Bem, como se sabe, no princípio Deus criou os céus e a
Terra, e esta, por sua vez, era sem forma e vazia. Depois, vieram os oceanos e
o firmamento, dando uma configuração semelhante a isso que serviria à humanidade
como morada e, aparentemente, único local habitável por seres com a nossa
constituição. Embora, é bom que se diga, o quão estranho é existirem tantos
outros planetas que de parecidos com a Terra só possuem o formato.
Enfim, o fato é que ao final dos sete dias, ou muito
mais do que isso, Deus já havia feito tudo, descansado e criado a sua obra mais
impressionante. Mas Adão e Eva caíram em tentação, e a desobediência de ambos
fez com que as gerações posteriores se desenvolvessem tão corrompidas, a ponto
do Criador desaprovar a criatura e o que esta fez a si própria e incumbir o bom
e velho Noé de construir uma engenhoca à que se atribuiu o nome de arca. Nela
deveriam ser colocados toda a sua família e animais das mais variadas espécies,
voadores ou terrestres, e todo o resto seria extinto.
Durante quarenta dias e quarenta noites choveu, o que
se convencionou chamar de dilúvio, e após 150 dias as águas começaram a recuar,
encontrando a arca refúgio em solo firme no sétimo dia do sétimo mês. Mas o
corvo e a pomba anunciavam quantidade de água ainda imprópria à vida. Quando
Noé soltou a ave branca pela segunda vez e ela não mais regressou, era de se
imaginar que tudo voltara ao habitual, e Deus os ordenou que descessem. “Sede
fecundos, disse-lhes ele, multiplicai-vos e enchei a Terra” (Genesis 9:1).
Foi comum, ao longo da história que nos trouxe até
aqui, deturpar a escritura para atender a interesses particulares e escusos.
Mas nos prendamos à frase anterior que, isoladamente, se encarrega de prolongar
discussões por todos os cantos. E é desperdício utilizar qualquer objeto para
segregar, ao invés de mobilizar o todo em torno de uma idéia generosa e
favorável ao convívio, e não à desavença.
Falamos aqui da homossexualidade e de como alguns
grupos se apropriam, no caso, da Bíblia para emitirem apreciações respaldadas,
no sentido de transformar suas percepções e opiniões em normativa. As intrigas
são criadas como sempre foram: em nome de um ser superior a tudo o que é
terreno, legalizando comportamentos preconceituosos e que em nada ajudam no
debate sobre as melhorias sociais necessárias.
Quando Deus ordena que a espécie humana se perpetue,
as conclusões podem ser inúmeras e não apenas uma. Mesmo havendo uma
determinada quantidade de homossexuais – uma minoria –, a criatura humana, como
é comprovado, continua a crescer. A multiplicação não fica comprometida pela
natureza sexual desse ou daquele, mesmo porque se um casal homossexual não
reproduz, o hétero tem a possibilidade de gerar descendentes, e é dessa forma que
a espécie em questão continua a prosperar, ao menos na quantidade.
Nessa discussão, o gay não inviabiliza o avanço. Sendo
assim, seria injusto cobrar dele uma tendência contrária à sua vontade. A
composição hormonal de alguém é que o leva a atrair e sentir-se atraído por
outra pessoa do sexo oposto ou por um igual. Embora seja da índole de alguns, a
excessiva maioria dos homossexuais escolhe um parceiro do mesmo sexo não para
desafiar o contexto vigente, destruidor de minorias, ou somente para experimentar
uma nova sensação, mas sim porque o afeto só pode ser completado dessa forma.
Está acima da sua capacidade lutar contra isso – e nem deve – só porque a
sociedade e supostamente Deus abominam.
Isso posto, a multiplicação humana depende de tantos
outros fatores mais importantes, relegados pela sociedade. Pensemos em alguns
elementos fundamentais à vida: moradia, alimentação, salários justos,
saneamento básico, segurança, trânsito poderiam tornar o projeto humano mais
viável e sucedido do que o atual. A violência disseminada, as remunerações
mirradas, a imprudência e a negligência no volante e condições insalubres de
vida atentam muito mais contra o legado bíblico do que a união homoafetiva,
podendo impedir o avanço ou elevando-se, mas sem a qualidade elementar.
Faria muito mais sentido a política vigente, que vaga
assombrosa por todos os lados, ser combatida pelo patrulhamento religioso. Na
outra ponta, a sociedade como um todo tem a sua parcela de não contribuição, ao
permitir que se faça menos do que deveria, ao suportar mais do que deveria. Se
de outro modo fosse, a falta daquelas condições básicas elencadas anteriormente
seria menos sentida. Nesse aspecto, os religiosos de plantão, que abominam a
homossexualidade, deveriam falar menos, julgar menos, fazer um pouco mais,
atuando em cima das deficiências que fazem a diferença.
Não é porque a história começou errada que qualquer
deslize posterior deva ser relevado. Discute-se aqui que a homossexualidade não
é um erro, mas uma situação natural, uma tendência, algo inato e, como tal,
deve ser honrado, respeitado. Se a corrente histórica nos leva a crer que a
humanidade continuará crescendo, independente da composição genética e
hormonal, preocupemo-nos, pois, com o que é realmente decisivo para a
continuidade da nossa espécie. Atos verdadeiramente pecaminosos poderão ser
evitados, não extirpando liberdade e amor, dois dos direitos inalienáveis do
ser humano.
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