Foi o som da
chuva que o acordou naquela manhã, quase tarde. Sentindo o hálito alcalino e a
saliva em falta, abria os olhos vagamente. As pálpebras, pesadas, doíam. A
vontade de botar o primeiro pé no chão a levantar-se dividia a sua dedicação
com a tentativa de rememorar o que acontecera na noite anterior. Como era
incapaz, ali, de fazer duas coisas ao mesmo tempo – levantar e lembrar –, ficou
mais um pouco estirado, porque uma festa regada à música eletrônica e muita
bebida – só alcoólica – começava a preencher a lembrança, o vazio de então.
O exercício de
restabelecer o que havia feito há poucas horas – uma demora surpreendente a um
jovem de pouco mais de 25 anos – foi interrompido por um movimento à sua
esquerda. Ao virar-se, assustado obviamente, avistou as costas de um belo corpo
feminino postado de lado. O quarto semi-escuro não prejudicou o alcance de sua
visão: ela estava nua. Os cabelos negros escorridos no travesseiro; a nuca a ensandecer
um parceiro, ainda que precavido; o desenho da coluna a conduzi-lo ao quadril
generoso, incrivelmente perfeito, ensejando pernas que jamais tocara, pés que
jamais beijara. Mas só até aquela deliciosa noite.
No entanto, a
rigor do fato, ela não lhe era nada. Contraditoriamente, era possível que ele
tenha depositado nela qualquer coisa que gerasse uma vida, naquilo que se
convencionou nomear de perpetuação da
espécie. Era quase certo que o ato sexual havia sido consumado, pois, do
contrário, ele não a teria levado até seu quarto e ela, tampouco, ainda estaria
ali, deitada, ao domínio dele. Mas ela, mesmo dormindo, também o tinha, porque
a bela mulher é capaz disso.
É claro que ele
queria tocá-la, mas não podia. Seria o mesmo que arruinar a condição
sobrenatural daquela moça. De qualquer modo, ela estava ali, mas o sono de uma
mulher é indissociável do que de mais belo existe. A veneração a ela o fazia
sentir-se mal: será que ele se aproveitara daquele ser, usara-a por uma noite,
para depois jogá-la ao mundo como uma qualquer? Talvez, sim. Mas, de igual
maneira, ela fizera o mesmo. Ela poderia querê-lo só para aquilo, pelo instante
de algumas horas, uma noite de sono e nada mais.
Mas a decisão de
ficar inerte era equivocada. É evidente que observar os contornos femininos é
digno. O movimento que o olhar capta e o perfume que invade todos os cantos da
alma dão à circunstância um relato platônico do que está estabelecido, pois,
assim como você, aquele homem tinha objetivos inalcançáveis. O que seria do
amor, se não houvesse as frustrações, a procura pelo impossível? Só que ele
precisava ir além, descobrir nela o que ele totalmente desconhecia. Chegou
perto, inspirou o cheiro daquele pescoço irrepreensível e, com a mão direita a
puxar o ombro destro da criatura, colocou-a a olhar para cima, com o dorso
assentado. Porém, a mulher nada esboçou. Estava morta.
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