quinta-feira, 5 de março de 2015

OLHOS DE LINCE: o amor é mais esperto do que parece

“O amor é cego”. Esse é o mote que me leva a escrever sobre tema tão espinhoso e, igualmente, saboroso. Porque o amor é bem isso: a afeição de valores opostos, contradições que se assimilam, um caldeirão de parâmetros que, em tese, não se misturam. Mas, como já dito, o assunto em voga é o amor, e tudo lhe é lícito. Enfim, amar é uma ação que representa todas as variáveis da nossa existência em permanente conflito, especialistas em botar no divã a nossa identidade, tornando expostas as crises e fragilidades que fazem do ser humano um habitante forte deste mundo, mas também titubeante, pois amor e sofrimento são indissociáveis. De igual modo, o sentimento amoroso é nada, porque tudo teima em ser muito incerto e passível de reviravoltas.

Sim, o amor pode acabar. Ainda que o término seja fator improvável no auge da relação, tudo pode ruir. Aliás, escrevi, em 2012, que os relacionamentos tendem ao fracasso, tamanhos são os desafios pelos quais ambos passam a cada dia, seja no contato de um com o outro, seja na interação de cada um com o mundo. Os meandros da convivência humana são inúmeros, e a todo momento a forma como encaramos a companhia muda, pelo simples fato de que o mundo nos molda segundo a segundo. Porém, importante frisar: o ponto final é uma probabilidade, não uma certeza. Mesmo porque as certezas em relação ao amor, assim como a respeito das questões metafísicas, são traiçoeiras.

As saliências por que passa o amor dependem muito do comportamento de cada um. À medida que o sentimento traz sossego às partes, a generosidade ganha campo, e ambos conseguem ter espaço para vivenciar suas vidas. A despeito do contato estreito, é importante que os indivíduos continuem a ter suas rotinas, algo que desprenda o casal como combate à monotonia. Desde que a liberdade de cada um não aborreça o que é pertinente aos dois [ou às duas], vida que segue. Em contrapartida, o egoísmo se mostra prejudicial à relação e ao próprio amor, uma vez que negar independência ao outro, além de não ser pertinente ao amor, é flertar com o fim. Ser egoísta não é amar, é ser possessivo. E querer a posse da companhia não denota apenas arrogância, como dá as mãos à paixão, valor oposto ao amor.

[Fonte: www.vivirbienesunplacer.com]

Então, se não há garantias de que o relacionamento dará certo, o que fazemos? A gente caga e anda pras perspectivas nebulosas, e cai de cabeça naquilo que nos chama. Lembre-se: há boas chances de não dar certo, mas vai que dá! Ainda que não dê, ponto pra ambos, que, até o segundo derradeiro, viveram a intensidade que a vida nos exige. Na hipótese de dar errado – e se isso ocorrer, você estará na fossa, certamente –, o maior desafio não é apagar da memória as boas conversas, a troca de olhares, as risadas, os acolhimentos. Não. A tarefa, que por vezes ganha feições de monstro, posto que nos faz pequenos, é o inverso: tirar da cabeça tudo aquilo que se vislumbrou para o futuro. O foda da história não é o beijo que já foi dado, mas sim os que não mais serão consumados. É trabalho árduo reprogramar os sentimentos: enquanto a razão quer se recuperar, o coração é esperançoso, e briga contra as imposições da inteligência.

Com exceção do fim – ou da iminência dele –, o amor está escorado nas condutas racionais [claro que uma pitada ou dose de paixão, de transgressão, faz um bem danado para o sentimento se renovar, ganhar força e resistir aos altos e baixos pertinentes à vida. Mas isso é assunto pra logo mais]. É justamente a característica racional do amor que me traz a crença de que amar não tem nada a ver com cegueira. Ao contrário, o amor vê. E por quê? Porque ele é a construção, passo a passo, de uma história, cujo elemento fundador não é a tensão, a pressa, o ímpeto. Mas a paciência, o entendimento de que situações adversas virão e a capacidade de dialogar. Assim, o amor não só não é cego, como tem visão microscópica, capaz de despertar o bom pensamento em proveito de uma relação gostosa, pacífica e generosa.

Por essas e outras é que, assim como “o amor é cego”, abomino também a expressão “amor à primeira vista”. Ninguém ama ninguém ao visualizar a pessoa uma única vez. O que surge daí é a atração, a surpresa, talvez tesão. Ou seja, tudo vinculado às nossas aptidões sensíveis, aquelas que fazem o nosso corpo sentir as sensações da primeira impressão. Mas tudo isso pode ser – e normalmente é – demasiado enganoso. Ou pode não ser, e a relação se constituir adiante e provar-se forte. Mas isso irá acontecer porque, conscientemente, ambos chegaram a essa conclusão, observando, tentando, mudando, gostando. A tão propalada “primeira vista” nos leva a quebrar a cara, e, pelo menos comigo, só deu certo uma vez.

[Fonte: www.blogsdagazetaweb.com.br]

Os equívocos da primeira troca de olhares se encaixam naquilo que entendemos sobre o amor idealizado ou platônico [justiça seja feita, Platão se refere às idealizações, vinculando-as a todos os nossos afetos. A ideia de relacionar o amor platônico especificamente às pendengas dos relacionamentos é uma adaptação nossa]. De todo modo, quando a adolescente se apaixona pelo ator, por exemplo, ela não se afeiçoa ao homem, mas à ideia que ela constrói do homem. Isso ocorre devido ao fato da nossa capacidade de imaginar ser muito superior à materialidade das coisas e das gentes. Tudo em nós é limitado, menos o nosso potencial de fantasiar a vida.

Por isso, é comum a gente sentir atração – não amor – por alguém, com base no que vemos. No entanto, a partir do momento que se estabelece o diálogo, a ilha da fantasia pode explodir, e daí vêm a frustração e o desengano. Por isso é que Platão ficou marcado por ser um filósofo dualista, pois dividiu a nossa existência entre corpo e alma. O corpo pode ser apreendido pelos nossos sentidos e é perecível. A alma, por sua vez, representada pelo pensamento, foge às nossas aptidões sensíveis e é infinita. Como, então, tomamos ciência da alma, já que não a vemos, tocamos, cheiramos? Conversando, trocando ideia, isto é, racionalizando a relação. Perceba que a inteligência não é mera coadjuvante nessas coisas do amor.

Mas nessas coisas do amor também é necessário tempero. Não há aqui contradições. Continuo defendendo que o alicerce do amor está na razão, já que a sua concepção se dá no pensamento e no conhecimento por quem se tem afeto. Mas a razão, amiga íntima da ciência, é fria, cheia de pressupostos e sem aventura. E o amor precisa de uns sacolejos de vez em quando pra botar a gente pra cima: uma viagem não premeditada, um presente fora de data, um bombom de supetão, qualquer bobagem dita pra mera troca de sorrisos, um beijo desinteressado.

[Fonte: www.petcomufam.com.br]

Ah, o beijo. Uma das portas de entrada do amor, o tapete vermelho para o sexo, porque um beijo sem graça é capaz de melar qualquer pretensão mais carnal ou lúcida. Uma transa sem química, também. Falamos aqui do beijo e do sexo, duas práticas do homem que permitem à espécie as melhores delícias da vida. O beijo, delicado ou com vontade, umidifica a alma, nos provoca sensação de calmaria e desejo e realiza a troca de prazeres adquiridos até aquele instante de vida.

Já o sexo é daquelas coisas que a evolução não nos tirou. Aliás, se teve uma coisa entre a transição do bicho pro homem que não se perdeu, pode cravar: foi o sexo. Por mais delicado que seja o ato – e, certamente por isso, sem graça ao extremo – o ato sexual é provido de brutalidade, da intensidade que está habilitada a apimentar o amor, por essência racional. O nível de intimidade da cópula não se compara a nada: os corpos nus, mãos a desvendar os mistérios de cada curva, lábios que passeiam por aqui e ali, calor que brota da pele de dois seres que, pelo menos ali, naquela fração de tempo, se bastam, se completam, se querem. Sexo e amor, amor e sexo. De todas as parcerias, a mais bem sucedida. Como é bom amar e transar!

Talvez você me pergunte: “Thiago, tem certeza de que o amor é tudo isso mesmo?”. Não. É nisso que creio, hoje. Amanhã, pode ser que mude. O fato é que o amor está por aí, à solta, pegando na nossa mão, fazendo um carinho no rosto, tocando os lábios meus e seus. Com razão, paixão ou ambos, que amemos até o último segundo de vida. Se os afetos reais nos dão força, aprimoram a nossa existência e fazem a gente sofrer, os relacionamentos idealizados são ricos em fantasia, o que, convenhamos, é deveras bem-vinda num mundo, por vezes, tão pra baixo.

Por isso, nos dias de calor, de chuva ou de frio, na noite estrelada ou nebulosa, nos momentos de maior tensão ou contentamento, seja você quem eu realmente penso, seja você só uma idealização minha, saiba, sem medo de me arrepender ou de sangrar, certo de que a possibilidade de ser feliz existe, que eu amo você. 

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