Assim como na
política, tema de um texto meu publicado no 2P (www.doisparagrafos.com.br), a
música sofre o mesmo processo de esquizofrenia. Os ritmos, além de mais
definidos em si, dificilmente se misturavam numa seleção pré-determinada. Hoje,
não. A mesma pessoa ou grupo é capaz de saltar de um estilo a outro nada
similar, sem talvez notar que não existe uma lógica nessa alternância. Enfim, parece
não haver mais critérios para definir a playlist.
Nada de
complexos: este artigo não quer estipular o que se deve ou não curtir. Embora conceitualmente
haja mais ritmos que fazem jus ao substantivo música, cada um ouve o que quer. Ainda assim, o clichê de que
política, religião, esporte e música dependem do gosto, e por isso não se
discutem, é dos papos mais furados, afinal, qual o problema em botar tudo isso
na roda? Pode surgir um atrito aqui e ali, mas nada que fuja ao protocolo.
O mote deste
texto foi uma situação do último sábado. Nas proximidades de onde moro,
ouvia-se um pancadão. Ao mesmo tempo
em que falava de gente, trazia animais à história, supostamente fazendo
referência ao sexo. Apesar da aparente incongruência entre as figuras, tudo
indicava que a mulher era tratada como cachorra por um homem bem do valentão. Surpreenda-se:
ambos estavam numa cama, transando.
Como se não
bastasse um momento íntimo ser berrado ao mundo, que por uma obrigatoriedade
moral é executado em local específico, privado, a canção seguinte veio a romper
com a expectativa. Um adendo, novamente: não se questiona aqui a forma como o
homem se dirige à mulher na cama (tanto a recíproca como as outras combinações
na parceria também valem). Há um contrato entre o casal, e o limite é o que
ficar acordado entre ambos. Mas, com o perdão do termo, até num puteiro o ato
sexual acontece de modo privativo, e aí, sim, grita-se de peito aberto.
A bem da verdade
é que na sequencia veio Legião Urbana.
É fato que a banda agrada este blogueiro, mas não se tem a presunção de
estampar o grupo de Brasília como modelo de música. Só que você há de convir
comigo que o hiato entre um ritmo e outro é grande e, pergunta-se, o que faz
alguém apreciar quase que simultaneamente duas concepções tão distintas de
música?
Por que motivo o rock
sucede o funk; guitarra e bateria moldam
a melodia sertaneja; ou Michael Jackson usava foguete e pirotecnia e, atrelado
a isso, simulava uma dança indígena, mesclando do primitivo ao desenvolvido na passagem
de um segundo a outro?
Uma motivação
seria o fato de a massa estar vinculada a uma só égide, a uma proposta de
cultura ampla que tem como combustível a padronização, porque se todos consomem
o mesmo, mais lucro. Com exceção às resistências aqui e acolá, a cultura
funciona aos moldes de uma indústria, e a linha de produção necessita expelir
as obras e as obras precisam ser vendidas. A ideologia hegemônica pinça
elementos de todos os cantos, até para que o japonês ouça uma música americana
e não estranhe: “mas o que é isso?”. Ou seja, se na concepção cada ritmo tem a
sua peculiaridade, na prática as diferenciações são mais sutis, já que tudo é
parte de uma mesma oferta. É fundamental ao sistema que o chinês, o angolano ou
o brasileiro se veja ali, ao menos um fragmento de si mesmo em meio à miscelânea
de signos. A tendência produtiva aceita o diverso, não sem antes adaptar,
reinventar e empobrecer seus componentes.
Da parte do indivíduo, pode simbolizar a
diversidade e um cidadão menos intransigente perante as questões que o afligem.
Ou pode ser também um indício de falta de um posicionamento definido: “gosto de
tudo, tudo me agrada”. Certeza esta que deve também faltar no âmbito de outras
decisões, mais imprescindíveis do que optar por esta ou aquela canção. Não seria
exagerado situar aí a identidade em crise, porque poucos são identificados e se
identificam com um traço definido. Todos valem. É o homem insaciável, que
anseia sem limites, mas pressupõe-se inversamente um certo acomodamento, pois
mais fácil ser ninguém do que alguém.
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