segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O DESTINO FOI INJUSTO COM AQUELE RAPAZ

Foi o som da chuva que o acordou naquela manhã, quase tarde. Sentindo o hálito alcalino e a saliva em falta, abria os olhos vagamente. As pálpebras, pesadas, doíam. A vontade de botar o primeiro pé no chão a levantar-se dividia a sua dedicação com a tentativa de rememorar o que acontecera na noite anterior. Como era incapaz, ali, de fazer duas coisas ao mesmo tempo – levantar e lembrar –, ficou mais um pouco estirado, porque uma festa regada à música eletrônica e muita bebida – só alcoólica – começava a preencher a lembrança, o vazio de então.

O exercício de restabelecer o que havia feito há poucas horas – uma demora surpreendente a um jovem de pouco mais de 25 anos – foi interrompido por um movimento à sua esquerda. Ao virar-se, assustado obviamente, avistou as costas de um belo corpo feminino postado de lado. O quarto semi-escuro não prejudicou o alcance de sua visão: ela estava nua. Os cabelos negros escorridos no travesseiro; a nuca a ensandecer um parceiro, ainda que precavido; o desenho da coluna a conduzi-lo ao quadril generoso, incrivelmente perfeito, ensejando pernas que jamais tocara, pés que jamais beijara. Mas só até aquela deliciosa noite.


No entanto, a rigor do fato, ela não lhe era nada. Contraditoriamente, era possível que ele tenha depositado nela qualquer coisa que gerasse uma vida, naquilo que se convencionou nomear de perpetuação da espécie. Era quase certo que o ato sexual havia sido consumado, pois, do contrário, ele não a teria levado até seu quarto e ela, tampouco, ainda estaria ali, deitada, ao domínio dele. Mas ela, mesmo dormindo, também o tinha, porque a bela mulher é capaz disso.

É claro que ele queria tocá-la, mas não podia. Seria o mesmo que arruinar a condição sobrenatural daquela moça. De qualquer modo, ela estava ali, mas o sono de uma mulher é indissociável do que de mais belo existe. A veneração a ela o fazia sentir-se mal: será que ele se aproveitara daquele ser, usara-a por uma noite, para depois jogá-la ao mundo como uma qualquer? Talvez, sim. Mas, de igual maneira, ela fizera o mesmo. Ela poderia querê-lo só para aquilo, pelo instante de algumas horas, uma noite de sono e nada mais.

Mas a decisão de ficar inerte era equivocada. É evidente que observar os contornos femininos é digno. O movimento que o olhar capta e o perfume que invade todos os cantos da alma dão à circunstância um relato platônico do que está estabelecido, pois, assim como você, aquele homem tinha objetivos inalcançáveis. O que seria do amor, se não houvesse as frustrações, a procura pelo impossível? Só que ele precisava ir além, descobrir nela o que ele totalmente desconhecia. Chegou perto, inspirou o cheiro daquele pescoço irrepreensível e, com a mão direita a puxar o ombro destro da criatura, colocou-a a olhar para cima, com o dorso assentado. Porém, a mulher nada esboçou. Estava morta.

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