terça-feira, 10 de julho de 2012

A SERPENTE NÃO RASTEJA

Era manhã de domingo, e os fiéis começavam a tomar as dependências da capela, no centro da cidade. O costume dominical era avistar a igreja sempre cheia, já uma hora antes da cerimônia. De praxe, as celebrações costumavam principiar às oito da manhã, naquela pontualidade britânica que poucos cumprem – inclusive este que vos escreve, amigo leitor.
Bancos e poltronas tomados, cabia à comitiva católica levar até o altar o padre. Sim, padre é aquele homem – e quase sempre homem, pois raras são as madres – que tem a incumbência de proferir os ensinamentos bíblicos aos cristãos católicos. É bem verdade que as orientações tomam, por vezes, rumos desorientados, e julgamentos e sermões praguejam os ouvidos pouco tolerantes a tradicionalismos excessivos.



O fato é que a missa mal havia começado e a autoridade máxima da capela solicitou um minuto de silêncio como reflexão à infância abandonada, que recebe maus tratos, que é inserida nas drogas e nos crimes e sofre abusos de gente adulta sem a menor compaixão. Não, o padre não tinha a consciência pesada. A angústia não afetava o dito cujo simplesmente porque a falha jamais trafegara naquela índole. Ele estava acima de qualquer ressalva.
Antes do pontapé inicial, um adendo às mulheres, na religião católica. Embora o Vaticano seja integralmente machista, posto que nos corredores do alto escalão da Igreja apenas homens são vistos, as prerrogativas bíblicas são claras: as Marias detêm papel de fundamental relevância na breve trajetória de Cristo, enquanto ser carnal, isso sem falar em Verônica, cujo destino fora enxugar a face ensangüentada de Jesus e eternizar suas feições. Diante disso, se a função da mulher, dentro da Igreja, fora relegada a qualquer outro sub-patamar é devido às vocações humanas de ambição e interesse. E só.
Bom, voltemos à missa. O padre, com dez anos de batina, jamais tivera tramitado pela saliência. As mulheres eram maioria em suas pregações. Não só pela fé, mas pela abundância de macho que ali se colocava. Era uma beleza incomum, inédita, original, distribuída em quase 1,85 metro de altura, muita teologia e filosofia de repertório e timidez em excesso. Era a perfeição em forma de celibato, compromisso, aliás, seguido com fidelidade intocável até então. Em suma, era um exemplo do humano calcado na virtude.



Mas até aquele dia. Porque a partir daquela demarcação temporal o seu corpo sofreria reações excessivas. A respiração descompassada, o coração batendo em ritmo desigual, o suor na face, nas mãos e a agitação indomável denunciariam a mudança de conduta, a entrega completa ao que a mente tenta negar, mas o físico requer.
O cântico inicial estava prestes a arrematar a introdução, o que automaticamente deixaria o gancho para as boas vindas daquela figura paterna, ao alcance do mais miserável dos homens. Mas era notório que as condições para se iniciar o ritual eram distintas em relação a qualquer outro dia. Sejamos mais detalhistas no evento que tirou o padre de si e o levou a uma dimensão que jamais frequentara.
Assim que assumiu o púlpito, com o microfone nas mãos, mas não a postos, analisava todas as suas anotações sobre a leitura do Evangelho. Revia para se certificar de que nenhum comentário pertinente ficaria à margem da sua fala, sempre amparada numa linguagem singular, num Português simples e correto, numa desenvoltura que os oradores mais audazes admirariam. Por essas e outras, era, para o povo local, um semi-Cristo.
E pouco antes de tirar os olhos dos seus escritos, eis que o perfume das flores mais belas e raras ensandeceu a mente daquele pobre mortal. O aroma tomava cada parte de seu corpo, e a razão católica entrava em colapso. Não, caro leitor, até ali ele não avistara nada semelhante a uma silhueta feminina, mas era de seu conhecimento que o torpor instaurado não lhe era compatível. Quando ele ainda nem havia buscado a imagem, o contentamento de sensações o fez fechar os olhos e apenas imaginar. O desconhecido o enclausurava, fulminava aquele corpo outrora intocável e agora vulnerável, o caráter transparente, botando de joelhos quem achava que poderia passar impune a belas e inigualáveis abstrações.



Foram poucos segundos, até que ele caiu em si e rememorou-se das proibições que lhe imputaram. O medo de pecar tornava aquele homem vigilante de si mesmo, mas os pensamentos insanos escapavam ao seu controle, e ele já ansiava deparar-se com a sua imaginação. Mesmo sabendo de suas limitações, inerentes à escolha que havia feito há dez anos, não titubeou. Olhou ao lado direito, porque sabia que dali vinha a essência e a essência do que ele nunca possuíra também lá se encontrava.
Mas era tarde. Quando olhou diagonalmente só viu um vulto. A primeira pilastra, uma das que separavam área central do corredor, engolia a criatura lentamente, mas o suficiente para tirar dele – do padre – a figura que tanto queria deliciar. Na fração de segundos posterior, ele supunha que aguardar a fêmea apontar do outro lado da pilastra seria denunciar o seu desejo, já que os fiéis olhavam-no com empenho no aguardo das primeiras palavras.
Não, inquieto leitor, ele não poderia despender um segundo que fosse para sair do foco. Seria uma calamidade, uma decadência pública de sua vida intocável. Optou por não se arriscar, mesmo que o intuito fosse bem maior que a precaução. Abaixou a cabeça e deixou aquele corpo que ainda não vira, aquele calor que ainda não sentira, aquela pele que ainda não tocara, distanciar-se.
Ao final do cântico, voltou seus olhos à platéia para mencionar o primeiro “bom dia” e encaminhar o que todos esperavam, mas o que ele cogitava não ser capaz. E a profecia se consumou. A inquietude de encontrar o que tinha perdido levou seu olhar ao fundo, por onde passava a dona do perfume de antes, proprietária do vulto mais destemido, portadora da pele excitante, das curvas sinuosas e chamativas.
Resistir à vontade tornou-se esconder da multidão o que a sua mente já resignava. Livrou-se do microfone, desceu os degraus do altar e disparou pelo corredor central com o coração na boca e aos berros. Ao passo que os curiosos e assustados católicos acompanhavam a trajetória da batina flutuante, a mulher por quem o homem chamara parava, amedrontada de certa forma. Em frente a ela, pôs uma mão em cada face do rosto feminino e disse com a convicção dos amantes mais sinceros que a amava, como nenhum hipócrita havia amado alguém em uma vida inteira.

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