terça-feira, 28 de agosto de 2012

EM CADA PONTA DO FONE DE OUVIDO, UMA MÚSICA

Assim como na política, tema de um texto meu publicado no 2P (www.doisparagrafos.com.br), a música sofre o mesmo processo de esquizofrenia. Os ritmos, além de mais definidos em si, dificilmente se misturavam numa seleção pré-determinada. Hoje, não. A mesma pessoa ou grupo é capaz de saltar de um estilo a outro nada similar, sem talvez notar que não existe uma lógica nessa alternância. Enfim, parece não haver mais critérios para definir a playlist.

Nada de complexos: este artigo não quer estipular o que se deve ou não curtir. Embora conceitualmente haja mais ritmos que fazem jus ao substantivo música, cada um ouve o que quer. Ainda assim, o clichê de que política, religião, esporte e música dependem do gosto, e por isso não se discutem, é dos papos mais furados, afinal, qual o problema em botar tudo isso na roda? Pode surgir um atrito aqui e ali, mas nada que fuja ao protocolo.


O mote deste texto foi uma situação do último sábado. Nas proximidades de onde moro, ouvia-se um pancadão. Ao mesmo tempo em que falava de gente, trazia animais à história, supostamente fazendo referência ao sexo. Apesar da aparente incongruência entre as figuras, tudo indicava que a mulher era tratada como cachorra por um homem bem do valentão. Surpreenda-se: ambos estavam numa cama, transando.

Como se não bastasse um momento íntimo ser berrado ao mundo, que por uma obrigatoriedade moral é executado em local específico, privado, a canção seguinte veio a romper com a expectativa. Um adendo, novamente: não se questiona aqui a forma como o homem se dirige à mulher na cama (tanto a recíproca como as outras combinações na parceria também valem). Há um contrato entre o casal, e o limite é o que ficar acordado entre ambos. Mas, com o perdão do termo, até num puteiro o ato sexual acontece de modo privativo, e aí, sim, grita-se de peito aberto.

A bem da verdade é que na sequencia veio Legião Urbana. É fato que a banda agrada este blogueiro, mas não se tem a presunção de estampar o grupo de Brasília como modelo de música. Só que você há de convir comigo que o hiato entre um ritmo e outro é grande e, pergunta-se, o que faz alguém apreciar quase que simultaneamente duas concepções tão distintas de música?

Por que motivo o rock sucede o funk; guitarra e bateria moldam a melodia sertaneja; ou Michael Jackson usava foguete e pirotecnia e, atrelado a isso, simulava uma dança indígena, mesclando do primitivo ao desenvolvido na passagem de um segundo a outro?


Uma motivação seria o fato de a massa estar vinculada a uma só égide, a uma proposta de cultura ampla que tem como combustível a padronização, porque se todos consomem o mesmo, mais lucro. Com exceção às resistências aqui e acolá, a cultura funciona aos moldes de uma indústria, e a linha de produção necessita expelir as obras e as obras precisam ser vendidas. A ideologia hegemônica pinça elementos de todos os cantos, até para que o japonês ouça uma música americana e não estranhe: “mas o que é isso?”. Ou seja, se na concepção cada ritmo tem a sua peculiaridade, na prática as diferenciações são mais sutis, já que tudo é parte de uma mesma oferta. É fundamental ao sistema que o chinês, o angolano ou o brasileiro se veja ali, ao menos um fragmento de si mesmo em meio à miscelânea de signos. A tendência produtiva aceita o diverso, não sem antes adaptar, reinventar e empobrecer seus componentes.

Da parte do indivíduo, pode simbolizar a diversidade e um cidadão menos intransigente perante as questões que o afligem. Ou pode ser também um indício de falta de um posicionamento definido: “gosto de tudo, tudo me agrada”. Certeza esta que deve também faltar no âmbito de outras decisões, mais imprescindíveis do que optar por esta ou aquela canção. Não seria exagerado situar aí a identidade em crise, porque poucos são identificados e se identificam com um traço definido. Todos valem. É o homem insaciável, que anseia sem limites, mas pressupõe-se inversamente um certo acomodamento, pois mais fácil ser ninguém do que alguém.

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