segunda-feira, 26 de novembro de 2012

ELA O AMAVA, MAS FRAQUEJOU

O corpo era velado na sala da casa em que morou durante quase 2/3 da vida. Era sensível o barulho das pessoas chorando, como quem rapidamente cheira algo com força, com entremeios de soluço. Outras, menos contidas, faziam um certo barulho, denunciando uma maior proximidade afetiva com o defunto. Alguns poucos preferiam conversar, bem baixinho, a ponto de se ouvirem só sílabas com as letras “s” e “c”. Talvez falassem sobre a demissão do técnico da seleção, o conflito entre Palestina e Israel ou a posse de Joaquim Barbosa na presidência do STF.

A esposa, inconsolável, lamentava a morte precoce, a dizer coisas do tipo: “por que foi me deixar tão cedo?” ou “você não podia ter feito isso comigo!”, como se o pobre coitado tivesse culpa de estar num caixão ou quisesse aquilo. Esses questionamentos faziam da mulher quase que uma ré, a quem os parentes e amigos olhavam com certa cautela, tamanha a insensibilidade da viúva. Mas havia também os que a compreendiam, que tomavam como normal uma reação dessas, como a de um ser humano frágil passando por um momento de choque.


Fazia sentido ela sofrer tanto. Tínhamos ali um marido dedicado. Ou melhor, um corpo que contivera por 52 anos um espírito nobre. Era fiel até no olhar. Enquanto os amigos devoravam um pedaço de carne feminina que rebolava, ele se mantinha casto, ainda que um ou outro companheiro desse aquela batida no ombro, como quem diz: “olha aquilo. Que maravilha!”. Mas nada – nem um quadril tentador, um par de seios acolhedor – era capaz de ofuscar a sua esposa. Sim, ela era soberana e dominava-lhe os espaços que nenhuma outra ousava tocar.

E em casa, então... Além de trabalhar fora, ajudava a mulher nos afazeres domésticos: lavava e passava as roupas, fazia o belo almoço de domingo, ajudava a limpar a casa, preparava a banheira para o pós-trabalho da amada. Aos sábados pela manhã, levava até ela um banquete, o café matutino completo, invejado pelos diretores de cinema, que conduziram a combinação de frutas, trigos, cereais e industrializados aos filmes. Exato! O que você vê hoje nas produções cinematográficas, num dos atos de romantismo mais ovacionados por aí, foi concebido por ele, que agora jazia numa caixa de madeira, rodeado por velas, flores e véus, prestes a descer uma cova.

Mas, justiça seja feita, o melhor de si ele guardava para a cama. O minuto seguinte ao banho da esposa era o seu preferido. Ao ver o corpo daquela que era sua totalmente nu, ele, de igual modo, tocava-a, roçava na pele fresca e quente ao mesmo tempo. Não era incomum ele vê-la de frente ao espelho, num culto de admiração de si mesmo, e sentir-se atraído pelo cabelo ainda molhado, a escorrer o excesso de água pelo dorso de contornos perfeitos. Quando se pegava tocada por ele, entregava-se, obediente, porque a excitação lhe era mais forte. Ele a impôs tardes e noites memoráveis, cujo suor dos corpos enlaçados não deixava dúvidas sobre a cumplicidade de ambos.


Era um triste fim àquele exemplo de homem, mas possivelmente, já no mundo dos mortos, estava resignado: é assim com todo mundo. Depois de empenhar-se na tarefa de compreender uma mulher em todas as suas variantes, de beijar dia-a-dia os pés da esposa como reflexo de uma servidão consentida, desejada, aquele fim pairava como uma reprimenda da vida diante do fascínio de viver para uma única pessoa.

Sob a perspectiva dela, aquele ritual angustiante, de olhar um rosto que, logo mais, estaria sob a terra, a servir de comida aos bichos que nos habitam, era o estabelecimento de um contraponto, que invertia o eixo da sua passagem pelo mundo. Aquela coisa, que deixara de ser humana com o óbito, iria apodrecer e feder, escancarando o quão perecíveis todos somos.

Pouco antes de os amigos mais fiéis tirarem o falecido dali, para que se procedesse o enterro, a esposa tascou-lhe o último beijo, longo e apaixonado, e limpou a lágrima derradeira, ainda corrente no rosto úmido. Ao endireitar o corpo, tirou os olhos do marido para nunca mais vê-lo. Muito próximo a ela, no lado oposto de onde estava, havia um homem, que recebeu com contentamento um sinal da viúva. Ela o mandara encontrá-la no quarto, na mesma cama em que outrora o marido dormia e a fazia mulher, mas que, mesmo antes daquela mísera criatura ser colocada a sete palmos, daria ao novo pretendente o prazer que um morto não pode mais sentir ou conceder e impossível a alguém com vida adiar.

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