segunda-feira, 20 de agosto de 2012

DUVIDE DA VERDADE

Texto publicado em 5 de dezembro de 2010 no semanário getulinense. Um dos meus avôs ainda era vivo.

Era quarta, em uma dessas nada ociosas salas de espera hospitalares. Às oito da manhã o dia já era longo, visto que a saúde pública é para os mais resistentes, seguindo a proposição darwiniana. Mesmo sonolento, era possível perceber que alguém me olhava a algumas cadeiras dali. Ao meu lado, o lugar vago se colocava como um convite àquele senhor, solitário, incomodado pelo marasmo dos minutos sem companhia. Exatamente. Ele veio até mim, sentou-se à minha vizinhança e logo ordenou-me que lhe contasse algo pitoresco sobre mim.

É óbvio. Assustou-me o fato de alguém, sem nada que o motivasse, nada que eu tenha dado como permissivo, chegar-me confortavelmente exigindo um fato fora da ordem, totalmente inédito, ainda mais sobre a minha vida. Quem supunha ser o velho para julgar que eu estaria a fim de descrever qualquer coisa irreverente ali, num hospital, numa sala de espera, depois de uma noite mal dormida? Sim, em pensamento, ofendi seus entes mais queridos, inclusive o netinho que dormia inocentemente no carro.

Mas decidi desaforar o idoso. Sabia que a carta que tinha na manga iria arrebatar da sua face toda aquela tranqüilidade que a sabedoria dos anos – aos capazes, é claro – propicia aos espíritos rijos. Selecionei uma parte promissora da minha história, que certamente iria fazê-lo perder as referências e acovardar suas certezas. A passagem dos meus dois avôs pela Terra não foi ingênua, pacífica, que desmerecesse apreciações apaixonadas e rebeladas.

E comecei. Pelo meu avô paterno, brasileiro, filho de casal italiano, bondade rara, palavra doce, olhar terno. Mas o seu passado não hesitaria em confundir as opiniões de quem o julgasse. Vovô era fascista, foi à Itália pela honra e teve no entreguerras e no auge do segundo grande conflito seu êxtase dentro do regime. Após comprovada sua fidelidade à ideologia, fora nomeado assistente de general. Ao planejar o assassinato do seu superior, ascendeu e virou íntimo de Vossa Excelência, Benito Mussolini.


O meu mais novo amigo ficara cabreiro. Por que eu não poderia ser um herdeiro obediente de meu avô? Isso criava-lhe desconforto e arrependimento. Empolgado que estava, a diversão dava as mãos à minha mente, e história que seguia. Mencionei ao velho as execuções em massa lideradas por vovô, os jantares com o Duce, banhados a vinho, massa e estratégias macabras. As reuniões secretas com Getúlio, no Brasil, serviram como amenização às exigências cardíacas já esparsas do meu ouvinte.

Meu avô era dono de pensamentos firmes, finalizados. E seria de muito egoísmo não dividir uma dessas proezas com meu ouvinte. E lá fui, empreitar-me na dura tarefa de reproduzir uma mentalidade conservadora. O brasiliano vira e mexe encostava-me, balbuciando que o que mais o irritava em um bêbado, nesses passeios diurnos aos domingos, não era nem o bafo do dito cujo. Era a mania que o alcoólatra tem de divagar filosofias antes de pedir R$ 0,50 para tomar uma dose.

Mas o momento era pródigo em viabilizar-me o deleite, e indubitavelmente eu não negligenciaria o meu outro avô, o materno. Nascido no Líbano, tinha sangue e raiz no Islamismo e era perseverante e rígido quanto aos costumes tradicionais. Era magro, alto, fala escassa, certeira a momentos oportunos. E, da mesma forma, a sua trajetória ludibriaria o curioso pouco atento. Era o destino daquela pobre alma que diante de mim prostrava-se, desenganada àquela altura, penitenciando-se pelo erro cometido.

Meu avô nascera no fim do século retrasado. Eu sei. Em sua cabeça agora passa a hipótese de que ele, meu vô, portou Osama Bin Laden no colo, assoviando canções de ninar ao pequeno. Foi exatamente a ilustração que tomou conta da imaginação do meu desafiante. Foi isso que aconteceu, de fato. O pai de minha mãe foi um dos fundadores da Al Qaeda, grupo terrorista que mais tarde viria a por abaixo as torres gêmeas do World Trade Center, em 2001. Após o término da primeira guerra mundial, vovô, ainda muito prematuro, herdou a responsabilidade de gerir uma das células do grupo, com sede em Beirute. A partir dali a organização ganhou contornos arrojados e audazes. Depois de alguns desentendimentos com o próprio Osama, vovô, já grisalho, desligou-se da rede, filiando-se ao Hezbollah, organização extremista libanesa. Eu me senti na obrigação de afagar as tensões daquela pobre criatura idosa. Nada melhor do que demonstrar-lhe o espírito patriota de meu avô.


Assim como o outro, meu antecedente árabe tinha das dele também. Ele indignava-se com Deus. Qualificava como inaceitável a bobeada da Criatura. Como poderia o ser supremo, sóbrio, racional e justo ter permitido enganar-se no Gênesis? Culpar a pobre serpente, pô-la a arrastar-se e praticamente absolver Eva depunha contra o seu legado. Em sua visão convergente, Adão e a cobra foram vítimas, e a maçã era o pretexto conveniente para disfarçar o ônus da culpa.

A essa altura o meu camarada nem me olhava. Inerte, seu olhar estático perdia-se no desengano. Por dentro, autoflagelava-se pela burrada cometida de encostar-se a um jovem desmedido. Mais ao fundo, duas filas de cadeiras atrás, uma senhora, distinta até, vestindo um conjunto de viscose, esbugalhava os olhos e perguntava-se por que não chamar a polícia. Um garotinho, que acordara no meio da conversa, chorava copiosamente, dizendo à mãe, apontando para mim, que aquele (eu) era o bicho papão ou o homem do saco de que tanto lhe falaram durante anos.

O homem finalmente olhou-me. Riu-me um riso opaco. Saiu, sem verbo, sem gesto, nada. Temeroso, vago de si, ainda ousou pensar em redimir a sua curiosidade mórbida em outra presença despretensiosa. Mas o impacto de mais uma aventura mal sucedida seria desbancar o seu norte. E preferiu o netinho a qualquer outra peripécia. Quanto a mim, retomei a leitura interrompida no dia anterior, mantendo as aparências, saltitante por dentro e pedindo perdão ao vovô daqui e do céu.

2 comentários:

  1. Sem palavras... Amei! Minha imaginação fluiu ao lê-lo. Parabéns!

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  2. Viajei na leitura, adorei o texto, de verdade, senti como se estivesse vendo tudo, hehe! Abraços, Natália

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