quinta-feira, 26 de março de 2015

RESISTIR É PRECISO: preconceito se combate com enfrentamento

O beijo de Teresa [Montenegro] e Estela [Timberg], no primeiro capítulo da novela Babilônia, trama das 21h da TV Globo, deu pano pra manga. Óbvio que deu. De um país calcado nas religiões cristãs não dá pra esperar muita coisa. A tolerância, definitivamente, é um valor escasso na sociedade conservadora. Cabe às mentes mais abertas enfrentar o preconceito e reverter o quadro. Não é fácil, porque a questão vai muito além de alguns segundos de teledramaturgia. A ficção apenas reproduz as dinâmicas humanas mais agudas pelas vias artísticas. E a arte, por excelência, é afeiçoada às transgressões. O problema é mais embaixo. Tentemos, então, entender de onde vem a discriminação.

O Brasil, como é sabido, foi colonizado pelos portugueses. A tiracolo, Cabral e Caminha trouxeram a Igreja Católica, já que política e religião caminhavam de mãos dadas na Europa. Tudo em nome de riquezas, terras e poder, e às custas, lógico, do trabalho escravo executado por nativos e africanos. Verdade seja dita, a Igreja já se encontrava em franca decadência na transição do século XV para o XVI, pois a bonança dos tempos de Idade Média caíra sensivelmente. Mas o Papa ainda ditava normas. O Estado, claro, acatava.

Prova dessa relação – que o nosso passado provou ser promíscua – é que boa parte das nossas cidades foi fundada sobre duas fortalezas: a sede do governo e o templo religioso. Nas cidades menores, isso ainda é muito visível. Mesmo nas maiores, as praças, com igrejas – católicas, sempre – cravadas em seus pontos centrais, não deixam dúvidas. Até em São Paulo isso ocorre: o marco zero da maior metrópole do país é a Praça da Sé, sede de uma catedral capaz de abrigar oito mil pessoas.

A Catedral da Sé não é a maior igreja do país.
O Templo de Salomão, da Igreja Universal do Reino de Deus, comporta 100 mil fiéis sentados.
[Foto: www.vidaeenergia.com.br]

Ao passo que o catolicismo perdia campo, começam a surgir as religiões protestantes, fruto da Reforma proposta por Martinho Lutero, em 1517, e consequência imediata do rompimento de Henrique VIII com o Vaticano, ação que fundou o Anglicanismo, em 1533. A partir daí, o protestantismo se subdividiu. No contexto atual brasileiro, os representantes mais conhecidos são os evangélicos.

Mesmo apresentando diferenças – os católicos adoram santos, os evangélicos, não –, as duas Igrejas se entendem na essência: ambas têm o mesmo Deus e o mesmo profeta. Nesse sentido, por serem mais modernas e identificadas especialmente com os jovens, as religiões evangélicas, muito fragmentadas, cresceram, fazendo com que o contingente cristão se mantivesse grande.

Assim, a ideia de Sodoma e Gomorra continua a fissurar os fundamentalistas; e a concepção do forjamento de Adão e Eva também serve de base para açoitar os homo e transexuais. Perceba que o cristianismo, de religião perseguida pela Roma pagã, passou a perseguir. Da mesma forma que as religiões de matriz africana foram caçadas aqui no Brasil nos tempos da soberania católica, o dedo agora aponta para gays, lésbicas e transexuais. Viver num país de mentalidade tacanha nunca foi fácil.

Aqui, valem algumas observações: a Bíblia foi escrita num momento em que os paradigmas morais recriminavam as relações homoafetivas. Natural que no Livro haja menções reprovando o ato, posto que diante das ilicitudes humanas, ser gay era uma delas. Porém, como a história demonstra, os parâmetros morais mudam, seja em eras ou espaço. O mundo, por incrível que pareça, avançou.

Trecho bíblico do livro de Romanos [1:26-27]

Indo mais além, a Bíblia trabalha com metáforas, a maioria delas explorando referências da época, e ela se propôs a isso justamente para cair no entendimento coletivo da época – o mesmo procedimento foi usado pelas mitologias. O Salmo 23, dos mais conhecidos da doutrina, em seu primeiro versículo prega: “O Senhor é o meu pastor, nada me faltará”. Temos aí uma frase que se apodera de um símbolo do passado: a sociedade era campestre, de maneira que a ideia do pastoreio passa a quase não fazer sentido numa civilização atual, majoritariamente urbana.

Por isso, parafraseando uma colocação do professor da Unicamp, Leandro Karnal, se a Bíblia fosse escrita hoje, o Salmo seria: “O Senhor é a minha internet 4G, e sempre pegará”. A ideia continua a mesma, mas os símbolos mudaram. E cá pra nós: a Bíblia, como não poderia ser diferente, é fundamentalmente simbólica. Lê-la ao pé da letra pode ser imprudente.

Outro ponto em que os religiosos se apoiam para condenar os homossexuais é no mito de Adão e Eva e na ideia de multiplicação da espécie que se tem em torno disso. Já escrevi em outra oportunidade que os agrupamentos homossexuais não prejudicam a perpetuação da espécie. O que garante a nossa existência contínua é uma medicina mais avançada, é tecnologia inovadora, é dar às pessoas saneamento básico digno, educação, segurança para que homens, mulheres e crianças não morram nos becos urbanos. A carência de tudo isso pode emperrar a nossa perpetuação, não os gays. Aliás, ao que consta, a população mundial só tem aumentado. Tanto é assim, que os casais heterossexuais não dão conta de criar os filhos que botam no mundo. Pois pasme: há casais homossexuais querendo adotar os descendentes abandonados pelos héteros.

[Foto: www.direitolegal.org]

Além do mais, boa parte dos revoltosos incorre num erro crucial: apontar a Bíblia como a doutrina verdadeira, sendo que outras expressões religiosas também podem corresponder aos nossos exercícios de fé. Isso à parte, seria também muito cômodo exigir do livro sagrado as respostas para todos os dilemas. “Como resolvemos isso?”. “Ah, olha na Bíblia!”. Não. A vida é um pouco mais difícil, e reduzir as soluções a um livro é limitar demais a nossa existência. E, imagino eu, quem concebeu as Escrituras não tinha tamanha pretensão. Se a Bíblia é capaz de trazer luz a uma pendência, ótimo. Mas impossível conter ali as soluções para todas elas. O que significa dizer que não é equivocado lançar mão do âmbito sagrado para resolver dificuldades. Mas é preciso ter o entendimento de que alguns abacaxis terão de ser descascados por nós, com reflexão, debate, atitude, com luta. A vida em sociedade tem disso.

Saindo do campo da fé, segundo a teoria da responsabilidade moral do ato, um indivíduo é culpado pelo que cometeu, se agiu de maneira livre e consciente. Por isso, só o homem responde a processos judiciais, já que os outros animais agem instintivamente, inconscientes e reféns do impulso que são. Porém, ainda que o ser humano seja municiado de razão, o que lhe permite liberdade e consciência na ação, nem sempre somos regidos pelo princípio da contingência [as coisas são de uma maneira, mas poderiam ser de inúmeras outras]. O princípio da necessidade [as coisas são da única maneira que poderiam ser] também afeta os humanos. Quando isso ocorre, isto é, quando alguém faz algo sem ter a possibilidade de fazer diferente, a responsabilidade não é atribuída a ele.

É o que acontece com os gays. Eles não escolhem ser gays. Nesse caso, a natureza é mais forte que a vontade. Por isso, não se fala em opção sexual, mas sim orientação. É alheio à vontade de um gay ser gay. Ele simplesmente é. De igual modo, acontece com o heterossexual: eu não escolhi gostar de mulheres. Papai não me ensinou a desejá-las – e nem seria possível. A minha natureza me levou a isso. Até por esse aspecto, é escroto falar em cura gay. Não é algo que se ensina e se aprende. Essas questões vão além da nossa capacidade racional. São do âmbito sentimental, carnal e da própria identidade.

Segundo Nietzsche, em Além do bem e do mal, "não sou eu que decido. A minha consciência dispara como um cavalo selvagem. Logo, algo pensa em mim".
[Foto: www.espacoetica.com.br]

Nesse sentido, mais absurdo do que culpar um gay por ser gay, é querer que ele deixe de sê-lo. É como exigir que um negro tenha menos melanina. É como cobrar de um japonês que não tenha o olho ‘puxado’. É ditar que o sorriso de uma criança não seja inocente. Impossível. O que os fundamentalistas precisam entender é que a orientação sexual transcende o querer: é uma força maior agindo sobre o indivíduo, que o instrui em busca do amor e da felicidade. Qualquer coisa que vá de encontro a isso, é ceifar a possibilidade de amar e ser feliz, prerrogativa de qualquer indivíduo, bondade que um cristão, por essência, deveria alimentar.

Confuso de entender? Bastante. Agora, imagine todos esses conflitos na cabeça de um homossexual ou transexual. Pelo menos de cara, há sofrimento. E, por isso, como se não bastasse toda a angústia existencial por que passa, receber dos heterossexuais uma dose cavalar de preconceito e intolerância é uma canalhice da qual a sociedade pode abri mão sem hesitar. Não há culpa. E se não há culpa, o julgamento dos homens e dos deuses é sem fundamento. Só falta a nós o entendimento de que o organismo humano é complexo e os mistérios entre o céu e a terra, intermináveis.

Como a resistência por parte da maioria afeta a liberdade de ir e vir de um determinado grupo, a luta dos homo e transexuais tem bases políticas. O que significa dizer que esses grupos minoritários buscam resguardar o seu espaço na polis, nas dimensões públicas. Sendo assim, numa discussão política, livros sagrados e religiões não contribuem, não oferecem parâmetros racionais e pertinentes para a boa convivência numa sociedade permeada por identidades distintas e, por vezes, conflitantes. Outro fator importante: o Estado, gerenciado pela política, é laico, e, pelo menos no caso do Brasil, desamarrado da religião desde 1889, início da República por essas bandas.

No final deste texto ou ao término de uma conversa, alguém continuará bradando a frase que dá um tapa com luva de pelica em gays, lésbicas e transexuais: “eu respeito, mas não concordo”. O fato é que não cabe concordar ou discordar. Independente disso, com a anuência ou não dos reacionários, vai continuar tendo beijo gay, sim. Tanto na novela, como na vida.

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