Texto publicado em 5 de dezembro de 2010 no semanário getulinense. Um dos meus avôs ainda era vivo.
Era quarta, em uma dessas nada ociosas salas de espera
hospitalares. Às oito da manhã o dia já era longo, visto que a saúde pública é
para os mais resistentes, seguindo a proposição darwiniana. Mesmo sonolento,
era possível perceber que alguém me olhava a algumas cadeiras dali. Ao meu
lado, o lugar vago se colocava como um convite àquele senhor, solitário,
incomodado pelo marasmo dos minutos sem companhia. Exatamente. Ele veio até
mim, sentou-se à minha vizinhança e logo ordenou-me que lhe contasse algo
pitoresco sobre mim.
É óbvio. Assustou-me o fato de alguém, sem nada que o motivasse,
nada que eu tenha dado como permissivo, chegar-me confortavelmente exigindo um
fato fora da ordem, totalmente inédito, ainda mais sobre a minha vida. Quem
supunha ser o velho para julgar que eu estaria a fim de descrever qualquer
coisa irreverente ali, num hospital, numa sala de espera, depois de uma noite
mal dormida? Sim, em pensamento, ofendi seus entes mais queridos, inclusive o
netinho que dormia inocentemente no carro.
Mas decidi desaforar o idoso. Sabia que a carta que tinha na manga
iria arrebatar da sua face toda aquela tranqüilidade que a sabedoria dos anos –
aos capazes, é claro – propicia aos espíritos rijos. Selecionei uma parte
promissora da minha história, que certamente iria fazê-lo perder as referências
e acovardar suas certezas. A passagem dos meus dois avôs pela Terra não foi
ingênua, pacífica, que desmerecesse apreciações apaixonadas e rebeladas.
E comecei. Pelo meu avô paterno, brasileiro, filho de casal
italiano, bondade rara, palavra doce, olhar terno. Mas o seu passado não
hesitaria em confundir as opiniões de quem o julgasse. Vovô era fascista, foi à
Itália pela honra e teve no entreguerras e no auge do segundo grande conflito
seu êxtase dentro do regime. Após comprovada sua fidelidade à ideologia, fora
nomeado assistente de general. Ao planejar o assassinato do seu superior,
ascendeu e virou íntimo de Vossa Excelência, Benito Mussolini.
O meu mais novo amigo ficara cabreiro. Por que eu não poderia ser
um herdeiro obediente de meu avô? Isso criava-lhe desconforto e arrependimento.
Empolgado que estava, a diversão dava as mãos à minha mente, e história que
seguia. Mencionei ao velho as execuções em massa lideradas por vovô, os
jantares com o Duce, banhados a vinho, massa e estratégias macabras. As
reuniões secretas com Getúlio, no Brasil, serviram como amenização às
exigências cardíacas já esparsas do meu ouvinte.
Meu avô era dono de pensamentos firmes, finalizados. E seria de
muito egoísmo não dividir uma dessas proezas com meu ouvinte. E lá fui,
empreitar-me na dura tarefa de reproduzir uma mentalidade conservadora. O
brasiliano vira e mexe encostava-me, balbuciando que o que mais o irritava em
um bêbado, nesses passeios diurnos aos domingos, não era nem o bafo do dito cujo.
Era a mania que o alcoólatra tem de divagar filosofias antes de pedir R$ 0,50
para tomar uma dose.
Mas o momento era pródigo em viabilizar-me o deleite, e
indubitavelmente eu não negligenciaria o meu outro avô, o materno. Nascido no
Líbano, tinha sangue e raiz no Islamismo e era perseverante e rígido quanto aos
costumes tradicionais. Era magro, alto, fala escassa, certeira a momentos
oportunos. E, da mesma forma, a sua trajetória ludibriaria o curioso pouco
atento. Era o destino daquela pobre alma que diante de mim prostrava-se,
desenganada àquela altura, penitenciando-se pelo erro cometido.
Meu avô nascera no fim do século retrasado. Eu sei. Em sua cabeça
agora passa a hipótese de que ele, meu vô, portou Osama Bin Laden no colo,
assoviando canções de ninar ao pequeno. Foi exatamente a ilustração que tomou
conta da imaginação do meu desafiante. Foi isso que aconteceu, de fato. O pai
de minha mãe foi um dos fundadores da Al Qaeda, grupo terrorista que mais tarde
viria a por abaixo as torres gêmeas do World Trade Center, em 2001. Após o
término da primeira guerra mundial, vovô, ainda muito prematuro, herdou a
responsabilidade de gerir uma das células do grupo, com sede em Beirute. A partir dali
a organização ganhou contornos arrojados e audazes. Depois de alguns
desentendimentos com o próprio Osama, vovô, já grisalho, desligou-se da rede,
filiando-se ao Hezbollah, organização extremista libanesa. Eu me senti na
obrigação de afagar as tensões daquela pobre criatura idosa. Nada melhor do que
demonstrar-lhe o espírito patriota de meu avô.
Assim como o outro, meu antecedente árabe tinha das dele também.
Ele indignava-se com Deus. Qualificava como inaceitável a bobeada da Criatura.
Como poderia o ser supremo, sóbrio, racional e justo ter permitido enganar-se
no Gênesis? Culpar a pobre serpente, pô-la a arrastar-se e praticamente
absolver Eva depunha contra o seu legado. Em sua visão convergente, Adão e a
cobra foram vítimas, e a maçã era o pretexto conveniente para disfarçar o ônus
da culpa.
A essa altura o meu camarada nem me olhava. Inerte, seu olhar
estático perdia-se no desengano. Por dentro, autoflagelava-se pela burrada
cometida de encostar-se a um jovem desmedido. Mais ao fundo, duas filas de
cadeiras atrás, uma senhora, distinta até, vestindo um conjunto de viscose,
esbugalhava os olhos e perguntava-se por que não chamar a polícia. Um
garotinho, que acordara no meio da conversa, chorava copiosamente, dizendo à
mãe, apontando para mim, que aquele (eu) era o bicho papão ou o homem do saco
de que tanto lhe falaram durante anos.
O homem finalmente olhou-me. Riu-me um riso opaco. Saiu, sem
verbo, sem gesto, nada. Temeroso, vago de si, ainda ousou pensar em redimir a
sua curiosidade mórbida em outra presença despretensiosa. Mas o impacto de mais
uma aventura mal sucedida seria desbancar o seu norte. E preferiu o netinho a
qualquer outra peripécia. Quanto a mim, retomei a leitura interrompida no dia
anterior, mantendo as aparências, saltitante por dentro e pedindo perdão ao
vovô daqui e do céu.
Sem palavras... Amei! Minha imaginação fluiu ao lê-lo. Parabéns!
ResponderExcluirViajei na leitura, adorei o texto, de verdade, senti como se estivesse vendo tudo, hehe! Abraços, Natália
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