Talvez digam que é bobagem, mas quando alguém
caga, parece ter se convertido em um criminoso. Pode apostar: se você ficar
mais de dois minutos trancafiado num banheiro, as pessoas lhe apontarão o dedo,
voltarão os olhos para ti e pensarão ou dirão: “foi você!”. Pronto, sua vida
estará arruinada. As ações da bolsa caem, o dólar dispara, a mortalidade
infantil aumenta, como se os hipócritas que o julgam nunca tivessem feito o
mesmo. Mas, não. Eles te policiam, te censuram. Crave também: a merda deles
fede mais que a sua. Mas, afinal, o que você tem contra?
Antes, lembremos de alguns elementos que depõem
contra a “criatura”. Primeiro, cheira muito mal, embora em alguns casos seja
possível a existência de uma cagada inodora, o que torna os moradores da mesma
residência – e os convidados que nela estão – sempre muito gratos. Registra-se: é desagradável
ter de suportar o cheiro produzido por outro, apesar de este não ter culpa, a
não ser que tenha exagerado numa alimentação à base de ovos, repolho e batata.
Pior ainda se o algoz for o cunhado, a sogra, o sobrinho insuportável. Aí, pode
ter certeza: foi de propósito!
Outra coisa que serve de acusação é a aparência
nem tão apreciável. Seja preto, marrom, verde ou amarelo, dependendo do que se
ingeriu, nenhuma das cores e formatos – aguado, sólido ou enfeitado (com grãos
de milho, por exemplo) – apetece a espécie humana. Nem mesmo é capaz de chamar
a atenção do seu autor, exceto de uma criança, que vibra com a sua capacidade
criadora, sem saber que o adulto para quem se gaba não dá a mínima para tudo
aquilo.
Mas há mais motivos para abraçarmos as merdas
que fazemos do que ignorá-las. Assumindo a filosofia de banheiro, a bosta é uma
parte de nós. Quando excretamos a “obra” na privada ou numa moita, arremessamos
ali um pedaço da gente. Quando cagamos, morremos um pouco mais, e uma fração da
nossa existência sai da vida para entrar na história. Sim, aquela merda que
agora você esnoba esteve contigo nos seus momentos mais difíceis.
Lembra daquele fora que levou? Daquele exame em
que reprovou por meio ponto? Do momento em que atropelou um cachorro ao
manobrar o carro no estacionamento do shopping? De deixar o palito de dente
escorregar da sua boca e perfurar os pés do filho da sua esposa com outro cara?
Então, nas situações de maior sofrimento e delicadeza, aquilo que agora você
pôs para fora, e justamente por isso tu desdenhas, jamais o abandonou.
Quando um político diz uma bobagem ou um jogador
executa um lance errado, é comum classificar o insucesso como “uma merda”, com
todo respeito a ela, à bosta. Mania incurável esta de desmerecer quem mais tem
afeto por nós. Até por isso não dá para entender a revolta de alguém que pisa
no cocô, por exemplo. É como se naquele instante a ordem das coisas fosse
restabelecida e a justiça se consumasse. O que de nós saiu, para nós retorna.
Eis a metáfora do pó.
Sou a favor do movimento que anseia instituir o
banheiro como um local sagrado, ritualístico, místico. É a hora da
introspecção, do esquecimento, do empenho em aliviar-se do que incomoda e, ao
mesmo tempo, de ficar órfão. O que é a merda, senão o alimento por nós tão
valorizado e essencial à vida? O que é aquilo que cagamos, senão uma picanha
bem macia, uma macarronada deliciosa ou um peixe saboroso? É o que desejamos,
salivamos, só que com feições alteradas.
A nossa estada no vaso é qualquer coisa
inalienável. Ali, estamos desnudos, desprovidos de qualquer proteção,
resistência. No viés inverso, a nossa dedicação em defecar é capaz de
sensibilizar o pior dos algozes. Pudera: se existem distinções entre as mais
diversas pessoas, temos aí aquilo que nivela todo mundo. Não é o carnaval que
coloca todos os brasileiros no mesmo patamar: é o momento de compor a merda.
Pode mudar a pompa do banheiro, uns mais luxuosos do que outros, mas o que sai
de dentro de todos nós é igual, independente de classe social, religião, etnia
ou posições políticas.
Quando a vontade insuportável vier, aprecie e dê
mais valor a quem te quer tão bem. Cultue, cultive esse vai-vem que embeleza a
vida. Uma cagada não é qualquer coisa: é uma extensão sua que morre e,
portanto, passível de condolências e reflexões. “O que fiz para honrar isso que
se desvincula de mim e ganha os caminhos das redes de tratamento de esgoto?”.
Produzir fezes é a prova cabal de que vivemos,
cumprimos objetivos e aguardamos outros tantos no porvir. Isso à parte, não há
nada mais fabuloso do que a equiparação do homem com o bicho. Na verdade, o
indício consumado de que somos um deles. Dentro da normalidade, expulsar o cocô
da gente é tão óbvio quanto beber água, respirar, dormir, transar, viver,
morrer. É parte indissociável da nossa trajetória. É condição precípua para que
completemos o nosso papel aqui e entremos mais dignos no firmamento.
Envergonhar-se é negar tudo isso, é correr o risco de ter o inferno como
castigo.
Que os meros mortais dêem mais valor ao elo
enfraquecido, banalizado, ridicularizado. Empreende-se aqui um manifesto em
favor da bosta, aquela para quem todos apontam e é negada quando convém,
esquecendo-se de que uma cagada gostosa é impagável. É evidente que o final é
sempre o mesmo: o dever cumprido, o olhar vitorioso, o dedo na descarga e o
discurso arrogante: “Que merda!”. Mas, afinal, o que você tem contra?