É que a maioria
gosta de bater em bêbado, mas afirmar que só o SBT não tem programas com
horários fixos é injusto. Mesmo em menor quantidade, às vezes a Globo não perde
a oportunidade de esticar a Avenida
Brasil aqui, o Jornal Nacional
ali, o futebol da quarta-feira acolá. Não arrisque programar uma gravação: não
faltará fita ou HD no seu receptor, mas o conteúdo todo também não estará lá.
Quem sofre com a
síndrome dos minutos a mais no espaço do programa seguinte é Gabriela, a novela do horário das 23
horas, da TV Globo. Devido às cenas de nudez e sexo e linguagem com uma ou
outra palavra mais ofensiva, a atração vai para o fim do dia. Como vai para o
fim do dia também todas as obras ricas da emissora, normalmente os melhores
programas. Gabriela pode não ser uma
obra-prima como Os Maias, mas é
atualmente o melhor que a emissora pode oferecer no gênero da teledramaturgia.
A atração mostra
o que era a Bahia da década de 20, mais especificamente a cidade de Ilhéus, e,
por que não, o Brasil de antes. Sociedade machista, moralista e hipócrita, em
que as próprias mulheres se resignavam com as situações que lhe eram impostas,
especialmente no amor. Jorge Amado – e o programa consegue explorar isso – expõe
ao público que a política era dirigida pelo voto de cabresto e a Igreja tinha
ideia de sobra e ação em falta. Trair a mulher com putas, atitude até sadia.
Mas a mulher que pensasse em enganar o marido, um absurdo. Tal mentalidade se
arrasta ainda hoje.
Mas a novela peca
em três pontos. Embora a obra não traga uma protagonista expressiva no que diz
respeito às suas falas, é de se espantar o fato de a mesma não fazer falta à
trama, no caso específico da personagem encenada por Juliana Paes. A história
entre ela e o parceiro não caminha, e enquanto o fato novo não vier, as
histórias periféricas serão mais atrativas.
Outra aresta mal
aparada versa sobre o roteiro. Como a quantidade de histórias paralelas é
grande e a atuação dos atores também é um ponto forte, acontece de algumas
começarem e só continuarem dias depois, o que, convenhamos, é depor contra a
cadência do enredo. Ao chamar a atenção dos telespectadores para alguns desníveis
é uma forma de diminuir o que a atração tem de melhor.
O terceiro
deslize da novela é com relação a uma das obras célebres de Eça de Queiroz, O crime do padre Amaro. Em Gabriela, o romance do escritor
português é trazido à tona pela personagem Malvina, interpretada por Vanessa
Giácomo. A garota, com perfil revoltado e revolucionário aos padrões da época,
encarna a mulher que anseia romper os paradigmas e estereótipos: não aceita a
passividade feminina em questões de vestimenta e relacionamentos. Aparentemente
algo normal, mas o curioso é que a essência da história é posta de início e
abandonada no decorrer da trama. A própria personagem, rebelde e denuncista
como a obra de Eça, passa a se referir erroneamente ao livro como um material
que “retrata uma linda história de amor”. Tenhamos calma.
Eça de Queiroz,
dos mais importantes escritores da literatura portuguesa, pertence ao Realismo.
Como característica dessa escola, temos a realidade como ela é, ao contrário
das alegorias, do “felizes para sempre” ou do apaixonado morrendo pelo amor não
correspondido do Romantismo. Relativo ao período, Eça de Queiroz é para
Portugal o que Machado de Assis é para o Brasil. Histórias com vírgulas, sem
ilusões, que denunciam as tragédias humana e institucional.
O crime do padre Amaro não apresenta uma
bela história de amor. O autor de O primo
Basílio e Os Maias nos mostra o
homem nas suas entranhas mais desprezíveis e um pessimismo em relação a
qualquer perspectiva minimamente boa.
Na história, o
sacerdote se aproveita de uma menor de idade (Amélia) e quando a menina
engravida, o padre entrega o próprio filho a alguém a quem se paga para
exterminar recém-nascidos, tudo em função de manter a própria imagem intocada.
Resultado: o bebê morre, a mãe segue o mesmo rumo, após complicações do parto,
e o padre sai triunfante. Isso tudo porque Eça tinha um apreço todo especial
pela igreja...
Gabriela é uma história e tanto, que se incumbe das
regionalidades, de um Brasil atrasado e tem em sua versão televisiva, em
formato de novela, atuações imponentes de Antonio Fagundes (coronel Ramiro
Bastos), José Wilker (coronel Jesuíno Mendonça), Mateus Solano (Mundinho
Falcão), Marcelo Serrado (Tonico Bastos), Anderson di Rizzi (professor Josué) e
Laura Cardoso (dona Dorotéia). Mas tropeça em pontos importantes e ofende a
literatura e Eça de Queiroz quando atribui à sua obra um mote equivocado.
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