Era manhã de domingo, e os fiéis começavam a tomar as
dependências da capela, no centro da cidade. O costume dominical era avistar a
igreja sempre cheia, já uma hora antes da cerimônia. De praxe, as celebrações
costumavam principiar às oito da manhã, naquela pontualidade britânica que
poucos cumprem – inclusive este que vos escreve, amigo leitor.
Bancos e poltronas tomados, cabia à comitiva católica
levar até o altar o padre. Sim, padre é aquele homem – e quase sempre homem,
pois raras são as madres – que tem a incumbência de proferir os ensinamentos bíblicos
aos cristãos católicos. É bem verdade que as orientações tomam, por vezes,
rumos desorientados, e julgamentos e sermões praguejam os ouvidos pouco
tolerantes a tradicionalismos excessivos.
O fato é que a missa mal havia começado e a autoridade
máxima da capela solicitou um minuto de silêncio como reflexão à infância
abandonada, que recebe maus tratos, que é inserida nas drogas e nos crimes e
sofre abusos de gente adulta sem a menor compaixão. Não, o padre não tinha a
consciência pesada. A angústia não afetava o dito cujo simplesmente porque a
falha jamais trafegara naquela índole. Ele estava acima de qualquer ressalva.
Antes do pontapé inicial, um adendo às mulheres, na
religião católica. Embora o Vaticano seja integralmente machista, posto que nos
corredores do alto escalão da Igreja apenas homens são vistos, as prerrogativas
bíblicas são claras: as Marias detêm papel de fundamental relevância na breve
trajetória de Cristo, enquanto ser carnal, isso sem falar em Verônica, cujo
destino fora enxugar a face ensangüentada de Jesus e eternizar suas feições.
Diante disso, se a função da mulher, dentro da Igreja, fora relegada a qualquer
outro sub-patamar é devido às vocações humanas de ambição e interesse. E só.
Bom, voltemos à missa. O padre, com dez anos de
batina, jamais tivera tramitado pela saliência. As mulheres eram maioria em
suas pregações. Não só pela fé, mas pela abundância de macho que ali se
colocava. Era uma beleza incomum, inédita, original, distribuída em quase 1,85 metro de altura,
muita teologia e filosofia de repertório e timidez em excesso. Era a perfeição
em forma de celibato, compromisso, aliás, seguido com fidelidade intocável até
então. Em suma, era um exemplo do humano calcado na virtude.
Mas até aquele dia. Porque a partir daquela demarcação
temporal o seu corpo sofreria reações excessivas. A respiração descompassada, o
coração batendo em ritmo desigual, o suor na face, nas mãos e a agitação
indomável denunciariam a mudança de conduta, a entrega completa ao que a mente
tenta negar, mas o físico requer.
O cântico inicial estava prestes a arrematar a
introdução, o que automaticamente deixaria o gancho para as boas vindas daquela
figura paterna, ao alcance do mais miserável dos homens. Mas era notório que as
condições para se iniciar o ritual eram distintas em relação a qualquer outro
dia. Sejamos mais detalhistas no evento que tirou o padre de si e o levou a uma
dimensão que jamais frequentara.
Assim que assumiu o púlpito, com o microfone nas mãos,
mas não a postos, analisava todas as suas anotações sobre a leitura do
Evangelho. Revia para se certificar de que nenhum comentário pertinente ficaria
à margem da sua fala, sempre amparada numa linguagem singular, num Português
simples e correto, numa desenvoltura que os oradores mais audazes admirariam.
Por essas e outras, era, para o povo local, um semi-Cristo.
E pouco antes de tirar os olhos dos seus escritos, eis
que o perfume das flores mais belas e raras ensandeceu a mente daquele pobre
mortal. O aroma tomava cada parte de seu corpo, e a razão católica entrava em
colapso. Não, caro leitor, até ali ele não avistara nada semelhante a uma
silhueta feminina, mas era de seu conhecimento que o torpor instaurado não lhe
era compatível. Quando ele ainda nem havia buscado a imagem, o contentamento de
sensações o fez fechar os olhos e apenas imaginar. O desconhecido o
enclausurava, fulminava aquele corpo outrora intocável e agora vulnerável, o
caráter transparente, botando de joelhos quem achava que poderia passar impune
a belas e inigualáveis abstrações.
Foram poucos segundos, até que ele caiu em si e
rememorou-se das proibições que lhe imputaram. O medo de pecar tornava aquele
homem vigilante de si mesmo, mas os pensamentos insanos escapavam ao seu
controle, e ele já ansiava deparar-se com a sua imaginação. Mesmo sabendo de
suas limitações, inerentes à escolha que havia feito há dez anos, não titubeou.
Olhou ao lado direito, porque sabia que dali vinha a essência e a essência do
que ele nunca possuíra também lá se encontrava.
Mas era tarde. Quando olhou diagonalmente só viu um
vulto. A primeira pilastra, uma das que separavam área central do corredor,
engolia a criatura lentamente, mas o suficiente para tirar dele – do padre – a
figura que tanto queria deliciar. Na fração de segundos posterior, ele supunha
que aguardar a fêmea apontar do outro lado da pilastra seria denunciar o seu
desejo, já que os fiéis olhavam-no com empenho no aguardo das primeiras
palavras.
Não, inquieto leitor, ele não poderia despender um
segundo que fosse para sair do foco. Seria uma calamidade, uma decadência
pública de sua vida intocável. Optou por não se arriscar, mesmo que o intuito
fosse bem maior que a precaução. Abaixou a cabeça e deixou aquele corpo que
ainda não vira, aquele calor que ainda não sentira, aquela pele que ainda não
tocara, distanciar-se.
Ao final do cântico, voltou seus olhos à platéia para
mencionar o primeiro “bom dia” e encaminhar o que todos esperavam, mas o que
ele cogitava não ser capaz. E a profecia se consumou. A inquietude de encontrar
o que tinha perdido levou seu olhar ao fundo, por onde passava a dona do
perfume de antes, proprietária do vulto mais destemido, portadora da pele
excitante, das curvas sinuosas e chamativas.
Resistir à vontade tornou-se esconder da multidão o
que a sua mente já resignava. Livrou-se do microfone, desceu os degraus do
altar e disparou pelo corredor central com o coração na boca e aos berros. Ao
passo que os curiosos e assustados católicos acompanhavam a trajetória da
batina flutuante, a mulher por quem o homem chamara parava, amedrontada de
certa forma. Em frente a ela, pôs uma mão em cada face do rosto feminino e
disse com a convicção dos amantes mais sinceros que a amava, como nenhum
hipócrita havia amado alguém em uma vida inteira.
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