Abril, 1984.
Quando nasci, num
hospital qualquer da Pauliceia, ninguém imaginaria que, adiante, aquela
criatura simétrica e apaixonante sofreria chacota alheia. Meus 51 cm de altura,
quase 4 kg e olhos castanhos avantajados me
credenciavam à lista dos 100 bebês mais irresistíveis do mundo. Talvez por isso
eu tenha até sido vítima de mau olhado ou objeto de desejo de ladrões de
recém-nascidos, que me venderiam por uma fortuna a algum casal de Paris ou
Berlim, tamanho era o meu poder de tornar feio todo o resto. Veja isso pelo
lado bom: eu seria quem sou na Europa, e não em Getulina-SP ou Alto Araguaia-MT.
Mas o tempo
passou, eu envelheci e as arestas despontaram. A maior delas, o meu nariz. Aos 15
anos foi o auge. Quem me via ali pela primeira vez era capaz de jurar que, antes
de mais nada, formou-se meu nariz e a partir dele o resto do corpo veio. Não era
a minha cabeça que continha o nariz. Este é que comportava cabeça, tronco e
membros. Enfim, a minha existência dependia do meu nariz, e não era por motivo
de respiração, apenas. Eu tinha ali a descendência metade libanesa, metade italiana exposta em sua face mais cruel. Não
foram poucos os que me avistavam de perfil e garantiam que eu havia sofrido uma
espadada na cabeça, e parte dela, grande inclusive, ficara de fora.
Mais magro, entre
os 13 e vinte e poucos anos, atendia pela alcunha de narigudo ou simplesmente nariz.
Se eu era feliz nessa época? Até era, mas confesso que os pensamentos
imprudentes me tomavam em alguns momentos, podendo até praticar desatinos:
ameaçar suicídio, provocar atentado à bomba em algum evento de beleza ou entrar
com requerimento junto à Corte Internacional reivindicando o fim da produção
mundial de espelhos.
Não foram poucos
os que diziam: “aspirador de pó” ou “que napa!” ou “deixe um pouco de oxigênio
pros outros” ou “se você fosse jogador de futebol, Thiago, estaria sempre em
impedimento”. Eu ouvi tudo com certo humor e resignação. Eu também não era um
santo e tinha estratégias à altura.
Não sei ao certo,
mesmo porque a legislação não é específica sobre isso, se os elogios dirigidos
a mim se configuravam como bullying. É
fato que sempre assimilei tudo em tom de brincadeira, tendo o entendimento de que
não passava de gozação. De qualquer forma, poderia ter se tornado um trauma,
uma frustração que seria projetada nas minhas relações posteriores, seja na
escola, no trabalho ou na sociedade. Não foi o que ocorreu.
A linha entre a
tiração de sarro e a ofensa verbal é estreita. Além da dificuldade de julgar se
a criança maltratou outra, toda a questão é subjetiva, pois cada um reage de
uma forma a uma brincadeira ou agressão. E é da criança brincar, infringir
regras, falar aquilo que vê. E a gente vai permanecer ainda por um bom tempo
entre o “não” excessivo, que veta a espontaneidade, e o medo de que uma palavra
mal posicionada fira alguém durante um bom tempo.
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