Se te disserem que o mundo vive, em todos os aspectos,
a sua fase mais evoluída, ouça, pense e não acredite. É senso comum que a
tecnologia tornou a vida nossa mais simples, o que deu à máquina ares de ser
vivente para que nós, a dita espécie mais avançada, arrefecêssemos e
acomodássemos mais. Nesse sentido, a história sempre tendeu o homem ao
sedentarismo. Em resumo, desacelerar o ritmo do batimento cardíaco, cansar
menos e fazer com que o meio à nossa volta nos servisse são anseios mais
antigos do que a reflexão sobre o assunto. Não lamente: isso simboliza a
singularidade humana. Só ela é capaz de criar, adequar, produzir cultura em
prol de uma melhor sobrevivência.
Os religiosos de plantão mais
fervorosos irão me condenar, mas, acalmem-se: o homem nem sempre raciocinou,
não apareceu ao mundo como se imagina, um produto acabado. Embora desafiador e
provocativo, não leve Adão e Eva ao pé da letra. Entenda-os como um mito. O homem,
no princípio, o homo habilis, era
bastante semelhante a um animal. Até
então, o nosso semelhante de 2 milhões a.C. não se locomovia como você. As mãos
tinham como função principal cravarem-se no chão para
levar o ser humano daqui para lá. Para se ter dimensão, só havia uma forma de
saciar a sede: indo até a beira de um rio ou lago, agachando-se e levando a
língua até o líquido. É evidente: esse indivíduo não pensava, e isso fazia dele
uma criatura excessivamente limitada.
A evolução, após milhares de anos,
permitiu ao mesmo transformar-se em homo
erectus. Presume-se que você, evoluído que é, imagine aqui alguém em pé,
com semelhante postura à que temos atualmente. Com o bipedismo, o homem liberou
as mãos e se tornou um caçador melhor. Diga-se: ao invés de se alimentar apenas
de vegetais, o homem conquistou a propensão de comer carne, crua é bem verdade,
uma vez que o fogo seria fruto de inteligência posterior e mais apurada. Os
ácidos graxos da carne, aliados ao maior movimento das mãos (estímulos cerebrais),
viabilizaram o crescimento da massa encefálica, e, pasme, a espécie humana
começa a pensar. Não, amigo. Não suponha que uma picanha no churrasco de logo
mais irá fazê-lo melhor amanhã. Isso requer tempo.
Surge aquele que hoje é você, o homo sapiens, o homem sabedor. Agora,
ele já não mais usa madeira, pedra e ossos de pessoas e animais, em estado
bruto, para servi-lo de alguma forma, seja para uso próprio ou para a guerra. A
idade da pedra lascada dá lugar à era da pedra polida, e o homem manuseia os
elementos dispostos na natureza para atender-lhe com maior plenitude. Por
exemplo, um chifre não serviria mais como copo. O recipiente usado para
armazenar água ou qualquer outro elemento seria produzido com barro ou argila.
Mas, tenha paciência. Não ultrapassemos etapas. Esse novo cenário não deu ao
homem a liberdade de morar onde quisesse. Se hoje podemos habitar qualquer
local, antes as aglomerações aconteciam em regiões ribeirinhas, prova de que
hoje, quase sempre, é possível morar em qualquer lugar, e as redes de água que
se incumbam de conduzi-la até nós. A capacidade de pensar é tamanha, se
comparada a tempos anteriores, que ele nota que as cavernas podem ser úteis
como proteção, especialmente contra as chuvas.
Mas se a chuva já não mais era um problema,
o frio continuava a ser, posto que as pedras geladas são impiedosas aos homens
desprevenidos. E como quem se esfrega para espantar o tempo gelado, eis que a
criatura esfrega uma madeira na outra. Surge a fumaça, indício daquilo que
todos sabemos. O humano não sente mais frio, tem boa visão do ambiente em que
se encontra, mas acaba por chamar a atenção de alguém que, antes dele, já havia
concebido a ideia de lá se instalar: o urso.
Na lei da sobrevivência, o homem
precisava reagir ao instinto do animal de atacar a sua presa. E ao vencer o
bicho, o bicho-homem solucionou dois problemas: sentiria menos ainda o impacto
do frio, já que a pele do urso daria-lhe proteção ante o vento frio e às suas
vergonhas; e passava a desfrutar ali de um suculento banquete. Pode parecer
heresia – embora de heresias os julgadores são repletos – mas as primitivas
manifestações religiosas, de ordem espiritual, foi do homem em relação ao urso.
O bicho humano, em gratidão pela carne e pele, guardava os ossos do animal como
forma de cultuá-lo. Qualquer semelhança com a nossa dependência, hoje, do
peixe, do frango, do gado, do porco não é detalhe. Não é preciso dizer que,
igualmente, os cemitérios de hoje são herança desse tempo. Fazendo o mesmo com
os seus semelhantes, o homem preservava a memória de seus contemporâneos e
cultivava a sensação de proximidade.
Para estender esse afeto às gerações
posteriores, o homem desenvolve a fala, mesmo porque, ao contrário de antes,
agora ele se relaciona em grupo, e não mais com três ou quatro pessoas apenas.
Insaciado, por que, além da fala, não usar outro artifício para registrar a
história? Vamos com calma. A escrita é de um período seguinte. Fiquemos no
momento com as pinturas rupestres, os desenhos feitos nas paredes das cavernas,
contando a história com didatismo aos que viriam depois. A escrita seria
desenvolvida a partir do ano 10 mil a.C., como forma de perpetuar suas
experiências, marcando o encerramento da pré-história.
Afeto. Outro sinal de evolução
humana. O ser que, assim como um animal qualquer, não convivia de forma intensa
com um igual. Além da amizade, iniciamos a discussão aqui sobre o casal. O
sexo, antes executado pelo humano assim como os animais – a fêmea na frente,
com mãos e joelhos encostados no chão, e o homem atrás, apoiando as mãos no
quadril ou passando os braços pelo abdome da mulher –, sem afeto, sem zelo pela
companheira, agora tem não mais uma qualquer, mas a sua parceira de sexo, da
vida, voltada para si. Agora de frente um para o outro, o casal se olha, se ama
e multiplica-se. Investe-se conscientemente na concepção de que é necessário e
válido perpetuar a espécie para que ela sempre se aprimore.
À medida que o homem, convivendo em
sociedade, evoluía, criava-se a gana por conquistas, e os encontros e confrontos
entre lados distintos foram inevitáveis. E nada escancarou tanto as diferenças
culturais quanto, muito tempo depois, já entre o final do século XV e começo do
XVI, o desembarque do europeu nas Índias e na América. A desavença entre
brancos e povos nativos, disfarçada inicialmente pela ilusão de relação
amigável, foi o estopim para externar a nem tão deflagrada evolução.
Mas motivos de sobra para o
contrário havia. O Renascimento Cultural, um pouco antes, e o Iluminismo, na
sequência, levantaram a bandeira da independência do homem pelas vias do
conhecimento. As pesquisas, os experimentos científicos comprovavam o que a
religião convenientemente tentou ocultar, mentira esta consentida pela
política. E a filosofia moderna e a ciência abriram caminho para a soberania do
homem, passando este a ser objeto e sujeito da própria história, e não mais
voltar a Deus o que de mais banal e medíocre acontecia a si. Lembre-se de
Caetano: “o sol sobre a estrada, é o sol sobre a estrada, é o sol”.
Mas se o Renascimento e as Luzes
vieram para livrar o homem do jugo da Igreja e do Estado, o que faz de nós tão
frágeis? Criamos tantas condições para vivermos plenamente, que acabamos por
folgar. A preguiça e a acomodação contradizem tudo o que foi construído e
questiona o homem sobre os esforços empreendidos em tantas conquistas,
criações, aperfeiçoamentos. Contrariando a lógica, apequenou-se diante de
tamanhos requintes, para tomar contra si a fortaleza criada.
Não satisfeito com o que é
permanente, necessita da rotatividade para saciar-se. A roupa, o carro, a
mobília, os relacionamentos, a música, tudo dura pouco. Os sofás descolorem e
rasgam facilmente. O fogão e a geladeira quebram cedo. Carros saem da fábrica
com defeitos. Casais fazem questão de não se entenderem e, por motivo tolo,
abandonam-se. A música lançada hoje, animada, repetitiva, pobre, entediante,
cai na rotina, e nunca mais será lembrada. Isso explica por que os grandes de
antes, de séculos, são enaltecidos até hoje. Nós queremos a alternância, a
pouca durabilidade de tudo, porque chato seria se um mesmo objeto ou alguém nos
acompanhasse por muito tempo, como era antes. Sob o nosso aval, aquilo que nos
dedicamos em ter escapa-nos pelas mãos. Inesgotáveis, queremos sempre algo
novo, negando a herança de renascentistas e iluministas, visto que essa ânsia
nos tornou superficiais. Permitiram ao homem ser autônomo, mas regredir pareceu
ser vocação indissociável da criatura humana.
As propagandas, deliberadamente,
mentem. Elas exploram, porque este o seu papel, as fragilidades do homem, um
ser repleto de calcanhares por todos os lados. Persuadem os nossos devaneios, a
loucura de se esconder em qualquer fabricação. E a ilusão de ter o produto para
ser melhor acomete a geração do conhecimento, do saber. Mas isso é só um
rótulo. Conhecer, pesquisar, saber, deduzir, refletir, concluir, tudo isso dá
muito trabalho, é cansativo e demorado. Ainda que o final seja prazeroso,
chegar ao fim para quê? Se o percurso é longo, melhor optar pelo atalho, pelo
caminho mais breve. Descartar e ser descartado é parte desse enredo que traiu
um passado glorioso.
Em meio ao discurso que prega o
“quis o destino”, o “se Deus quiser”, o homem semeia o que quer para si. Se for
de sua vontade, não acredite que o homem evoluiu da condição de um quase-animal
para alguém capaz de construir aviões e naves espaciais. Se não for de sua
vontade, não acredite que a humanidade também regride, apesar de toda aparente
sofisticação à nossa volta. Está aos olhos de quem desejar que o homem criou
instrumentos e condições de viver bem melhor do que antes. Talvez não desejamos
andar para trás, rumo à época do transporte manual ou sem a tão bem-vinda roda.
Talvez não seja interessante retornar ao tempo em que os animais e as plantas
não eram domesticados, e o homem só destruía, ao invés de produzir o seu
próprio sustento. Porém, nem só de evolução viveu o ser humano ao longo da sua
história. É mais cômodo discordar disso.
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