quinta-feira, 16 de agosto de 2012

A BELEZA DE SER O QUE É

Talvez digam que é bobagem, mas quando alguém caga, parece ter se convertido em um criminoso. Pode apostar: se você ficar mais de dois minutos trancafiado num banheiro, as pessoas lhe apontarão o dedo, voltarão os olhos para ti e pensarão ou dirão: “foi você!”. Pronto, sua vida estará arruinada. As ações da bolsa caem, o dólar dispara, a mortalidade infantil aumenta, como se os hipócritas que o julgam nunca tivessem feito o mesmo. Mas, não. Eles te policiam, te censuram. Crave também: a merda deles fede mais que a sua. Mas, afinal, o que você tem contra?

Antes, lembremos de alguns elementos que depõem contra a “criatura”. Primeiro, cheira muito mal, embora em alguns casos seja possível a existência de uma cagada inodora, o que torna os moradores da mesma residência – e os convidados que nela estão – sempre muito gratos. Registra-se: é desagradável ter de suportar o cheiro produzido por outro, apesar de este não ter culpa, a não ser que tenha exagerado numa alimentação à base de ovos, repolho e batata. Pior ainda se o algoz for o cunhado, a sogra, o sobrinho insuportável. Aí, pode ter certeza: foi de propósito!

Outra coisa que serve de acusação é a aparência nem tão apreciável. Seja preto, marrom, verde ou amarelo, dependendo do que se ingeriu, nenhuma das cores e formatos – aguado, sólido ou enfeitado (com grãos de milho, por exemplo) – apetece a espécie humana. Nem mesmo é capaz de chamar a atenção do seu autor, exceto de uma criança, que vibra com a sua capacidade criadora, sem saber que o adulto para quem se gaba não dá a mínima para tudo aquilo.

Mas há mais motivos para abraçarmos as merdas que fazemos do que ignorá-las. Assumindo a filosofia de banheiro, a bosta é uma parte de nós. Quando excretamos a “obra” na privada ou numa moita, arremessamos ali um pedaço da gente. Quando cagamos, morremos um pouco mais, e uma fração da nossa existência sai da vida para entrar na história. Sim, aquela merda que agora você esnoba esteve contigo nos seus momentos mais difíceis.


Lembra daquele fora que levou? Daquele exame em que reprovou por meio ponto? Do momento em que atropelou um cachorro ao manobrar o carro no estacionamento do shopping? De deixar o palito de dente escorregar da sua boca e perfurar os pés do filho da sua esposa com outro cara? Então, nas situações de maior sofrimento e delicadeza, aquilo que agora você pôs para fora, e justamente por isso tu desdenhas, jamais o abandonou.

Quando um político diz uma bobagem ou um jogador executa um lance errado, é comum classificar o insucesso como “uma merda”, com todo respeito a ela, à bosta. Mania incurável esta de desmerecer quem mais tem afeto por nós. Até por isso não dá para entender a revolta de alguém que pisa no cocô, por exemplo. É como se naquele instante a ordem das coisas fosse restabelecida e a justiça se consumasse. O que de nós saiu, para nós retorna. Eis a metáfora do pó.

Sou a favor do movimento que anseia instituir o banheiro como um local sagrado, ritualístico, místico. É a hora da introspecção, do esquecimento, do empenho em aliviar-se do que incomoda e, ao mesmo tempo, de ficar órfão. O que é a merda, senão o alimento por nós tão valorizado e essencial à vida? O que é aquilo que cagamos, senão uma picanha bem macia, uma macarronada deliciosa ou um peixe saboroso? É o que desejamos, salivamos, só que com feições alteradas.


A nossa estada no vaso é qualquer coisa inalienável. Ali, estamos desnudos, desprovidos de qualquer proteção, resistência. No viés inverso, a nossa dedicação em defecar é capaz de sensibilizar o pior dos algozes. Pudera: se existem distinções entre as mais diversas pessoas, temos aí aquilo que nivela todo mundo. Não é o carnaval que coloca todos os brasileiros no mesmo patamar: é o momento de compor a merda. Pode mudar a pompa do banheiro, uns mais luxuosos do que outros, mas o que sai de dentro de todos nós é igual, independente de classe social, religião, etnia ou posições políticas.

Quando a vontade insuportável vier, aprecie e dê mais valor a quem te quer tão bem. Cultue, cultive esse vai-vem que embeleza a vida. Uma cagada não é qualquer coisa: é uma extensão sua que morre e, portanto, passível de condolências e reflexões. “O que fiz para honrar isso que se desvincula de mim e ganha os caminhos das redes de tratamento de esgoto?”.

Produzir fezes é a prova cabal de que vivemos, cumprimos objetivos e aguardamos outros tantos no porvir. Isso à parte, não há nada mais fabuloso do que a equiparação do homem com o bicho. Na verdade, o indício consumado de que somos um deles. Dentro da normalidade, expulsar o cocô da gente é tão óbvio quanto beber água, respirar, dormir, transar, viver, morrer. É parte indissociável da nossa trajetória. É condição precípua para que completemos o nosso papel aqui e entremos mais dignos no firmamento. Envergonhar-se é negar tudo isso, é correr o risco de ter o inferno como castigo.

Que os meros mortais dêem mais valor ao elo enfraquecido, banalizado, ridicularizado. Empreende-se aqui um manifesto em favor da bosta, aquela para quem todos apontam e é negada quando convém, esquecendo-se de que uma cagada gostosa é impagável. É evidente que o final é sempre o mesmo: o dever cumprido, o olhar vitorioso, o dedo na descarga e o discurso arrogante: “Que merda!”. Mas, afinal, o que você tem contra?

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