terça-feira, 10 de julho de 2012

NA RATOEIRA, UMA GRAVATA


De todos os animais do mundo, há os que geram afeto, os que trazem medo e os que repulsa dão. O cachorro e o gato são dois dos exemplos que estão atrelados ao homem, seja como companheiro, consolador ou protetor. O oposto disso são os bichos selvagens, aqueles que vivem em florestas densas, em locais específicos e dos quais o ser humano, tão imponente, soberano e inteligente, implora por manter distância. Racional, neste caso, é ficar longe de um leão, de uma onça ou cobra, porque a prudência, em determinadas situações, toma a frente quando o assunto é coragem. E existem os animais que nos causam asco. A barata está neste seleto grupo, ao lado daquele que talvez seja o maior dos injustiçados: o rato.
Eu não consigo entender por que o rato é vítima de tanto desprezo. É certo que a sua anatomia arredondada, com pelos finos espichados, inegavelmente sujo na maioria das vezes, de andar veloz, olhos pretos, patas estreitas, rabo longo e fino, orelha em pé e dentes inconfundíveis fazem desse bicho um aterrorizador de gente. Embora, é pertinente que indaguemos: o rato não seria um coelho em tamanho miniatura? A maioria dirá que sim, mas ciente de que o coelho é mais afável do que seu semelhante compacto. Todavia, retomo: fica aqui um manifesto contrário à marginalização do rato.



Se a sua marca é a aparência pouco amigável e a higiene que nunca teve é por um motivo muito simples: o rato é um miserável. Tem como lar esgotos ou forros, vive dos restos que a sociedade ignora e quando se vinga, urinando na água das chuvas, é novamente achincalhado por causa da tão profanada leptospirose. O rato é vítima do meio, e ao rebelar-se é desprezado e combatido. Mas se algo traz riscos ao homem, que as iniciativas sejam tomadas, mesmo porque, do contrário, o povo irá bradar protestos com razão.
Entretanto, não seria indevido lembrar de algumas utilidades do pequeno bicho. A principal delas é servir de cobaia ao que os homens irão desfrutar adiante. Se o assunto são novos medicamentos, formas alternativas de tratamento, chama o rato. Precisa testar qualquer inovação da área da medicina, eis que o roedor mais famoso do mundo se submete aos experimentos do bicho homem. Enfim, dizer que muitas vidas são salvas graças aos simulados feitos com ratos, é mais do que justo. É mais ou menos assim: o rato dá a vida para que a sua seja melhor. E você, daria a vida por um animal desses?
Até por toda essa ressalva em relação aos ratos, caímos no senso comum de classificar esse ou aquele político, daqui e de todos os lugares, como um deles. O que é uma injustiça elevada, pois o rato não merecia ser vítima de metáfora tão imprópria. Porque o rato assusta, espanta, traz doenças, mas não exerce traições como as que os nossos representantes já se habituaram a nos imputar. O pequeno roedor não te ataca, não insulta, não implementa despautérios, ainda que um pedaço de queijo se coloque insinuante.



O político, sim. Mesmo sem motivo, sem justificativa, ele dá o golpe e te joga na lona. Ele faz do impensável e do desmedido uma rotina, algo que resigna o cidadão, mesmo que as insanidades devessem revoltar o morador que discorda do mandatário. Mas revoltar-se como, se a maioria nem ciência tem dos descabidos e, se tem, julga tudo dentro da normalidade, passivamente? É dos mais absurdos dilemas que o indivíduo de hoje vive. Ele que vota mal, é ultrajado e lesado e, tendo em mãos uma lista cheia de impropérios e insucessos, regressa às urnas quatro anos mais tarde para dar um tiro no próprio pé.
Eles continuarão a chegar quietos, farejando e expondo os dentes como sinal de contentamento. Caso se encontrem em situação de privilégio, irão roer as benesses que por si foram instituídas. Os desatinos podem ter como marca a lentidão, a melhor e mais certeira forma de iludir alguém. Mas não notar o que é descarado soa como autonegligência, e a responsabilidade do dolo passa a ser da vítima também. E quando você menos esperar, quando tudo aparentar calmaria, poderá não ser um rato a subjugá-lo de modo tão estúpido.

A POLÍTICA DE GETULINA É ISSO

O ritual seguiu o protocolo. Todos os vereadores, sob a presidência de um igual, reuniram-se para mais uma sessão ordinária na Câmara Municipal de Getulina para, como se espera, apontar deficiências, propor leis, conduzir a cidade a uma patamar que sempre remeta ao progresso. Não sem antes, é claro, ler o versículo da Bíblia, ela que sempre é testemunha dos atos mais generosos ou medonhos. O fato é que o trecho foi lido, e a partir daí o que se procede em âmbito político está avalizado pela instância sagrada, e ai de quem se opuser a isso.
          Lembremos, de novo, do significado central de política: instância que surge a partir da complexidade cada vez mais evidente da sociedade, tornando necessária a instauração de poder central para conduzir o todo, aparar as arestas, controlar os egos. Quando o indivíduo nota que não mais é capaz de mediar completamente o seu convívio com o próximo – e nem quer isso –, emerge a figura do representante, aquele que tomará para si as responsabilidades negligenciadas pelo cidadão.



      Presume-se que a partir disso alguém imbuído de boas intenções ofereça os seus conhecimentos, as suas experiências de vida e o senso de coletividade para atender o bem público. Enfim, todo trabalho político converge no morador, a síntese do que de melhor pode haver na esfera social, a inestimável ação de agir para o próximo, para o todo. A função mencionada aqui é para bem poucos, talvez menos do que o necessário ao funcionamento disso que convencionamos chamar de cidade.
          Cidade esta que esboça números destoantes. O salário atual de cada vereador é de R$ 2.322,13, enquanto que do presidente da Câmara é de R$ 2.931,98, tudo de acordo com informações disponibilizadas pela secretaria da Casa. O valor ganho pelo prefeito, em cada mês, é de atuais R$ 8.329,49. Já o vice-prefeito recebe 2.776,49 (essas duas cifras foram publicadas na página 9 da edição deste semanário de 13 de maio de 2012). Lembre-se: tudo pago com o seu, com o meu, com o nosso rico dinheirinho.
         Cidade esta que, sob a chancela da própria Câmara (dos nove vereadores, um, Henrique Mário Nohara, foi contrário aos reajustes), pagará a partir de 1° de janeiro de 2013 a bagatela de R$ 4.500,00 ao presidente da Casa. Cada vereador receberá a quantia de R$ 3.000,00. No Executivo, os subsídios, sancionados pelo chefe maior, para prefeito e vice serão de R$ 10.000,00 e R$ 4.500,00, respectivamente. Sim, amigo leitor, dez mil reais, por mês, para ser prefeito desta cidade. Todos esses valores estão disponíveis nas páginas 4 e 9 da edição do Getulina-Jornal de 03 de junho de 2012.



       Ah, sim... Passemos pelos acréscimos, em valores reais e percentuais. De 31 de dezembro de 2012 para 1° de janeiro de 2013, o cargo de prefeito pagará, mensalmente, ao seu ocupante R$ 1.670,51 a mais. Assim mesmo, de um dia para o outro, um aumento pouco convencional para os trabalhadores comuns. Ao salário que o vice-prefeito ganha somar-se-á a quantia de R$ 1.723,51 no dia que principia o ano seguinte. No mesmo dia, o vereador passará a receber R$ 677,87 a mais do que neste ano. O presidente terá um aumento de R$ 1.568,02 em relação a 2012. Diante das desproporções, se houvesse retorno em forma de benesses sociais, ainda assim o preço pago seria demasiado.
        Em porcentagem, temos um acréscimo de 20,05% para a posição de prefeito. Ao cargo de vice-prefeito o aumento será de 62,07%. Os vereadores terão elevados os seus subsídios em 29,19%, posto que o presidente da Câmara irá angariar 53,47% a mais do que no ano que corre. Caso os vereadores, prefeito e vice não tenham feito cálculo algum dessa natureza, pode ser interessante aproveitá-los para inserir na próxima ata da Câmara e nos informes do Executivo. Para a população, desatenta, desmemoriada e despreocupada que é, seria uma informação adicional que, por ventura, poderia surtir em qualquer coisa que assustasse o marasmo.
       Como em 2007, a política getulinense instituiu aumentos a si própria, o que convenhamos não é o mais apropriado a ser feito. Retomemos a idéia deixada nesta coluna em dezembro daquele ano: que se faça um plebiscito ou referendo para que a população vote a favor ou contra acréscimos salariais tão abusivos. Sobre isso, sejamos francos: quem, exceto os políticos, recebe aumento tão polpudo? Fora esse, a cada ano já existe alteração nos subsídios de prefeito, vice e vereadores, de acordo com o previsto em constituição, normalmente não ultrapassando os 5%. Eis a primeira coerência em relação ao que foi dito até então.
O ajuste dos trabalhadores comuns é baseado na inflação, índice que mede o poder do nosso dinheiro. Se o preço do que consumimos se eleva, é justo que tenhamos uma quantia maior de dinheiro para sobreviver. É preso a isso que o salário mínimo é reajustado. Como exemplo, em 1° de janeiro de 2012, o mínimo passou de R$ 545,00 para R$ 622,00, um aumento de 14,13%. Enfatizemos: uma mudança interessante, não fosse o valor mísero deste salário. Os políticos, além de desfrutarem de salários melhores, também lançam mão de reajustes mais elevados, com a diferença de que nós não escolhemos o que queremos ganhar.
Se política não é profissão implica afirmar que hoje alguém está político, mas amanhã pode não estar mais. Estado, caro leitor. Política é estado, o anseio intocável de ampliar a sensação de bem estar a seus concidadãos, durante um intervalo de tempo de quatro ou oito anos. Simultaneamente a isso, a maior parte dessa classe mantém ativas as suas atuações no ramo profissional privado, ou seja, dentro daquilo que lhe deu o sustento até assumir cargo público. Por isso, o subsídio deve ser simbólico, a ponto de não corromper as más intenções da carne. Cá para nós, as cifras atuais são pródigas nisso. Quem não tiver uma atuação paralela e julgar insuficiente o salário da política, que nem se candidate.
É inconcebível, em tempos de democracia permanente, não atentar ao que se estabeleceu: a política se tornou um ramo economicamente viável. Os seus ocupantes se perpetuam no poder, posto que o brasileiro reclama muito, mas protesta e reivindica em ninharia. Que emprego hoje, em Getulina, paga R$ 10.000,00 ao mês? É difícil pressupor tal disparate até ao mais qualificado de nós. Para os padrões da cidade, até o salário de R$ 3.000,00 é raro de se encontrar. Perceba como o dinheiro passa a chamar mais a atenção do que o sentimento de melhorar o local em que vive.
A justificativa que você e todos nós ouviremos é de que o reajuste irá valer para o próximo mandato e que despautério seria se fosse para já, mesmo porque há a possibilidade de nenhum deles desfrutar do que aprovaram, do que desejam, do que fazem suas bocas salivarem. Por outro lado, se levarmos em conta que boa parte da classe política que aí está irá pleitear uma vaga na câmara ou na prefeitura, nas eleições de outubro, temos uma medida aplicada em benefício próprio, ainda que indiretamente. Tenha certeza: muitos voltarão para mais quatro anos, nos braços do povo, pelos votos do povo, como sempre é, apesar da chiadeira em momentos pontuais.
Aquele que se candidata a cargo público disponibiliza suas vontades em prol do coletivo, mas se assim ocorrer com vistas à remuneração paga pelos contribuintes, que generosidade há em tal ato? É certo que o bom propósito há tempos passa distante do cenário político, mas que a população ao menos esteja alerta a isso. Logo mais, os postulantes atuais, os novos e os de sempre irão encostar em você e pedir votos, subir ao palanque, celebrar a vitória, já pensando nos compromissos, na burocracia, com pouca preocupação sobre o que propiciar à cidade e muita euforia com o que a cidade irá proporcionar a ele.

UM ADENDO A DARWIN

Se te disserem que o mundo vive, em todos os aspectos, a sua fase mais evoluída, ouça, pense e não acredite. É senso comum que a tecnologia tornou a vida nossa mais simples, o que deu à máquina ares de ser vivente para que nós, a dita espécie mais avançada, arrefecêssemos e acomodássemos mais. Nesse sentido, a história sempre tendeu o homem ao sedentarismo. Em resumo, desacelerar o ritmo do batimento cardíaco, cansar menos e fazer com que o meio à nossa volta nos servisse são anseios mais antigos do que a reflexão sobre o assunto. Não lamente: isso simboliza a singularidade humana. Só ela é capaz de criar, adequar, produzir cultura em prol de uma melhor sobrevivência.
            Os religiosos de plantão mais fervorosos irão me condenar, mas, acalmem-se: o homem nem sempre raciocinou, não apareceu ao mundo como se imagina, um produto acabado. Embora desafiador e provocativo, não leve Adão e Eva ao pé da letra. Entenda-os como um mito. O homem, no princípio, o homo habilis, era bastante semelhante a um animal. Até então, o nosso semelhante de 2 milhões a.C. não se locomovia como você. As mãos tinham como função principal cravarem-se no chão para levar o ser humano daqui para lá. Para se ter dimensão, só havia uma forma de saciar a sede: indo até a beira de um rio ou lago, agachando-se e levando a língua até o líquido. É evidente: esse indivíduo não pensava, e isso fazia dele uma criatura excessivamente limitada.



            A evolução, após milhares de anos, permitiu ao mesmo transformar-se em homo erectus. Presume-se que você, evoluído que é, imagine aqui alguém em pé, com semelhante postura à que temos atualmente. Com o bipedismo, o homem liberou as mãos e se tornou um caçador melhor. Diga-se: ao invés de se alimentar apenas de vegetais, o homem conquistou a propensão de comer carne, crua é bem verdade, uma vez que o fogo seria fruto de inteligência posterior e mais apurada. Os ácidos graxos da carne, aliados ao maior movimento das mãos (estímulos cerebrais), viabilizaram o crescimento da massa encefálica, e, pasme, a espécie humana começa a pensar. Não, amigo. Não suponha que uma picanha no churrasco de logo mais irá fazê-lo melhor amanhã. Isso requer tempo.
            Surge aquele que hoje é você, o homo sapiens, o homem sabedor. Agora, ele já não mais usa madeira, pedra e ossos de pessoas e animais, em estado bruto, para servi-lo de alguma forma, seja para uso próprio ou para a guerra. A idade da pedra lascada dá lugar à era da pedra polida, e o homem manuseia os elementos dispostos na natureza para atender-lhe com maior plenitude. Por exemplo, um chifre não serviria mais como copo. O recipiente usado para armazenar água ou qualquer outro elemento seria produzido com barro ou argila. Mas, tenha paciência. Não ultrapassemos etapas. Esse novo cenário não deu ao homem a liberdade de morar onde quisesse. Se hoje podemos habitar qualquer local, antes as aglomerações aconteciam em regiões ribeirinhas, prova de que hoje, quase sempre, é possível morar em qualquer lugar, e as redes de água que se incumbam de conduzi-la até nós. A capacidade de pensar é tamanha, se comparada a tempos anteriores, que ele nota que as cavernas podem ser úteis como proteção, especialmente contra as chuvas.
            Mas se a chuva já não mais era um problema, o frio continuava a ser, posto que as pedras geladas são impiedosas aos homens desprevenidos. E como quem se esfrega para espantar o tempo gelado, eis que a criatura esfrega uma madeira na outra. Surge a fumaça, indício daquilo que todos sabemos. O humano não sente mais frio, tem boa visão do ambiente em que se encontra, mas acaba por chamar a atenção de alguém que, antes dele, já havia concebido a ideia de lá se instalar: o urso.
            Na lei da sobrevivência, o homem precisava reagir ao instinto do animal de atacar a sua presa. E ao vencer o bicho, o bicho-homem solucionou dois problemas: sentiria menos ainda o impacto do frio, já que a pele do urso daria-lhe proteção ante o vento frio e às suas vergonhas; e passava a desfrutar ali de um suculento banquete. Pode parecer heresia – embora de heresias os julgadores são repletos – mas as primitivas manifestações religiosas, de ordem espiritual, foi do homem em relação ao urso. O bicho humano, em gratidão pela carne e pele, guardava os ossos do animal como forma de cultuá-lo. Qualquer semelhança com a nossa dependência, hoje, do peixe, do frango, do gado, do porco não é detalhe. Não é preciso dizer que, igualmente, os cemitérios de hoje são herança desse tempo. Fazendo o mesmo com os seus semelhantes, o homem preservava a memória de seus contemporâneos e cultivava a sensação de proximidade.



            Para estender esse afeto às gerações posteriores, o homem desenvolve a fala, mesmo porque, ao contrário de antes, agora ele se relaciona em grupo, e não mais com três ou quatro pessoas apenas. Insaciado, por que, além da fala, não usar outro artifício para registrar a história? Vamos com calma. A escrita é de um período seguinte. Fiquemos no momento com as pinturas rupestres, os desenhos feitos nas paredes das cavernas, contando a história com didatismo aos que viriam depois. A escrita seria desenvolvida a partir do ano 10 mil a.C., como forma de perpetuar suas experiências, marcando o encerramento da pré-história.
            Afeto. Outro sinal de evolução humana. O ser que, assim como um animal qualquer, não convivia de forma intensa com um igual. Além da amizade, iniciamos a discussão aqui sobre o casal. O sexo, antes executado pelo humano assim como os animais – a fêmea na frente, com mãos e joelhos encostados no chão, e o homem atrás, apoiando as mãos no quadril ou passando os braços pelo abdome da mulher –, sem afeto, sem zelo pela companheira, agora tem não mais uma qualquer, mas a sua parceira de sexo, da vida, voltada para si. Agora de frente um para o outro, o casal se olha, se ama e multiplica-se. Investe-se conscientemente na concepção de que é necessário e válido perpetuar a espécie para que ela sempre se aprimore.
            À medida que o homem, convivendo em sociedade, evoluía, criava-se a gana por conquistas, e os encontros e confrontos entre lados distintos foram inevitáveis. E nada escancarou tanto as diferenças culturais quanto, muito tempo depois, já entre o final do século XV e começo do XVI, o desembarque do europeu nas Índias e na América. A desavença entre brancos e povos nativos, disfarçada inicialmente pela ilusão de relação amigável, foi o estopim para externar a nem tão deflagrada evolução.
            Mas motivos de sobra para o contrário havia. O Renascimento Cultural, um pouco antes, e o Iluminismo, na sequência, levantaram a bandeira da independência do homem pelas vias do conhecimento. As pesquisas, os experimentos científicos comprovavam o que a religião convenientemente tentou ocultar, mentira esta consentida pela política. E a filosofia moderna e a ciência abriram caminho para a soberania do homem, passando este a ser objeto e sujeito da própria história, e não mais voltar a Deus o que de mais banal e medíocre acontecia a si. Lembre-se de Caetano: “o sol sobre a estrada, é o sol sobre a estrada, é o sol”.



            Mas se o Renascimento e as Luzes vieram para livrar o homem do jugo da Igreja e do Estado, o que faz de nós tão frágeis? Criamos tantas condições para vivermos plenamente, que acabamos por folgar. A preguiça e a acomodação contradizem tudo o que foi construído e questiona o homem sobre os esforços empreendidos em tantas conquistas, criações, aperfeiçoamentos. Contrariando a lógica, apequenou-se diante de tamanhos requintes, para tomar contra si a fortaleza criada.
            Não satisfeito com o que é permanente, necessita da rotatividade para saciar-se. A roupa, o carro, a mobília, os relacionamentos, a música, tudo dura pouco. Os sofás descolorem e rasgam facilmente. O fogão e a geladeira quebram cedo. Carros saem da fábrica com defeitos. Casais fazem questão de não se entenderem e, por motivo tolo, abandonam-se. A música lançada hoje, animada, repetitiva, pobre, entediante, cai na rotina, e nunca mais será lembrada. Isso explica por que os grandes de antes, de séculos, são enaltecidos até hoje. Nós queremos a alternância, a pouca durabilidade de tudo, porque chato seria se um mesmo objeto ou alguém nos acompanhasse por muito tempo, como era antes. Sob o nosso aval, aquilo que nos dedicamos em ter escapa-nos pelas mãos. Inesgotáveis, queremos sempre algo novo, negando a herança de renascentistas e iluministas, visto que essa ânsia nos tornou superficiais. Permitiram ao homem ser autônomo, mas regredir pareceu ser vocação indissociável da criatura humana.
            As propagandas, deliberadamente, mentem. Elas exploram, porque este o seu papel, as fragilidades do homem, um ser repleto de calcanhares por todos os lados. Persuadem os nossos devaneios, a loucura de se esconder em qualquer fabricação. E a ilusão de ter o produto para ser melhor acomete a geração do conhecimento, do saber. Mas isso é só um rótulo. Conhecer, pesquisar, saber, deduzir, refletir, concluir, tudo isso dá muito trabalho, é cansativo e demorado. Ainda que o final seja prazeroso, chegar ao fim para quê? Se o percurso é longo, melhor optar pelo atalho, pelo caminho mais breve. Descartar e ser descartado é parte desse enredo que traiu um passado glorioso.
            Em meio ao discurso que prega o “quis o destino”, o “se Deus quiser”, o homem semeia o que quer para si. Se for de sua vontade, não acredite que o homem evoluiu da condição de um quase-animal para alguém capaz de construir aviões e naves espaciais. Se não for de sua vontade, não acredite que a humanidade também regride, apesar de toda aparente sofisticação à nossa volta. Está aos olhos de quem desejar que o homem criou instrumentos e condições de viver bem melhor do que antes. Talvez não desejamos andar para trás, rumo à época do transporte manual ou sem a tão bem-vinda roda. Talvez não seja interessante retornar ao tempo em que os animais e as plantas não eram domesticados, e o homem só destruía, ao invés de produzir o seu próprio sustento. Porém, nem só de evolução viveu o ser humano ao longo da sua história. É mais cômodo discordar disso.

“EM SEU LOUVOR HEI DE ESPALHAR MEU CANTO”

O óbvio seria falar sobre mães. Mas como quase todos, eu só tenho uma, e o texto ficaria limitado a falar só dela, já que seria pressupor demais discorrer sobre o todo materno. Melhor escrever sobre as mulheres, aquelas que são mães, que serão, que já foram, que poderiam ter sido ou que tiveram filhos, mas nunca foram. Aquela com a qual nos relacionamos mesmo antes de habitar este mundo, as protagonistas do mais incrível milagre. Seja como marido, filho ou irmão, seja cunhado, sogro ou genro, haverá, há ou houve alguma mulher que certamente não passou despercebida por você. Porque elas jamais passam, meramente.
        Comecemos pelo princípio. A mulher é ponto de discórdia desde os primeiros dias da existência humana. E acabou nas suas costas uma culpa que não fora só dela. O pecado recriminado por Deus e por nós, hipócritas de sempre, teve como fundamento a fraqueza do homem e a maldade da serpente. Enfim, dividir a culpa em três é o mais justo, e o Senhor sabe muito bem disso. Mas como para a humanidade é sempre mais cômodo eleger um vilão, eis que a mulher entrou para a história por ser a primeira, e até pouco tempo atrás sofria os efeitos disso, graças à nossa falta de bom senso e à ignorância de Estado e Igreja.
            À parte essas questões institucionais e históricas, temos a mulher em seus traços mais abstratos, com toda a imprevisibilidade, complexidade, intensidade e o fato de serem imprescindíveis aqui e acolá, ontem e sempre. Se assim não fosse, Chico, Tom e Vinícius teriam dito tudo. Embora dissessem muito, pouco se tem sobre elas, posto que poesia alguma é suficiente para contemplar a totalidade dessas criaturas amáveis, valentes e temidas pelos homens que prezam pela sua macheza. A mulher é tudo isso, não é só isso e, portanto, a queremos com empenho e paixão.



            É evidente que esteticamente é mais sedutora que o homem. Ao colocar lado a lado, completamente nus, o corpo de uma mulher e de um homem, de mesma altura, peso e envergadura, adivinhe qual será o mais belo. Sim, as curvas empolgantes e tentadoras são capazes de ferir os corações nossos, fazer-nos perder o juízo, colocar-nos de joelhos. É fatal ao homem e à outra mulher também, que se coça, atenta, a encontrar um defeito para se tranquilizar de que não é só ela a imperfeita.
            Mas mulher alguma é sem ressalvas, uma vez que, se fosse, chata seria, sem graça seria, nada seria. E o fato de possuírem desvios é o que nos atrai ainda mais, é o que as torna humanas, semelhantes a nós, embora reverenciadas como a deusa premeditada, a alma intocável, o espírito apaixonante. É evidente, algumas são impiedosas e machucam os mais frágeis que confundem amor com a enganosa idéia de possessão infinita. Uma mulher nunca é de ninguém, caro leitor, e isso nos ajuda a desejá-la ainda mais, a buscá-la todos os dias.
            Agora, o maior e mais difícil dos mistérios humanos é entender o que pretende uma mulher. Ela não fala o que quer, e quando fala já não quer mais. Os hormônios à flor da pele, da tão rememorada e inesquecível TPM, fazem da mulher uma arma, que desafia e desperta nos homens o anseio inesgotável de traduzi-la. Quando do período das três letras – melhor não ousar pronunciar o significado –, os três, quatro ou cinco dias parecem durar a vida toda, uma vida de agressividade da qual eu, você e ela queremos nos livrar. A dita cuja sangra o homem, mas a fragilidade de estar exposta ao ímpeto desmedido faz da mulher uma vítima de si mesma. É recomendado, pois, evitar o confrontamento nesses dias, com sérios riscos de derrota para o lado masculino. Se isso der certo – e dará –, um carinho aqui, uma palavra amorosa ali são boas opções para resguardar o relacionamento e fortificar a felicidade.



           Por natureza, a mulher é egoísta. Experimente contrariá-la sobre algo já concretizado na sua cabeça. Ou é do jeito dela ou é bronca e braveza para dar e vender. Mas, pense: que mulher não fica mais linda quando está enfurecida? Não são raras as vezes que as provocamos para soltar delas uma sobrancelha contorcida, um olhar fulminante, os lábios falantes, excitantes, relutantes. E quando elas conversam? Todas falam, ninguém se ouve. O choro e o sorriso de uma mulher permeiam olhos e ouvidos. Não há quem passe impune por tamanhas reações. Sucumbir a essas e outras idiossincrasias faz parte de um romance e tanto.
            A contrapartida disso é a palavra reconfortante, a respiração leve, a mão que puxa nos momentos de maior dificuldade. A mulher tem a sensibilidade de ver ao que o homem não está apto, de sentir o que de nós passa distante, e a lucidez impera ao nos orientar sobre a melhor escolha. Mas a sensibilidade vira fragilidade quando, ao invés de uma mão sutil, o homem toca a face feminina com tapas e socos. Buscar justificativas para isso é atestar-se covarde. Quem tem uma mulher ao lado, seja você macho ou fêmea, tem maior chance de sobressair nos contextos mais pavorosos. Se não der, fique tranquilo: ela estará com você até o final, embora algumas exceções fujam a isso, por oportunismo, maledicência e comodismo. Nos descartam, nos trocam, nos traem, nos fazem morrer pela primeira vez.
            Não a uma, mas a todas as mulheres dedica-se a coluna de hoje. Ao perfume e ao sorriso femininos, que enobrecem a mulher e nos tornam mais confiantes por estarmos com elas de mãos dadas. À sensualidade e delicadeza que tomam de assalto o corpo de um homem ou de outra mulher. A você, mulher, que trabalha em casa, que trabalha fora, que trabalha lá e cá ou que trabalhou muito e agora descansa, aposentada. A você que briga com o marido, com o filho, com o namorado, com o genro, com o cunhado, com o irmão ou com a companheira do mesmo sexo, mas que no fundo os ama incondicionalmente. Ao beijo, à pele macia e à bondade que teimam em nos convencer daquilo que sabemos: de que você, mulher de todos os lugares e idades, é a herança mais humana, doce e bela que desabrochou nesta terra.

A SERPENTE NÃO RASTEJA

Era manhã de domingo, e os fiéis começavam a tomar as dependências da capela, no centro da cidade. O costume dominical era avistar a igreja sempre cheia, já uma hora antes da cerimônia. De praxe, as celebrações costumavam principiar às oito da manhã, naquela pontualidade britânica que poucos cumprem – inclusive este que vos escreve, amigo leitor.
Bancos e poltronas tomados, cabia à comitiva católica levar até o altar o padre. Sim, padre é aquele homem – e quase sempre homem, pois raras são as madres – que tem a incumbência de proferir os ensinamentos bíblicos aos cristãos católicos. É bem verdade que as orientações tomam, por vezes, rumos desorientados, e julgamentos e sermões praguejam os ouvidos pouco tolerantes a tradicionalismos excessivos.



O fato é que a missa mal havia começado e a autoridade máxima da capela solicitou um minuto de silêncio como reflexão à infância abandonada, que recebe maus tratos, que é inserida nas drogas e nos crimes e sofre abusos de gente adulta sem a menor compaixão. Não, o padre não tinha a consciência pesada. A angústia não afetava o dito cujo simplesmente porque a falha jamais trafegara naquela índole. Ele estava acima de qualquer ressalva.
Antes do pontapé inicial, um adendo às mulheres, na religião católica. Embora o Vaticano seja integralmente machista, posto que nos corredores do alto escalão da Igreja apenas homens são vistos, as prerrogativas bíblicas são claras: as Marias detêm papel de fundamental relevância na breve trajetória de Cristo, enquanto ser carnal, isso sem falar em Verônica, cujo destino fora enxugar a face ensangüentada de Jesus e eternizar suas feições. Diante disso, se a função da mulher, dentro da Igreja, fora relegada a qualquer outro sub-patamar é devido às vocações humanas de ambição e interesse. E só.
Bom, voltemos à missa. O padre, com dez anos de batina, jamais tivera tramitado pela saliência. As mulheres eram maioria em suas pregações. Não só pela fé, mas pela abundância de macho que ali se colocava. Era uma beleza incomum, inédita, original, distribuída em quase 1,85 metro de altura, muita teologia e filosofia de repertório e timidez em excesso. Era a perfeição em forma de celibato, compromisso, aliás, seguido com fidelidade intocável até então. Em suma, era um exemplo do humano calcado na virtude.



Mas até aquele dia. Porque a partir daquela demarcação temporal o seu corpo sofreria reações excessivas. A respiração descompassada, o coração batendo em ritmo desigual, o suor na face, nas mãos e a agitação indomável denunciariam a mudança de conduta, a entrega completa ao que a mente tenta negar, mas o físico requer.
O cântico inicial estava prestes a arrematar a introdução, o que automaticamente deixaria o gancho para as boas vindas daquela figura paterna, ao alcance do mais miserável dos homens. Mas era notório que as condições para se iniciar o ritual eram distintas em relação a qualquer outro dia. Sejamos mais detalhistas no evento que tirou o padre de si e o levou a uma dimensão que jamais frequentara.
Assim que assumiu o púlpito, com o microfone nas mãos, mas não a postos, analisava todas as suas anotações sobre a leitura do Evangelho. Revia para se certificar de que nenhum comentário pertinente ficaria à margem da sua fala, sempre amparada numa linguagem singular, num Português simples e correto, numa desenvoltura que os oradores mais audazes admirariam. Por essas e outras, era, para o povo local, um semi-Cristo.
E pouco antes de tirar os olhos dos seus escritos, eis que o perfume das flores mais belas e raras ensandeceu a mente daquele pobre mortal. O aroma tomava cada parte de seu corpo, e a razão católica entrava em colapso. Não, caro leitor, até ali ele não avistara nada semelhante a uma silhueta feminina, mas era de seu conhecimento que o torpor instaurado não lhe era compatível. Quando ele ainda nem havia buscado a imagem, o contentamento de sensações o fez fechar os olhos e apenas imaginar. O desconhecido o enclausurava, fulminava aquele corpo outrora intocável e agora vulnerável, o caráter transparente, botando de joelhos quem achava que poderia passar impune a belas e inigualáveis abstrações.



Foram poucos segundos, até que ele caiu em si e rememorou-se das proibições que lhe imputaram. O medo de pecar tornava aquele homem vigilante de si mesmo, mas os pensamentos insanos escapavam ao seu controle, e ele já ansiava deparar-se com a sua imaginação. Mesmo sabendo de suas limitações, inerentes à escolha que havia feito há dez anos, não titubeou. Olhou ao lado direito, porque sabia que dali vinha a essência e a essência do que ele nunca possuíra também lá se encontrava.
Mas era tarde. Quando olhou diagonalmente só viu um vulto. A primeira pilastra, uma das que separavam área central do corredor, engolia a criatura lentamente, mas o suficiente para tirar dele – do padre – a figura que tanto queria deliciar. Na fração de segundos posterior, ele supunha que aguardar a fêmea apontar do outro lado da pilastra seria denunciar o seu desejo, já que os fiéis olhavam-no com empenho no aguardo das primeiras palavras.
Não, inquieto leitor, ele não poderia despender um segundo que fosse para sair do foco. Seria uma calamidade, uma decadência pública de sua vida intocável. Optou por não se arriscar, mesmo que o intuito fosse bem maior que a precaução. Abaixou a cabeça e deixou aquele corpo que ainda não vira, aquele calor que ainda não sentira, aquela pele que ainda não tocara, distanciar-se.
Ao final do cântico, voltou seus olhos à platéia para mencionar o primeiro “bom dia” e encaminhar o que todos esperavam, mas o que ele cogitava não ser capaz. E a profecia se consumou. A inquietude de encontrar o que tinha perdido levou seu olhar ao fundo, por onde passava a dona do perfume de antes, proprietária do vulto mais destemido, portadora da pele excitante, das curvas sinuosas e chamativas.
Resistir à vontade tornou-se esconder da multidão o que a sua mente já resignava. Livrou-se do microfone, desceu os degraus do altar e disparou pelo corredor central com o coração na boca e aos berros. Ao passo que os curiosos e assustados católicos acompanhavam a trajetória da batina flutuante, a mulher por quem o homem chamara parava, amedrontada de certa forma. Em frente a ela, pôs uma mão em cada face do rosto feminino e disse com a convicção dos amantes mais sinceros que a amava, como nenhum hipócrita havia amado alguém em uma vida inteira.

O FRUTO PROIBIDO DE TODOS OS DIAS

Bem, como se sabe, no princípio Deus criou os céus e a Terra, e esta, por sua vez, era sem forma e vazia. Depois, vieram os oceanos e o firmamento, dando uma configuração semelhante a isso que serviria à humanidade como morada e, aparentemente, único local habitável por seres com a nossa constituição. Embora, é bom que se diga, o quão estranho é existirem tantos outros planetas que de parecidos com a Terra só possuem o formato.
Enfim, o fato é que ao final dos sete dias, ou muito mais do que isso, Deus já havia feito tudo, descansado e criado a sua obra mais impressionante. Mas Adão e Eva caíram em tentação, e a desobediência de ambos fez com que as gerações posteriores se desenvolvessem tão corrompidas, a ponto do Criador desaprovar a criatura e o que esta fez a si própria e incumbir o bom e velho Noé de construir uma engenhoca à que se atribuiu o nome de arca. Nela deveriam ser colocados toda a sua família e animais das mais variadas espécies, voadores ou terrestres, e todo o resto seria extinto.
Durante quarenta dias e quarenta noites choveu, o que se convencionou chamar de dilúvio, e após 150 dias as águas começaram a recuar, encontrando a arca refúgio em solo firme no sétimo dia do sétimo mês. Mas o corvo e a pomba anunciavam quantidade de água ainda imprópria à vida. Quando Noé soltou a ave branca pela segunda vez e ela não mais regressou, era de se imaginar que tudo voltara ao habitual, e Deus os ordenou que descessem. “Sede fecundos, disse-lhes ele, multiplicai-vos e enchei a Terra” (Genesis 9:1).



Foi comum, ao longo da história que nos trouxe até aqui, deturpar a escritura para atender a interesses particulares e escusos. Mas nos prendamos à frase anterior que, isoladamente, se encarrega de prolongar discussões por todos os cantos. E é desperdício utilizar qualquer objeto para segregar, ao invés de mobilizar o todo em torno de uma idéia generosa e favorável ao convívio, e não à desavença.
Falamos aqui da homossexualidade e de como alguns grupos se apropriam, no caso, da Bíblia para emitirem apreciações respaldadas, no sentido de transformar suas percepções e opiniões em normativa. As intrigas são criadas como sempre foram: em nome de um ser superior a tudo o que é terreno, legalizando comportamentos preconceituosos e que em nada ajudam no debate sobre as melhorias sociais necessárias.
Quando Deus ordena que a espécie humana se perpetue, as conclusões podem ser inúmeras e não apenas uma. Mesmo havendo uma determinada quantidade de homossexuais – uma minoria –, a criatura humana, como é comprovado, continua a crescer. A multiplicação não fica comprometida pela natureza sexual desse ou daquele, mesmo porque se um casal homossexual não reproduz, o hétero tem a possibilidade de gerar descendentes, e é dessa forma que a espécie em questão continua a prosperar, ao menos na quantidade.
Nessa discussão, o gay não inviabiliza o avanço. Sendo assim, seria injusto cobrar dele uma tendência contrária à sua vontade. A composição hormonal de alguém é que o leva a atrair e sentir-se atraído por outra pessoa do sexo oposto ou por um igual. Embora seja da índole de alguns, a excessiva maioria dos homossexuais escolhe um parceiro do mesmo sexo não para desafiar o contexto vigente, destruidor de minorias, ou somente para experimentar uma nova sensação, mas sim porque o afeto só pode ser completado dessa forma. Está acima da sua capacidade lutar contra isso – e nem deve – só porque a sociedade e supostamente Deus abominam.



Isso posto, a multiplicação humana depende de tantos outros fatores mais importantes, relegados pela sociedade. Pensemos em alguns elementos fundamentais à vida: moradia, alimentação, salários justos, saneamento básico, segurança, trânsito poderiam tornar o projeto humano mais viável e sucedido do que o atual. A violência disseminada, as remunerações mirradas, a imprudência e a negligência no volante e condições insalubres de vida atentam muito mais contra o legado bíblico do que a união homoafetiva, podendo impedir o avanço ou elevando-se, mas sem a qualidade elementar.
Faria muito mais sentido a política vigente, que vaga assombrosa por todos os lados, ser combatida pelo patrulhamento religioso. Na outra ponta, a sociedade como um todo tem a sua parcela de não contribuição, ao permitir que se faça menos do que deveria, ao suportar mais do que deveria. Se de outro modo fosse, a falta daquelas condições básicas elencadas anteriormente seria menos sentida. Nesse aspecto, os religiosos de plantão, que abominam a homossexualidade, deveriam falar menos, julgar menos, fazer um pouco mais, atuando em cima das deficiências que fazem a diferença.
Não é porque a história começou errada que qualquer deslize posterior deva ser relevado. Discute-se aqui que a homossexualidade não é um erro, mas uma situação natural, uma tendência, algo inato e, como tal, deve ser honrado, respeitado. Se a corrente histórica nos leva a crer que a humanidade continuará crescendo, independente da composição genética e hormonal, preocupemo-nos, pois, com o que é realmente decisivo para a continuidade da nossa espécie. Atos verdadeiramente pecaminosos poderão ser evitados, não extirpando liberdade e amor, dois dos direitos inalienáveis do ser humano.

O BELO E O PODRE DO FUTEBOL

Os últimos dias foram pródigos em boas notícias envolvendo o futebol. Tanto foi assim, que nem o marasmo que acometeu esta coluna por quatro meses resistiu e convidou-me novamente a registrar algumas apreciações que, espero, permitam a mim e a ti concordarmos ou não com isto e aquilo.
A cada nova exibição de gala – e cada vez menos elas são novas e mais corriqueiras – há uma tendência de equiparar o argentino Lionel Messi a alguém, como se a comparação fosse fundamental para mensurar a monstruosidade desse jogador. E tem sido muito comum inserir Pelé na outra ponta desse jogo de semelhanças, tido como o maior jogador de futebol de todos os tempos. Vamos por parte.
Que Messi é, hoje, o maioral dos gramados mundiais, parece não restar muita dúvida. Não seria exagero colocá-lo em um nível à parte dos demais atletas. O argentino faz aquilo que o futebol mais espera dos seus expoentes: encanta, surpreende, decide. Messi tem o domínio quase que integral do repente, do inesperado, daquilo que se torna óbvio.



A cada passo, um toque. A cada toque, o gol mais próximo. A cada proximidade, o tento. Mesclar objetividade e fantasia sempre foi a predileção dos amantes desse esporte que diverte e arrebata corações no mundo todo, que é capaz de entreter e despertar os maiores desatinos entre amor e ódio. Concordo, Messi é o que é porque tem um time às suas costas extremamente organizado e seguro de si, facilitando as suas peripécias em terrenos ofensivos. Mas o que ele faz individualmente impressiona, porque assim é contra qualquer time do mundo.
Até por isso, outra comparação é indevida. Tentou-se, há pouco mais de duas semanas, comparar o feito de Messi ao de Neymar, algo imensamente propagado pela nossa mídia. O santista é, sim, o principal nome do futebol brasileiro, também capaz de fazer do lapso um desafio pequeno. Mas compará-lo a Messi é de uma injustiça e inverdade grandiosas, como se a disputa entre ambos em dezembro ainda não estivesse fresca na memória de quem assistiu à final do mundial de clubes. Falta muito ao brasileiro, nada que o tempo não possa construir alguns alinhamentos, embora este que vos escreve duvide que alguém desta geração encante platéias como o argentino.
Falando de Pelé, o brasileiro conquistou três mundiais pela seleção, dois pelo Santos, duas libertadores e tantos outros títulos entre nacionais e estaduais, além de ter somado mais de 1200 gols. Não que Messi necessite desses números para atingir o nível de Pelé, mesmo porque trata-se de números coletivos, galgados e conquistados em conjunto. O que conta é o que se faz de incrível, inacreditável, improvável contra o oponente no mano a mano. A técnica e inteligência que o atleta usa para inserir o coletivo numa situação favorável. Ou seja, aquele que define jogos, decisivo para conquistar campeonatos, o que leva o seu torcedor a enaltecê-lo e o público oponente a entregar-se à dura missão de reconhecer que do lado de lá existe alguém brilhante.
Mas é necessário fazer algumas ressalvas. As épocas são diferentes. Pelé jogou em um futebol mais lento, possivelmente mais fácil de se sobressair. Messi tem a seu favor a tecnologia de bolas, uniformes e chuteiras, o que deixa o nivelamento entre períodos diferentes ainda mais prejudicado. Por isso, quando o conterrâneo de Maradona encerrar a carreira daqui a mais ou menos 15 anos ficará mais fácil comparar, analisando trajetórias, ao invés de se prender a um jogo aqui, outro ali, mesmo porque ambos têm, de sobra, momentos sublimes aqui e ali. Na dúvida, fiquemos com os dois, posto que desnecessário e dispendioso excluir este ou aquele.



Quando a imprensa não se conscientiza de que comparações diminuem o futebol, desperdiça um bom momento para agregar, enaltecer a transcendência do esporte. O conflito entre dois expoentes exclui o que o futebol tem de melhor: a diversidade, a infindável renovação do espetáculo. Por julgar que instituir “o melhor é” – porque muitas vezes é isso que o público quer –, o jornalismo regride e perde a chance de celebrar.
Outra atuação questionável da imprensa, mais precisamente dos canais e programas vinculados às organizações Globo, durante as últimas semanas, foi com relação à renúncia do agora ex-presidente da CBF e do Comitê Organizador Local da Copa, Ricardo Teixeira. Após 23 anos de gestão, o cartola abriu mão do cargo, visto que no momento havia mais ônus do que qualquer outra coisa por estar em evidência.
Teixeira se apoiou na CBF para transformar a Seleção Brasileira em uma máquina de fazer dinheiro, ao mesmo tempo em que esta perdeu qualquer relação afetiva com a sua torcida e, consequentemente, os seus atletas passaram a ter menos noção do que é atuar pela Seleção, mesmo em torneios importantes como a Copa do Mundo. Amistosos suspeitos, adversários desconhecidos e uma gama de patrocinadores que se revertidos em evolução ao futebol brasileiro como um todo seriam bem-vindos. Mas isso só trouxe louros à Confederação e, adivinhe, a Ricardo Teixeira.
A Globo, por sua vez, por possuir os direitos exclusivos de transmissão dos jogos do Campeonato Brasileiro e da Seleção, recusa-se a mencionar o nome de Teixeira atrelado a fatos negativos – e olha que não são poucos –, a emitir uma crítica à forma como é organizado o nosso futebol, e, na semana retrasada, houve repercussão mínima sobre a renúncia, como se existisse uma sociedade, um acordo entre ambos, quando o que há é o pagamento da emissora para a concessão de um produto por parte da entidade. Enfim, uma troca.
O jornalismo da emissora se limitou a enaltecer as conquistas da Seleção na sua era, trechos da carta escrita pelo cartola, além de mencionar que durante a sua gestão foi organizado um campeonato de pontos corridos, mais organizado e com todas as datas do torneio pré-estabelecidas, medidas inclusive indesejadas pela Globo e pelo próprio Teixeira.
O sentido que se tem hoje do futebol mudou. Se antes a diversão conduzia os torcedores a lotarem estádios e os jogadores a serem mais irreverentes e menos máquinas, hoje se transformou em um negócio extremamente lucrativo. A televisão encabeça essa tendência, submetendo parte considerável do jornalismo a cumprir protocolos pré-acordados. Mas se em meio a notícias tendenciosas e pouco esclarecedoras você não souber o que fazer, revolte-se contra as corrupções de todas as áreas e regozije-se a Messi.