terça-feira, 10 de julho de 2012

UM ADENDO A DARWIN

Se te disserem que o mundo vive, em todos os aspectos, a sua fase mais evoluída, ouça, pense e não acredite. É senso comum que a tecnologia tornou a vida nossa mais simples, o que deu à máquina ares de ser vivente para que nós, a dita espécie mais avançada, arrefecêssemos e acomodássemos mais. Nesse sentido, a história sempre tendeu o homem ao sedentarismo. Em resumo, desacelerar o ritmo do batimento cardíaco, cansar menos e fazer com que o meio à nossa volta nos servisse são anseios mais antigos do que a reflexão sobre o assunto. Não lamente: isso simboliza a singularidade humana. Só ela é capaz de criar, adequar, produzir cultura em prol de uma melhor sobrevivência.
            Os religiosos de plantão mais fervorosos irão me condenar, mas, acalmem-se: o homem nem sempre raciocinou, não apareceu ao mundo como se imagina, um produto acabado. Embora desafiador e provocativo, não leve Adão e Eva ao pé da letra. Entenda-os como um mito. O homem, no princípio, o homo habilis, era bastante semelhante a um animal. Até então, o nosso semelhante de 2 milhões a.C. não se locomovia como você. As mãos tinham como função principal cravarem-se no chão para levar o ser humano daqui para lá. Para se ter dimensão, só havia uma forma de saciar a sede: indo até a beira de um rio ou lago, agachando-se e levando a língua até o líquido. É evidente: esse indivíduo não pensava, e isso fazia dele uma criatura excessivamente limitada.



            A evolução, após milhares de anos, permitiu ao mesmo transformar-se em homo erectus. Presume-se que você, evoluído que é, imagine aqui alguém em pé, com semelhante postura à que temos atualmente. Com o bipedismo, o homem liberou as mãos e se tornou um caçador melhor. Diga-se: ao invés de se alimentar apenas de vegetais, o homem conquistou a propensão de comer carne, crua é bem verdade, uma vez que o fogo seria fruto de inteligência posterior e mais apurada. Os ácidos graxos da carne, aliados ao maior movimento das mãos (estímulos cerebrais), viabilizaram o crescimento da massa encefálica, e, pasme, a espécie humana começa a pensar. Não, amigo. Não suponha que uma picanha no churrasco de logo mais irá fazê-lo melhor amanhã. Isso requer tempo.
            Surge aquele que hoje é você, o homo sapiens, o homem sabedor. Agora, ele já não mais usa madeira, pedra e ossos de pessoas e animais, em estado bruto, para servi-lo de alguma forma, seja para uso próprio ou para a guerra. A idade da pedra lascada dá lugar à era da pedra polida, e o homem manuseia os elementos dispostos na natureza para atender-lhe com maior plenitude. Por exemplo, um chifre não serviria mais como copo. O recipiente usado para armazenar água ou qualquer outro elemento seria produzido com barro ou argila. Mas, tenha paciência. Não ultrapassemos etapas. Esse novo cenário não deu ao homem a liberdade de morar onde quisesse. Se hoje podemos habitar qualquer local, antes as aglomerações aconteciam em regiões ribeirinhas, prova de que hoje, quase sempre, é possível morar em qualquer lugar, e as redes de água que se incumbam de conduzi-la até nós. A capacidade de pensar é tamanha, se comparada a tempos anteriores, que ele nota que as cavernas podem ser úteis como proteção, especialmente contra as chuvas.
            Mas se a chuva já não mais era um problema, o frio continuava a ser, posto que as pedras geladas são impiedosas aos homens desprevenidos. E como quem se esfrega para espantar o tempo gelado, eis que a criatura esfrega uma madeira na outra. Surge a fumaça, indício daquilo que todos sabemos. O humano não sente mais frio, tem boa visão do ambiente em que se encontra, mas acaba por chamar a atenção de alguém que, antes dele, já havia concebido a ideia de lá se instalar: o urso.
            Na lei da sobrevivência, o homem precisava reagir ao instinto do animal de atacar a sua presa. E ao vencer o bicho, o bicho-homem solucionou dois problemas: sentiria menos ainda o impacto do frio, já que a pele do urso daria-lhe proteção ante o vento frio e às suas vergonhas; e passava a desfrutar ali de um suculento banquete. Pode parecer heresia – embora de heresias os julgadores são repletos – mas as primitivas manifestações religiosas, de ordem espiritual, foi do homem em relação ao urso. O bicho humano, em gratidão pela carne e pele, guardava os ossos do animal como forma de cultuá-lo. Qualquer semelhança com a nossa dependência, hoje, do peixe, do frango, do gado, do porco não é detalhe. Não é preciso dizer que, igualmente, os cemitérios de hoje são herança desse tempo. Fazendo o mesmo com os seus semelhantes, o homem preservava a memória de seus contemporâneos e cultivava a sensação de proximidade.



            Para estender esse afeto às gerações posteriores, o homem desenvolve a fala, mesmo porque, ao contrário de antes, agora ele se relaciona em grupo, e não mais com três ou quatro pessoas apenas. Insaciado, por que, além da fala, não usar outro artifício para registrar a história? Vamos com calma. A escrita é de um período seguinte. Fiquemos no momento com as pinturas rupestres, os desenhos feitos nas paredes das cavernas, contando a história com didatismo aos que viriam depois. A escrita seria desenvolvida a partir do ano 10 mil a.C., como forma de perpetuar suas experiências, marcando o encerramento da pré-história.
            Afeto. Outro sinal de evolução humana. O ser que, assim como um animal qualquer, não convivia de forma intensa com um igual. Além da amizade, iniciamos a discussão aqui sobre o casal. O sexo, antes executado pelo humano assim como os animais – a fêmea na frente, com mãos e joelhos encostados no chão, e o homem atrás, apoiando as mãos no quadril ou passando os braços pelo abdome da mulher –, sem afeto, sem zelo pela companheira, agora tem não mais uma qualquer, mas a sua parceira de sexo, da vida, voltada para si. Agora de frente um para o outro, o casal se olha, se ama e multiplica-se. Investe-se conscientemente na concepção de que é necessário e válido perpetuar a espécie para que ela sempre se aprimore.
            À medida que o homem, convivendo em sociedade, evoluía, criava-se a gana por conquistas, e os encontros e confrontos entre lados distintos foram inevitáveis. E nada escancarou tanto as diferenças culturais quanto, muito tempo depois, já entre o final do século XV e começo do XVI, o desembarque do europeu nas Índias e na América. A desavença entre brancos e povos nativos, disfarçada inicialmente pela ilusão de relação amigável, foi o estopim para externar a nem tão deflagrada evolução.
            Mas motivos de sobra para o contrário havia. O Renascimento Cultural, um pouco antes, e o Iluminismo, na sequência, levantaram a bandeira da independência do homem pelas vias do conhecimento. As pesquisas, os experimentos científicos comprovavam o que a religião convenientemente tentou ocultar, mentira esta consentida pela política. E a filosofia moderna e a ciência abriram caminho para a soberania do homem, passando este a ser objeto e sujeito da própria história, e não mais voltar a Deus o que de mais banal e medíocre acontecia a si. Lembre-se de Caetano: “o sol sobre a estrada, é o sol sobre a estrada, é o sol”.



            Mas se o Renascimento e as Luzes vieram para livrar o homem do jugo da Igreja e do Estado, o que faz de nós tão frágeis? Criamos tantas condições para vivermos plenamente, que acabamos por folgar. A preguiça e a acomodação contradizem tudo o que foi construído e questiona o homem sobre os esforços empreendidos em tantas conquistas, criações, aperfeiçoamentos. Contrariando a lógica, apequenou-se diante de tamanhos requintes, para tomar contra si a fortaleza criada.
            Não satisfeito com o que é permanente, necessita da rotatividade para saciar-se. A roupa, o carro, a mobília, os relacionamentos, a música, tudo dura pouco. Os sofás descolorem e rasgam facilmente. O fogão e a geladeira quebram cedo. Carros saem da fábrica com defeitos. Casais fazem questão de não se entenderem e, por motivo tolo, abandonam-se. A música lançada hoje, animada, repetitiva, pobre, entediante, cai na rotina, e nunca mais será lembrada. Isso explica por que os grandes de antes, de séculos, são enaltecidos até hoje. Nós queremos a alternância, a pouca durabilidade de tudo, porque chato seria se um mesmo objeto ou alguém nos acompanhasse por muito tempo, como era antes. Sob o nosso aval, aquilo que nos dedicamos em ter escapa-nos pelas mãos. Inesgotáveis, queremos sempre algo novo, negando a herança de renascentistas e iluministas, visto que essa ânsia nos tornou superficiais. Permitiram ao homem ser autônomo, mas regredir pareceu ser vocação indissociável da criatura humana.
            As propagandas, deliberadamente, mentem. Elas exploram, porque este o seu papel, as fragilidades do homem, um ser repleto de calcanhares por todos os lados. Persuadem os nossos devaneios, a loucura de se esconder em qualquer fabricação. E a ilusão de ter o produto para ser melhor acomete a geração do conhecimento, do saber. Mas isso é só um rótulo. Conhecer, pesquisar, saber, deduzir, refletir, concluir, tudo isso dá muito trabalho, é cansativo e demorado. Ainda que o final seja prazeroso, chegar ao fim para quê? Se o percurso é longo, melhor optar pelo atalho, pelo caminho mais breve. Descartar e ser descartado é parte desse enredo que traiu um passado glorioso.
            Em meio ao discurso que prega o “quis o destino”, o “se Deus quiser”, o homem semeia o que quer para si. Se for de sua vontade, não acredite que o homem evoluiu da condição de um quase-animal para alguém capaz de construir aviões e naves espaciais. Se não for de sua vontade, não acredite que a humanidade também regride, apesar de toda aparente sofisticação à nossa volta. Está aos olhos de quem desejar que o homem criou instrumentos e condições de viver bem melhor do que antes. Talvez não desejamos andar para trás, rumo à época do transporte manual ou sem a tão bem-vinda roda. Talvez não seja interessante retornar ao tempo em que os animais e as plantas não eram domesticados, e o homem só destruía, ao invés de produzir o seu próprio sustento. Porém, nem só de evolução viveu o ser humano ao longo da sua história. É mais cômodo discordar disso.

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