meu espírito leve e o coração forte: lecionar. E, como sempre acontece, o lugar estranho desperta a nossa curiosidade pelas coisas que não nos são costumeiras. A capital de Mato Grosso é cheia disso: distinções e diversidade compõem o seu cenário cultural. Nesse ponto, chama a atenção – além do calor impiedoso – como Cuiabá consegue trafegar entre o simples e o luxo, especialmente quando o assunto é gastronomia.

Poucos dias após a minha chegada por essas bandas, fui conhecer a Praça da Mandioca, local muito bem recomendado por um casal de amigos. A praça fica no coração da cidade, típico lugar que serve de reduto ao povo. E ali, cravada perto da Prainha, de acesso por ruas estreitas – bem ao feitio daqui –, está ela com seus bares, gentes, enfeites e música.


Como não poderia ser diferente, naquela noite de sexta, de temperatura propícia para o ar livre, tocava samba. Entre uma cerveja e outra, um petisco e outro, as pessoas conversavam, sorriam e dançavam. Enfim, havia ali simplicidade e alegria, aquelas coisas próprias do brasileiro. Mas não do brasileiro made in algum lugar. Falo do tupiniquim nato, a mistura do índio com a negra, do negro com a branca, do branco com a índia.


Em contraponto, dias depois fui conhecer o outro lado da moeda. Propus-me a ir, agora sozinho, a um restaurante suntuoso, desses que têm comida boa pelo ‘olho da cara’. O local, de fato, era bem apresentável: decoração bonita, mesas lindamente postas, comidas que aumentam a fome pela forma que estão dispostas no prato. Pessoas bem vestidas, mulheres mais velhas curtidas na plástica. Pessoal de fala baixa e desanimadora, pois quase não se ouve risada. Na verdade, quase não se ouve...

Enfim, vive-se à base de convenções, e elas – as convenções – pragmatizam tudo. As relações se tornam artificiais, e a espontaneidade, marca da irreverência brasileira, some. Há protocolos pra pegar garfo e faca [de fora pra dentro, técnica que aprendi em Titanic]. O guardanapo de pano vai sobre a perna. Existe uma ordem no consumo desta e daquela comida. A pré-definição vira rotina. A criatividade, também tão nossa, cadê?

É provável que eu volte aos dois lugares outras vezes. Mas se me perguntarem qual prefiro, se a praça ou o luxo, fico com o samba.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

POR QUE EU NÃO SOU UM PESSIMISTA

Não votei em Lula em 2002, primeira eleição presidencial da qual fui eleitor, com 18 anos. Também não o escolhi em 2006. Na última, não optei por Dilma. Digo isto para não me acusarem de ser petista, pois deixarei claro ao longo e no fim deste texto não o meu partidarismo, mas simpatia em relação ao modo como o PT gere o país há quase 12 anos. Longe também de julgar o modelo perfeito, mas, convenhamos, o Brasil nunca viveu um momento tão bom em sua história como este que se iniciou em 2003. Vejamos por quê.

Na economia, por exemplo. É verdade que FHC, ainda na gestão de Itamar Franco [é impressionante como muita gente alija o mineiro desse processo de avanço do país], botou o Brasil nos trilhos. Com o Plano Real, a economia estabilizou-se e deixou de ter os índices diários de inflação das gestões de Sarney e Collor. Mas quem fez a locomotiva funcionar foi Lula. Com ele, o país manteve a inflação controlada e com um detalhe de extrema relevância: muita gente está consumindo. O país está movimentando dinheiro, e é muito mais complicado controlar a inflação nesse cenário. No período de FHC só uma pequena classe comprava. Os méritos de Lula – e Dilma manteve isso – são inegáveis nesse aspecto. O que a presidente precisa retomar é um crescimento mais significativo da nossa economia, o que seu antecessor soube fazer bem, e também trazer a inflação de volta ao centro da meta (3,5% ao ano).


No campo do emprego, algo que mantém relação direta com a economia, o PT triunfou. As cifras de desemprego são mantidas na faixa dos 6%, um número com o qual o Brasil jamais sonhou. Atrelado a isso, temos o aumento do salário mínimo que, a cada ano, valoriza mais, dando ao brasileiro – especialmente ao mais simples – um poder maior de compra, embora ainda abaixo do piso de outros países, como na Argentina, cujo mínimo é de R$ 1.169,00 (Ver mais em http://exame.abril.com.br/economia/noticias/valorizacao-do-salario-minimo-nao-resultou-em-desemprego?page=1 e http://exame.abril.com.br/economia/noticias/os-10-paises-com-os-maiores-salarios-minimos#12).


Outro avanço dos últimos 12 anos foi na educação. Eu não seria irresponsável de mencionar uma melhoria significativa no ensino público básico. É verdade que os índices de analfabetismo caíram, mas a incompreensão de um texto mínimo ainda é gritante, ao que chamamos de analfabetismo funcional. Outro ponto importante nessa questão: ensinos fundamental e médio, quando não são particulares, estão sob responsabilidade de Estados e municípios, e não do governo federal. Este define as Leis de Diretrizes e Bases e realiza os repasses, mas a operação cabe às cidades ou aos Estados. É do governador ou do prefeito que devemos exigir melhores condições de trabalho e estudo nos dois primeiros graus da nossa educação.

É mais que urgente atribuir a culpa aos responsáveis certos, talento que o brasileiro, nessa onda de pessimismo e terrorismo midiático, não tem praticado. O único nível da educação que é de responsabilidade direta do governo federal é o terceiro grau. Cá pra nós: o acesso às universidades e aos institutos públicos federais, antes sucateados e restritos a poucas pessoas, foi expandido. A infraestrutura melhorou, embora longe de ser a ideal; as cotas foram ampliadas, trazendo mais justiça étnica e social às universidades; o novo ENEM e a adesão das instituições federais são importantes na composição desse novo contexto; além dos programas de incentivos, como Prouni e FIES, existentes nas instituições particulares. Enfim, pessoas que só sonhavam com um curso superior, hoje têm a possibilidade do diploma, de uma profissão, de uma vida melhor.


Não há mal nisso. Não há problemas em ver pessoas migrando de níveis sócio-econômicos, comprando ar condicionado, instalando TV por assinatura, tirando o primeiro carro zero, saindo do aluguel para financiar a sua casa própria, fazendo viagens com a família, frequentando aeroportos, comprando celulares – justiça seja feita, esta uma conquista viabilizada por FHC quando privatizou as telecomunicações - só pra constar, fazer o mesmo com a Vale do Rio Doce foi um crime imperdoável. O que não dá para entender é ver a velha classe média, mais até do que as elites, torcendo o nariz para isso. Porque essa mesma classe média também melhorou de vida nos últimos 12 anos: quem tinha dois automóveis, hoje tem mais e melhores; quem tinha uma casa própria, hoje vive de aluguel; faz viagens mais longas, compra muito mais que d’antes. Mas, incompreensivelmente, não aceita que os emergentes passem a consumir os mesmos produtos e entretenimentos que ela, por simples vaidade e mesquinharia. Não que a vida dos mais abonados tenha piorado nos último 12 anos. Ao contrário. O problema é que eles não querem que a arraia miúda viva melhor. Qual o problema de termos mais gente prosperando?

Nesse sentido, o PT foi capaz de fazer aquilo que o PSDB luta para manter distante: igualdade social. Lula expandiu e criou projetos sociais. O Bolsa Família, que as elites e classes medianas antigas dizem ser esmola e programa de compra de votos, faz o que é responsabilidade de um governo que se preocupa com os mais pobres: dá expectativas melhores aos excluídos. Porque é fácil falar aberrações sobre programas sociais quando se têm todas as refeições do dia à mesa, quando a vida, por sorte e muito trabalho, foi benéfica a si. A maioria, a ampla maioria dos que recebem o auxílio, são pessoas dedicadas, que por motivos diversos não conseguiram deslanchar. À medida que conseguem isso – e os programas assistencialistas são fundamentais nesse processo –, os beneficiados vão abrindo mão do que recebem do governo. (Para saber mais sobre o assunto, acessar http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2014/01/familias-melhoram-de-vida-e-abrem-mao-do-bolsa-familia-no-interior-do-pi.html, http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/05/169-milhao-de-familias-abrem-mao-do-bolsa-familia/ e http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2013/10/13/interna_politica,393094/quase-2-milhoes-de-familias-aumentaram-renda-e-abriram-mao-do-bolsa-familia.shtml).

Com tudo isso, estranhamente, o que tem marcado a cobertura da grande mídia [Globo, Folha e Veja] nesse período eleitoral é o pessimismo atrelado a uma corrente contrária ao PT. E a velha classe média, que é grande e consome todas essas mídias, compra a ideia. Pra situarmos melhor essa tal classe média tradicional, é ela que habita aos montes as redes sociais, especialmente o Facebook, divulgando opiniões contrárias ao PT e a Dilma, na maioria das vezes infundadas. Não há uma oposição em massa ao PT por convicção. O que há é uma corrente desordenada, que julga a Petrobrás ser um total fracasso por causa da compra da usina de Passadena. Vamos com calma... É verdade que não queremos que o país faça maus negócios, mas o mercado é dinâmico, muda a todo momento. O mesmo pode acontecer com qualquer um de nós: podemos comprar uma casa por um preço elevado hoje e, amanhã, ocorrer uma crise no setor imobiliário que fará com que os preços caiam. No fim, você terá cometido um péssimo negócio, mas não por má fé. Simplesmente o mercado o traiu. Com a Petrobrás, até que se prove o contrário, ocorreu o mesmo. É bom que se diga: a Petrobrás deixou de ser uma empresa de fundo de quintal, sucateada pela gestão FHC, para se tornar uma potência no campo da produção de energia. A propósito, a descoberta e exploração do pré-sal não deixam muita dúvida sobre isso.

Curiosamente, o fracasso de Alckmin, em São Paulo, no que tange à distribuição de água, aos escândalos envolvendo o PSDB na questão do metrô e aos problemas na maior universidade do país, a USP, não ganhou a mesma postura da mídia, nem da classe média mais reacionária do Brasil: os paulistas preferem resignar-se e culpar a escassez de chuvas pela deficiência no fornecimento de água. Alckmin demite funcionários do metrô, que exercem o seu direito à greve? Palmas pro governador! A Universidade de São Paulo vai mal das pernas? Privatização na USP! Alckmin já teve três mandatos como chefe maior do Estado mais rico e importante do Brasil, sendo dois deles por meio de eleições. Tem grandes chances de conquistar mais um quadriênio. E é impressionante como São Paulo não enxerga que Geraldo é a própria materialização do fracasso.

O defeito mais estrondoso do PT é fazer uma política de coalizão ampla, abraçando inúmeros partidos que, em essência, possuem ideologias e origens completamente opostas às do Partido dos Trabalhadores. Aliar-se a muita gente é o ovo da serpente da corrupção. A reforma política clama por uma alteração nessas alianças, sujas na maior parte das vezes. Com o PSDB de Fernando Henrique foi assim. Com o PT de Lula e Dilma, do mesmo modo. Os mensalões dos dois partidos foram resultado de uma coalizão quilométrica e da utilização da política como um grande negócio. O PT não é mais corrupto que os demais partidos. O PSDB está longe de pairar sobre o bem e o mal. Cabe a nós, eleitores e cidadãos, o questionamento às corrupções de todos os lados.

Nesse sentido, é bom que lembremos: os corruptos do PT estão na cadeia. Integrantes do mais alto escalão do partido que governa o país há quase 12 anos foram julgados e condenados por crimes que cometeram. Com os tucanos, não aconteceu isso, e não vejo clamores para que o mesmo ocorra. Sobre o caso específico de José Dirceu, membro importante do PT, ele foi julgado e condenado sem provas, embora você possa achar – assim como eu acho – que ele e Lula encabeçaram o esquema todo. Mas nesses assuntos de Justiça não há achismos. Há o que se prova, e a prisão de Dirceu foi autoritária, avalizada por Joaquim Barbosa, o ex-ministro que o Brasil aprendeu a amar sem o menor senso crítico.

No que tange à Copa, assunto em voga no Brasil até pouco tempo, é importante ter prudência antes de jogar todos os atrasos das obras na conta da presidente. O VLT em Cuiabá e Fortaleza não ficaram prontos? Conteste o governo do Estado. A culpa do PT nessa história de mundial foi ter feito política no momento de definir as sedes. Foi um exagero escolher 12. Com oito, faríamos uma ótima Copa. Seriam quatro dores de cabeça a menos. Mas Lula quis agradar os aliados. Voltamos ao problema da extensa coalizão, germe das corrupções mais gigantescas.


Outro pecado do atual governo em relação à Copa foi a aceitação quase que integral das exigências da FIFA. Quem teve acesso à Lei Geral da Copa percebeu que a entidade organizadora do mundial (é sempre bom lembrar, a FIFA não é dona do futebol, que está muito acima dela. A entidade só promove eventos) subverteu leis nacionais em prol de seus interesses. De todas as aberrações, a mais lamentável foram as remoções. Famílias inteiras, que tinham suas casas há anos em determinadas comunidades, foram forçadas a abandonarem seus lares para que as obras dos megaeventos (Copa e Olimpíadas) pudessem botar abaixo o que eles julgam velho e impertinente. Além do pouco diálogo e da truculência policial, vimos materializar o pior tipo de violência: aquela cometida pelo Estado contra o seu próprio povo. Fora os desvios de verba e os atrasos em obras importantes, eis a nossa vergonha maior por ter sediado este mundial. A “Copa das Copas” não foi a nossa. Foi a da Alemanha, em 2006.

Não sei se votarei em Dilma nas eleições de outubro. A certeza que tenho é a de que o país avançou, e a vitória de Aécio representaria o retrocesso de todas as conquistas, principalmente na área social. Marina fez uma campanha e tanto em 2010, apareceu como uma alternativa de destaque, mas tem metido os pés pelas mãos, também no intuito de agradar geral. Aí começa a passar por cima das próprias convicções. E alguém sem convicção, ainda mais um político, é alguém nulo, sem cara.


Nunca fui aquele patriota pachecão, que defende o Brasil só por ser brasileiro. Sempre procurei olhar o país por um viés crítico, entendendo que assim é a melhor forma de melhorar o lugar em que vivo. E o local onde nasci e pretendo morrer tem melhorado, o que não significa que não possa avançar ainda mais, seja com o PT ou com um partido que tenha isso como propósito. Nesse sentido, a função dos políticos é gerir com zelo os bens públicos. A nossa obrigação é politizar-nos, fazer as escolhas corretas e cobrar esse ou aquele representante de maneira devida.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

#somostodosmacacos?

A cultura é uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo em que ela torna um grupo diferente do resto, fazendo com que os outros o identifiquem por uma determinada característica, pode encalacrar, numa longa convivência, os valores mais perversos.

Tanto em uma como em outra situação, o Brasil é país de casos diversos. Samba e futebol, por exemplo, são elementos da nossa cultura. Sempre que se pergunta a um estrangeiro sobre a terra brasilis, logo vêm à mente a ginga, o batuque e a bola no pé. A prática de tudo isso é tão antiga e marcante, que o costume passou a ser sinônimo do país. Cultura é, basicamente, hábito praticado durante extenso período de tempo, tornando-se elemento indissociável do meio.


Mas o traço cultural, por sua vez, pode revelar a face mais deprimente de um povo. Para ficar no exemplo do Brasil, a escravidão gerou um ranço que parece não se desvincular da sociedade, ainda que todos nós, sem exceção, não tenhamos vivido um momento sequer daqueles quase 400 anos. Oficialmente, o trabalho escravo terminou em 1888, e não me parece haver, hoje, algum sobrevivente do período que seja o responsável por alimentar o ódio.


O que explica, então, os atos de racismo na atualidade? Sim, porque na última quinta-feira, dia 28, foram dois casos divulgados pela imprensa: o da garota de 20 anos, negra, que postou foto com o namorado branco em uma rede social, e recebeu as ofensas mais abjetas. No mesmo dia, só que à noite, o goleiro do Santos, Aranha, foi ofendido por alguns torcedores gremistas, na vitória do Peixe sobre o Tricolor gaúcho por 2x0, em jogo válido pela Copa Sul-americana. As imagens da TV mostraram uma torcedora xingando o arqueiro de "macaco", enquanto outros gremistas imitavam o som do bicho a cada vez que Aranha estava com a bola. Ao final do jogo, o juiz não registrou em súmula o ocorrido. Na sexta, fez um adendo mencionando o fato – não por convicção, mas pela comoção que o fato gerou. O Grêmio deve ser punido com perdas de mando de campo, o que nem de perto resolve um problema que é social, não esportivo.

Algumas coisas, além da conduta em si, espantam nos dois casos. Primeiro, vemos ali jovens protagonizando o preconceito, algo que sempre foi comum nas pessoas de mais idade. Por tradição, o jovem é aquele que rompe com o contexto vigente na busca por avanços, e não quem aprofunda os nossos atrasos mais evidentes. Temo pela quantidade de adultos reacionários que teremos daqui a 20 ou 30 anos e o que isso pode provocar na nossa democracia.

Segundo, as imagens (de foto ou vídeo) são muito claras. Como existe a possibilidade de identificar o criminoso, basta prendê-lo - sim, o combate ao racismo é previsto em Constituição [Art. 3] e no Código Penal [Art. 149]. Em 2012, um anteprojeto do novo Código Penal traçou o preconceito de raça como crime hediondo. A proposta precisava passar pelo Congresso, só que as discussões emperraram. É que a questão cultural - ou seja, do hábito, do costume, de ser algo normal - é tão enraizada, que muita gente torce o nariz quando alguma coisa é feita.

Trecho da Constituição que prevê o combate ao racismo







O Código Penal segue a mesma tendência











Terceiro, esses são casos que ganharam repercussão na imprensa e passam a ser discutidos. E as ofensas veladas? E os acintes escancarados que não vêm para a ordem do dia? Não dá pra cravar se o preconceito tem aumentado ou não. O que dá pra afirmar é que ele está mais descarado que alguns anos atrás e deveria ser bem menor do que é. Não só por resgatar algo tão antigo e canalha da nossa história, mas também por ser incompatível com a formação da sociedade brasileira, que, por essência, é miscigenada, tendo o negro como uma das matrizes fundamentais.

Com tudo isso, eu poderia propor um minuto de silêncio em consternação a essas aberrações. Mas, não. É preferível gritar. 

sexta-feira, 27 de junho de 2014

SELEÇÕES SUL-AMERICANAS EM CASA, INCLUSIVE CONTRA 'NOSOTROS'

É de se admirar a maneira como torcem os argentinos – e os argelinos também. Eles, assim como nós, vibram mais com os clubes do que com a Seleção, mas é inegável que são mais participativos que os brasileiros. Motivo simples: apesar de serem, nesses tempos de Mundial, abastados também, têm o costume da arquibancada. A nossa torcida, VIP e padrão-FIFA que é, não é de encostar a bunda em qualquer estádio. Só vai na boa. Não se impressione se num Brasil x Argentina, Brasil x Uruguai ou Brasil x Chile (jogo de amanhã), a torcida rival, embora em menor número, fizer mais barulho que a nossa. Eles farão. (No vídeo a seguir, o torcedor argentino, em peso no Mineirão, provoca o Brasil: https://www.youtube.com/watch?v=blfAmjFC8bI).

O que ocorre na Copa, que muitos chamam de “elitização dos estádios”, é o que vem acontecendo nos nossos campeonatos. Tanto os regionais como o brasileiro cobram valores abusivos por jogos que nunca estarão à altura das cifras: os nossos jogadores são fracos tecnicamente, os jogos repletos de faltas, contato físico. A exceção nos preços exagerados do ingresso ocorre quando os times precisam de casa cheia para sair de uma situação complicada no campeonato. Nesse caso, o valor das entradas cai, e o povão volta a freqüentar as arquibancadas.

Não que eu seja contra ver a elite no estádio. Sou contra ver só a elite no estádio. Justo ele, que, por excelência, sempre foi o local de todos. Na configuração antiga dos nossos três maiores campos (Maracanã, Morumbi e Mineirão), fica evidente que ali tinha lugar pra todo mundo, ainda que de maneira segregada. Os três gigantes possuíam três níveis de arquibancada – o Morumbi ainda é assim: os pobres ficavam embaixo, pois o custo era menor e a visibilidade também; a classe média ficava em cima; e os ricos, no meio (protegidos da chuva e do sol e com visão privilegiada).

Garrincha atua pela Seleção Brasileira no antigo Maracanã. Ao fundo, no primeiro plano, o torcedor na Geral, em pé, tapando o sol com a mão. No segundo plano, o setor das Numeradas: ingressos mais caros, conforto maior.

Toda a cantoria que sempre ouvimos nos estádios vem dos pobres. Eles é que se encarregam de empurrar o time. A classe média e a elite são mais tímidas, menos barulhentas, e negam ao time o incentivo de que precisa para jogar. Se o pobre é excluído dos campos, a vitória passa a ficar mais difícil, menos bonita, porque não há mais a irreverência tão característica desse esporte.

Ficam aqui alguns apelos aos que organizam os torneios de futebol: devolvam os pobres aos estádios. Devolvam aos estádios mais fidelidade à nossa composição social e menos um público branco, de óculos de sol, que não tem no sangue o amor pelo futebol. Boa parte desse pessoal que vai aos jogos do Brasil na Copa não tem apego pelo jogo, pelo esporte. O negócio é ir a um grande evento, como um show, uma balada. O futebol parece estar morrendo...


Em tempo: sobre Luis Suárez

A FIFA fez justiça desmedida. E se é assim, não é justiça. Porque tirar o atacante uruguaio da Copa, dá até pra entender. Uma mordida, aliada ao histórico do Pistoleiro, não é coisa que se faça num jogo de futebol. A Copa perde uma grande atração, mas o fato de ser bom jogador não o exime do erro. Seria bom ter Luisito nos campos brasileiros – ao menos no jogo decisivo de amanhã, contra a Colômbia – mas ele, então, que não fizesse a cagada que fez.



Agora, banir (esse foi o termo usado pela FIFA) o atleta por quatro meses de qualquer atividade relacionada ao futebol e não permitir que ele frequente o ambiente da Copa junto aos companheiros de time foram medidas autoritárias. Além do mais, o uruguaio precisou sair escoltado do hotel onde estava concentrada a seleção celeste. Lembremos: futebol é um jogo, e Luis Suárez cometeu ato falho durante uma partida. Está longe de ser um criminoso.

domingo, 22 de junho de 2014

A JUSTIÇA NO FUTEBOL: Messi, como todo gênio, subverte o senso comum

45 minutos do 2º tempo e... Gol! Messi, em jogada característica, conduz a bola da direita para o meio, fora da área, e joga no canto oposto do arqueiro iraniano. E o jogo termina em 1x0 para os hermanos, numa partida em que o Irã, surpreendentemente, jogou mais e teve as melhores chances.

O engano por parte de muitos é afirmar que o resultado foi injusto. Nada disso! A Argentina botou uma bola na rede. O Irã, não. O jogo terminou 1x0. Quer mais justiça que essa? O único momento em que há injustiça no futebol é quando vemos um gol ser mal anulado ou quando o mesmo deveria ser invalidado, e não é. No mais, podemos falar em falta de merecimento, não em injustiça.


Senso comum à parte, assim como o Brasil, a seleção portenha não fez duas boas partidas. Messi não foi nem perto do que se espera. Mas já anotou dois belos gols, sendo eleito o melhor em campo nas duas partidas que fez. Do mesmo modo que ocorreu na temporada, atuando pelo Barcelona, Lionel tem tido desempenho aquém, mas os números dão um alento. Ainda que abaixo, foi decisivo nas duas rodadas. Sem ele, a Argentina, provavelmente, teria dois pontos, e não seis.


Não há como não louvar Messi. Até Francisco, o Papa, roeu unha, cruzou os dedos e sentiu alívio com o tento marcado no fim. Deus dá pinta de que mudou de lado. Lá no céu, abandonou o verde-amarelo para vestir alviceleste.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

GOL CONTRA: Felipão atribui à imprensa uma função que não é dela

Na última terça, dia 17, a Seleção Brasileira entrou em campo para disputar a sua segunda partida na Copa do Mundo. O resultado de 0x0 diante do México ficou longe de ser bom, não só pelo ponto solitário conquistado, mas também em função do baixo desempenho do time comandado por Luiz Felipe Scolari. E foi justamente após a partida, no trecho final da entrevista coletiva, que Felipão agiu de modo a questionar a imprensa brasileira: “Não tem mais pênalti a favor do Brasil? Vocês só criticaram o do Fred”. O fato é que não ocorreu nada duvidoso no confronto contra os mexicanos que tenha prejudicado o time da casa.

Incomodou Scolari o fato da imprensa brasileira ter dado destaque ao pênalti inexistente apitado pelo árbitro japonês em favor do Brasil, na partida da primeira rodada contra a Croácia. A marcação convertida por Neymar fora decisiva para a vitória da seleção (ali, o Brasil virava um jogo difícil contra o bom selecionado croata). Com a ênfase em um lance polêmico que favoreceu o anfitrião, Felipão se viu contrariado, pois, antes do mundial, pediu para todos – time, imprensa e torcida – unirem-se em torno do objetivo máximo: o hexacampeonato.


O treinador só deixou passar uma prerrogativa bem básica do jornalismo: imprensa que se preze não torce. Ou, se torce, não permite que a empolgação ou a tristeza interfira na informação, na análise, na opinião. De modo geral, os veículos de comunicação mantiveram posicionamento crítico quanto ao êxito da Seleção contra a Croácia, afirmando que o Brasil tirou proveito de um erro do juiz para sair com a vitória na estreia. É importante lembrar: até o torcedor, Felipão, movido permanentemente pela paixão que o futebol faz desabrochar, sabe e concorda que vencemos graças à falha de Yuchi Nishimura, o apitador amigo.

Quanto mais distante das emoções, melhores serão as avaliações produzidas pelos analistas esportivos – e essa máxima não vale só para o esporte. Se ponderação pressupõe racionalidade, o ato de informar requer que o jornalista saia da arquibancada, deixe a buzina de lado e caminhe pelo trajeto da calmaria. Cada um na sua função: torcedor vibra e sofre; imprensa informa e opina; e o técnico treina o time para ser mais competitivo no próximo jogo.


A crônica esportiva chateou Felipão? Ponto para o jornalismo.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

20 ANOS DA HISTÓRIA QUE NÃO TERMINA

Quase todos que me conhecem sabem que tenho Senna em alta consideração. Quase todos se lembram que, amanhã, completam-se 20 anos do acidente fatal em Ímola. Morte esta que ainda não foi explicada – e talvez nunca seja. A minha crença é de que o piloto sofreu um colapso nervoso ou algo do tipo. O estresse que sempre acompanhou o brasileiro, ainda mais em 1994 – quando a Williams sofria para se manter na pista –, fez com que ficasse desacordado, impossibilitando-o de virar o carro ou freá-lo.

Mas eu não vim aqui para conjecturar sobre a morte de Senna. Vim aqui para, primeiro, discordar das tentativas de transformar o ídolo em mito, como se o piloto tivesse só virtudes. Ayrton tinha defeitos como você e eu, e é desnecessário forçar a ele um pedestal que, nas pistas, o gênio construiu naturalmente. Senna acertava e errava, foi vítima e autor de jogo sujo. Enfim, foi de carne e osso, o que faz dele alguém ainda mais especial.


Não há necessidade de enfeitar o piloto, encher de artificialismos uma carreira vitoriosa. Mesmo com a morte prematura, Senna foi um monstro. Se foi melhor ou pior que Schumacher? Não sei. Está aí uma comparação dura de se fazer. O alemão conquistou sete títulos, algo que o brasileiro, provavelmente, não conseguiria, ainda que tivesse uma carreira completa.

Mas o número de títulos não é o único requisito para definir o melhor dos melhores. Há a inteligência, e Prost foi supremo nesse ponto, fato que lhe rendeu o apelido de professor. Só que Senna era capaz de fazer coisas inacreditáveis, e nisso ele foi insuperável – seja nos treinos classificatórios, seja na chuva, nos GP’s de Mônaco ou em Interlagos 91 e 93. Mesmo com carros sofríveis, Ayrton foi histórico.

GP da Europa - Donington Park 1993

 Ao subverter o previsível, anotou seu nome na relação dos grandes que fizeram época. Sem ser perfeito e intocável, Senna marcou a minha vida, como nenhum jogador do São Paulo FC ou da Seleção foi capaz de fazer.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

AOS HOMENS, PRAZER. ÀS MULHERES, DOR

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) corrigiu, há pouco, o dado mais discutido da sua pesquisa. Veio a conhecimento público, em 27 de março, que 65% dos entrevistados achavam que “mulheres que usam roupa curta merecem ser estupradas”. O índice correto é 26%. Há quem diga agora que todo o estardalhaço foi desnecessário. Este que vos escreve julga os 26% uma aberração. Se fosse 1%, ainda seria demasiadamente escroto.

O problema da pesquisa realizada pelo Ipea não é o fato de 26% dos entrevistados – e a maioria destes ser composta pelo público feminino – acharem a mulher que usa roupa curta culpada por ser estuprada. Sim, muita gente não julga o estuprador criminoso pelo ato de violência dos mais covardes de que se tem conhecimento. O problema é identificar que a mentalidade do brasileiro, ao menos em questões sexuais, continua conservadora e atrasada.

Primeiro que relacionar roupa à violência é, no mínimo, incoerente, tendo em vista que nada justifica uma agressão. Segundo, a roupa curta, no Brasil, deveria ser mais assimilada por todos, já que vivemos num país tropical, onde as temperaturas beiram o insuportável em determinadas épocas do ano. Do centro-oeste pra cima, são 365 dias de puro suor. É comum, logo, encontrar homens e mulheres com roupas de menos. Foi justamente assim que os portugas encontraram as índias nos idos de 1500.

Para 26% essa mulher merece ser estuprada

Isso à parte, é ilusão achar que a mulher não se veste para a conquista. É direito dela sair de casa tendo o desejo do sexo. O macho se pauta por essa prerrogativa quase o tempo todo. A roupa mais curta e insinuante não denota estupro, e sim a relação consentida. Ninguém, em sã consciência, deseja ser apanhado com violência. Nem mesmo a mulher “má intencionada”. E lembremos: quando o homem é visto com pouco vestuário, está ali algo que não choca.

Caímos, então, num dos tabus mais antigos: a criminalização da mulher. Porque se o homem sai com cinco numa noite, ele é foda. Mas se a mulher passa pelas mãos de cinco homens, “vagabunda” é o adjetivo mais carinhoso que irá qualificá-la. A explicação é simples: o sexo – ou o desejo, como preferir – sempre foi um direito exclusivamente masculino. A mulher foi concebida para saciar o desejo do outro, nunca o dela. A Igreja, é claro, tratou de aprimorar essa assertiva, concedendo à vilã requintes de crueldade. Eis que sob a tutela da religião, a mulher foi tratada como alguém quase sem humanidade e, como tal, isenta de vontades. Assim como Eva e Pandora, a mulher tem culpa no cartório desde sempre.

                                        
Estranhamente, o mesmo homem que recrimina a roupa curta da moça, olha pro seu quadril quando o rebolado é provocante. Quando a opinião contradiz a ação, temos os falsos moralismos, com doses cavalares de hipocrisia. Mais incompreensível ainda é observar a própria mulher a apontar o dedo pra outra, prova de que o machismo não é uma doença do homem, mas uma ideia que infesta cabeças de todos os gêneros.

Hoje, temos músicas, propagandas, filmes e novelas que abordam a liberação sexual instaurada na década de 60, numa luta travada por mulheres à frente de seu tempo. A diferença é que a mulher consome todos esses produtos, mas tem o poder de escolher para si que tipo de comportamento quer adotar. Já quando ela se vê confrontada pelo estuprador, a sua escolha é descartada. Durante a Idade Média, o mesmo.


O Brasil demonstra o atraso que sempre lhe foi característico. A sociedade apedreja a mulher que tem vontades, mas baixa a guarda para o homem violento. Em suma, o sexo sempre foi prática profana, com o ônus da culpa recaindo mais na mulher, especialmente quando esta tem o desejo. Porque é importante que você, mulher, lembre-se: a sua função é servir, não gozar. Avançar nessa questão parece um obstáculo e tanto.

segunda-feira, 31 de março de 2014

O MALFADADO 1964: as feridas abertas e uma celebração à democracia

Há exatos 50 anos o Brasil era derrotado pelo regime militar. Vigorando entre 1964 e 1985, o golpe – e não revolução, por favor – legou ao país cinco generais (Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo) ao posto de presidente, em eleições, obviamente, sem a participação do povo. Em resposta às reformas de base de João Goulart, ocupante legítimo do cargo maior, os militares tomaram o país de assalto, não sem o apoio de veículos da grande mídia, de setores importantes da sociedade civil, parcela da Igreja Católica e retaguarda do governo dos EUA. Foram 21 anos de exílios, censura, torturas, execução e sumiço de cadáveres, tudo tendo como protagonista aquele que deveria zelar pelo inverso de todas essas aberrações: o Estado. O resto é o que a história nos conta, embora muitos brasileiros façam questão de não entender. Livros, filmes e o Memorial da Resistência, na Estação Pinacoteca, em São Paulo, podem auxiliar os mais desinformados.

Corredor ao fundo de quatro celas do antigo DOPS
(Memorial da Resistência - Estação Pinacoteca - São Paulo)

A rigor do fato, nenhum país merece ser governado por militares. E por quê? Pelo simples fato da sociedade ser, em sua maioria, civil. É contraditório ao extremo dar a alguém fardado o poder de gerir uma nação que é essencialmente civil. Esse é o primeiro ponto. O segundo é que existe um risco temerário em entregar a alguém armado o poder máximo de um país. Se a Polícia Militar, por exemplo, protagoniza aberrações em governos civis, imagine o que ela faria – como de fato fez entre 64 e 85 – num regime militar. Aos milicos cabem duas obrigações muito específicas e claras: proteger as fronteiras do país contra perturbações que possam vir de fora (exército, marinha e aeronáutica) e manter a ordem interna, função pertinente à PM, tudo com base no Estado Democrático de Direito.

Analisando a questão sob os vieses da Antropologia e da Filosofia, conceder o poder a um general significa recusar a evolução por que passou a espécie humana. O homem, por natureza, é anárquico (sem governo), ou seja, ele nasce sob a égide do “todos contra todos”. Quando a população aumenta e os indivíduos se veem incapazes de administrar os próprios desejos, surge a necessidade de ter alguém como aquele que os representará. Saímos, então, da anarquia para a arquia (governo), e o primeiro mandatário é um tirano (ou déspota). Uma única pessoa, assim, concentrava os poderes político, econômico, sacerdotal e MILITAR. Os tempos mais remotos da pré-história já haviam mostrado que um governante armado tende ao autoritarismo e a todos os excessos que deste provém.

Evidentemente, o modelo se mostrou ineficaz, porque o uso da violência era tamanho que os indivíduos não tinham em mãos o mote de sua luta: a vida boa. À medida que a inteligência se desenvolvia, a população buscava formas mais vantajosas de se viver bem. Do mesmo modo que deliberou sair do estado de natureza para o regime tirano, optou também por sair desde e engendrar pela política, na sua forma mais louvável que conhecemos até hoje: a democracia. É em Atenas que os habitantes – nem todos, é verdade – passam a discutir e definir rumos para a realidade em que viviam. É nesse momento que aparecem as leis. São elas que diferenciam o Estado Despótico do Estado Democrático de Direito. Enquanto naquele a autoridade se encontra acima de tudo e todos, neste a legislação submete, indiscriminadamente, governantes e governados. Em tese, temos aí o princípio da isonomia.


Por isso é que, em 64, o Brasil não deu um passo para trás. O Brasil se jogou num abismo de retrocesso, talvez o mais torpe de que fomos vítimas e protagonistas. Do ponto de vista dos direitos humanos, é possível que tenha sido o segundo pior momento em toda a nossa história, só sendo superado pelos absurdos da escravidão. Os que defendem os militares alegam que havia mais segurança, menos corrupção e a economia crescia a passos largos. Vamos por partes.

A violência, de fato, era menor, pois a sociedade brasileira somava, nas décadas de 60 e 70, a metade do que é hoje, quando muito. Isso sem mencionar a violência perpetrada pelo próprio Estado, por meio do seu instrumento mais perverso, a PM. Não é preciso ser muito engajado para saber que essa modalidade de violência não chegava ao conhecimento de grande parte da sociedade da época. Mas o pior de tudo isso é saber que os torturadores e assassinos não pagaram – e nem pagarão – pelos atos sumários.

Quanto à corrupção, a diferença entre hoje e 50 anos atrás é a difusão de notícias na mídia. Nos anos de chumbo, com a imprensa censurada, raramente passavam informações que denunciavam as mazelas do governo, cenário oposto ao que temos hoje, em que veículos perturbam – por vezes injustamente – políticos e partidos que, inclusive, detêm o poder. O jornalismo toca nas feridas da política, especialmente quando lhe é conveniente, algo que era impossível no período em que as redações eram frequentadas pelo pessoal fardado. Para não falar das empresas midiáticas que tinham como trabalho principal blindar os militares. Citam-se, aqui, as Organizações Globo, sempre a bater continência e a abanar o rabo à gente dos quartéis.


Na economia, no auge do dito “milagre brasileiro”, o país chegou a impressionantes 13% de crescimento, mas as desigualdades nunca foram tão grandes. Hoje, o país se expande menos, mas a diferença entre classes regrediu. Há problemas na economia, na segurança pública, na educação, na saúde a serem resolvidos. Os presidentes civis – Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma – não solucionaram questões que ainda são fundamentais, mas a melhor maneira de equacioná-las é pela via democrática, pois só ela permite o debate, a discordância, o aperfeiçoamento das ideias. Enfim, só a democracia oferece ao povo – o principal beneficiado da política – a chance de ele decidir sobre os rumos que quer tomar.


Fica bastante evidente que a ditadura militar e os seus adeptos simbolizam um retrocesso, um déficit de inteligência que não combina com os progressos humanos. É simples entender qual forma de governo é melhor, se democracia ou ditadura: se você vive num país livre, mas tem opinião favorável ao autoritarismo, a sua manifestação estará garantida, sem que qualquer democrata o coloque num camburão para ser torturado. Mas se você vive num país fechado e expressa opinião em favor da democracia, os ditadores não hesitam e te fazer passar pelas piores sensações, justamente aquelas a que nem um animal merece ser submetido.